Triste Fim de Policarpo Quaresma/I/IV

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Os acontecimentos a que aludiam os graves personagens reunidos em torno da mesa de solo, na tarde memorável da festa comemorativa do pedido de casamento de Ismênia, se tinham desenrolado com rapidez fulminante. A força de ideias e sentimentos contidos em Quaresma se havia revelado em atos imprevistos com uma sequência brusca e uma velocidade de turbilhão. O primeiro fato surpreendeu, mas vieram outros e outros, de forma que o que pareceu, no começo, uma extravagância, uma pequena mania, se apresentou logo em insânia declarada.

Justamente algumas semanas antes do pedido de casamento, ao abrir-se a sessão da câmara, o secretário teve que proceder à leitura de um requerimento singular e que veio a ter uma fortuna de publicidade e comentário pouco usual em documentos de tal natureza.

O burburinho e a desordem que caracterizam o recolhimento indispensável ao elevado trabalho de legislar não permitiram que os deputados o ouvissem; os jornalistas, porém, que estavam próximos à mesa, ao ouvi-lo, prorromperam em gargalhadas, certamente inconvenientes à majestade do lugar. O riso é contagioso. O secretário, no meio da leitura, ria-se, discretamente; pelo fim, já ria-se o presidente, ria-se o oficial da ata, ria-se o contínuo - toda a mesa e aquela população que a cerca riram-se da petição, largamente, querendo sempre conter o riso, havendo em alguns tão franca alegria que as lágrimas vieram.

Quem soubesse o que uma tal folha de papel representava de esforço, de trabalho, de sonho generoso e desinteressado, havia de sentir uma penosa tristeza, ouvindo aquele rir inofensivo diante dela. Merecia raiva, ódio, um deboche de inimigo talvez, o documento que chegava à mesa da câmara, mas não aquele recebimento hilárico, de uma hilaridade inocente, sem fundo algum, assim como se estivesse a rir de uma palhaçada, de uma sorte de circo de cavalinhos ou de uma careta de clown.

Os que riam, porém, não lhe sabiam a causa e só viam nele um motivo para riso franco e sem maldade. A sessão daquele dia fora fria e, por ser assim, as seções dos jornais referentes à câmara, no dia seguinte, publicaram o seguinte requerimento e glosaram-no em todos os tons.

Era assim concebida a petição:

"Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se veem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma - usando do direito que lhe confere a constituição, vem pedir que o congresso nacional decrete o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro.

O suplicante, deixando de parte os argumentos históricos que militam em favor de sua ideia, pede vênia para lembrar que a língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original e, portanto, a emancipação política do país requer como complemento e consequência a sua emancipação idiomática.

Demais, senhores congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e de adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da organização fisiológica e psicológica para que tendemos, evitando-se, dessa forma, as estéreis controvérsias gramaticais, oriundas de uma difícil adaptação de uma língua de outra região à nossa organização cerebral e ao nosso aparelho vocal - controvérsias que tanto empecem o progresso da nossa cultura literária, científica e filosófica.

Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios para realizar semelhante medida e cônscio de que a câmara e o senado pesarão o seu alcance e utilidade P. e E. deferimento".

Assinado e devidamente estampilhado, este requerimento do major foi, durante dias, assunto de todas as palestras. Publicado em todos os jornais, com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma pilhéria sobre ele, quem não ensaiasse um espírito à custa da lembrança de Quaresma. Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era solteiro. Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o major foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, esses semanários de espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o pobre major. Com uma abundância que marcava a felicidade dos redatores em terem encontrado um assunto fácil, o texto vinha cheio dele: O major Quaresma disse isso; o major Quaresma fez aquilo. Um deles, além de outras referências, ocupou uma página inteira com o assunto da semana. Intitulava-se a ilustração: O matadouro de Santa Cruz, segundo o major Quaresma e o desenho representava uma fila de homens e mulheres a marchar para o choupo que se via à esquerda. Um outro referia-se ao caso pintando um açougue, O açougue Quaresma; legenda: a cozinheira perguntava ao açougueiro: - O senhor tem língua de vaca? O açougueiro respondia: - Não, só temos língua de moça, quer?

Com mais ou menos espírito, os comentários não cessavam e a ausência de relações de Quaresma no meio de que saíam, fazia com que fossem de uma constância pouco habitual. Levaram duas semanas com o nome do subsecretário.

Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade muito viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. Nunca sofrera críticas, nunca se atirou à publicidade, vivia imerso no seu sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora deles, ele não conhecia ninguém e, com as pessoas com quem falava, trocava pequenas banalidades, ditos de todo dia, coisas com que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver.

Nem mesmo a afilhada o tirava dessa reserva, embora a estimasse mais que a todos.

Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de estranho a tudo, às competições, às ambições, pois nada dessas coisas que fazem os ódios e as lutas tinha entrado no seu temperamento.

Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d'alma que vão habitar esses homens de uma ideia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas.

É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.

A continuidade das troças feitas nos jornais, a maneira com que o olhavam na rua, exasperavam-no e mais forte se enraizava nele a sua ideia. À medida que engulia uma troça, uma pilhéria, vinha-lhe meditar sobre a sua lembrança, pesar-lhe todos os aspectos, examiná-la, detidamente, compará-la a coisas semelhantes, recordar os autores e autoridades e, à proporção que fazia isso, a sua própria convicção mostrava a inanidade da crítica, a ligeireza da pilhéria e a ideia o tomava, o avassalava, o absorvia cada vez mais.

Se os jornais tinham recebido o requerimento com facécias de fundo inofensivo e sem ódio, a repartição ficou furiosa. Nos meios burocráticos, uma superioridade que nasce fora deles, que é feita e organizada com outros materiais que não os ofícios, a sabença de textos de regulamentos e a boa caligrafia, é recebida com a hostilidade de uma pequena inveja.

É como se se visse no portador da superioridade um traidor à mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não há só uma questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos, vendo aquele colega, aquele galé como eles, sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas superiores dos ministros, com mais títulos à consideração, com algum direito a infringir as regras e os preceitos.

Olha-se para ele com o ódio dissimulado com que o assassino plebeu olha para o assassino marquês que matou a mulher e o amante. Ambos são assassinos, mas, mesmo na prisão, ainda o nobre e o burguês trazem o ar do seu mundo, um resto da sua delicadeza e uma inadaptação que ferem o seu humilde colega de desgraça.

Assim, quando surge numa secretaria alguém cujo nome não lembra sempre o título de sua nomeação, aparecem as pequeninas perfídias, as maledicências ditas ao ouvido, as indiretas, todo o arsenal do ciúme invejoso de uma mulher que se convenceu de que a vizinha se veste melhor do que ela.

Amam-se ou antes suportam-se melhor aqueles que se fazem célebres nas informações, na redação, na assiduidade ao trabalho, mesmo os doutores, os bacharéis, do que os que têm nomeada e fama. Em geral, a incompreensão da obra ou do mérito do colega e total e nenhum deles se pode capacitar que aquele tipo, aquele amanuense, como eles, faça qualquer coisa que interesse os estranhos e dê que falar a uma cidade inteira,

A brusca popularidade de Quaresma, o seu sucesso e nomeada efêmera irritaram os seus colegas e superiores. Já se viu! dizia o secretário. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma coisa! Pretensioso! O diretor, ao passar pela secretaria, olhava-o de soslaio e sentia que o regulamento não cogitasse do caso para lhe infligir uma censura. O colega arquivista era o menos terrível, mas chamou-o logo de doido.

O major sentia bem aquele ambiente falso, aquelas alusões e isso mais aumentava o seu desespero e a teimosia na sua idéia. Não compreendia que o seu requerimento suscitasse tantas tempestades, essa má vontade geral; era uma coisa inocente, uma lembrança patriótica que merecia e devia ter o assentimento de todo mundo; e meditava, voltava a idéia, e a examinava com mais atenção.

A extensa publicidade, que o fato tomou, atingiu o palacete de Real Grandeza, onde morava o seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das empreitadas de construções de prédios, viúvo, o antigo quitandeiro retirarase dos negócios e vivia sossegado na ampla casa que ele mesmo edificara e tinha todos os remates arquitetônicos do seu gosto predileto: compoteiras na cimalha, um imenso monograma sobre a porta da entrada, dois cães de louça, nos pilares do portão da entrada e outros detalhes equivalentes.

A casa ficava ao centro do terreno, elevava-se sobre um porão alto, tinha um razoável jardim na frente, que avançava pelos lados, pontilhado de bolas multicores; varanda, um viveiro, onde pelo calor os pássaros morriam tristemente. Era uma instalação burguesa, no gosto nacional, vistosa, cara, pouco de acordo com o clima e sem conforto.

No interior o capricho dominava, tudo obedecendo a uma fantasia barroca, a um ecletismo desesperador. Os móveis se amontoavam, os tapetes, as sanefas, os bibelots e a fantasia da filha, irregular e indisciplinada, ainda trazia mais desordem àquela coleção de coisas caras.

Viúvo, havia já alguns anos, era uma velha cunhada quem dirigia a casa e a filha, quem o encaminhava nas distrações e nas festas. Coleoni aceitava de bom coração esta doce tirania. Queria casar a filha, bem e ao gosto dela; não punha, portanto, nenhum obstáculo ao programa de Olga.

Em começo, pensou em dá-la a seu ajudante ou contramestre, uma espécie de arquiteto que não desenhava, mas projetava casas e grandes edifícios. Primeiro sondou a filha. Não encontrou resistência, mas não encontrou também assentimento. Convenceu-se de que aquela vaporosidade da menina, aquele seu ar distante de heroína, a sua inteligência, o seu fantástico, não se dariam bem com as rudezas e a simplicidade campônias de seu auxiliar.

Ela quer um doutor - pensava ele - que arranje! Com certeza, não terá ceitil, mas eu tenho e as coisas se acomodam.

Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias dúzias de contos de réis.

Havia momentos que se aborrecia um tanto com os propósitos da menina. Gostando de dormir cedo, tinha que perder noites e noites no Lírico, nos bailes; amando estar sentado em chinelas a fumar cachimbo, era obrigado a andar horas e horas pelas ruas, saltitando de casa em casa de modas, atrás da filha, para no fim do dia ter comprado meio metro de fita, uns grampos e um frasco de perfume.

Era engraçado vê-lo nas lojas de fazendas cheio de complacência de pai que quer enobrecer o filho, a dar opinião sobre o tecido, achar este mais bonito, comparar um com outro, com uma falta de sentimento daquelas coisas que se adivinhava até no pegá-las. Mas ele ia, demorava-se e esforçava-se por entrar no segredo, no mistério, cheio de tenacidade e candura perfeitamente paternais.

Até aí ele ia bem e calcava a contrariedade. Só o contrariavam bastante as visitas, as colegas da filha, suas mães, suas irmãs, com seus modos de falsa nobreza, os seus desdéns dissimulados, deixando perceber ao velho empreiteiro o quanto estava ele distante da sociedade das amigas e das colegas de Olga.

Não se aborrecia, porém, muito profundamente; ele assim o quisera e a fizera, tinha que se conformar. Quase sempre, quando chegavam tais visitas, Coleoni afastava-se, ia para o interior da casa. Entretanto, não lhe era sempre possível fazer isso; nas grandes festas e recepções tinha que estar presente e era quando mais sentia o velado pouco-caso da alta nobreza da terra que o freqüentava. Ele ficava sempre empreiteiro, com poucas idéias além do seu ofício, não sabendo fingir, de modo que não se interessava por aquelas tagarelices de casamentos, de bailes, de festas e passeios caros.

Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker, aceitava e sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de que fazia parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas não foi isso que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos - uma ninharia! A questão, porém, é que Pacheco jogava com seis cartas. A primeira vez que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples distração do distinto jornalista e famoso advogado. Um homem honesto não ia fazer aquilo! E na segunda, seria também? E na terceira?

Não era possível tanta distração. Adquiriu a certeza da trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada em um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez e o passe foi posto em prática, Vicente acendeu o charuto e observou com a maior naturalidade deste mundo:

— Os senhores sabem que há agora, na Europa, um novo sistema de jogar o poker?

— Qual é? perguntou alguém.

— A diferença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos parceiros, somente.

Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar e a ganhar, despediu-se à meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns comentários sobre a partida e não voltou mais.

Conforme o seu velho hábito, Coleoni lia de manhã os jornais, com o vagar e a lentidão de homem pouco habituado à leitura, quando se lhe deparou o requerimento do seu compadre do arsenal.

Ele não compreendeu bem o requerimento, mas os jornais faziam troça, caíam tão a fundo sobre a coisa, que imaginou o seu antigo benfeitor enleado numa meada criminosa, tendo praticado, por inadvertência, alguma falta grave,

Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda tinha, mas daí quem sabe? Na última vez que o visitou ele não veio com aqueles modos estranhos? Podia ser uma pilhéria...

Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major, oriundo da sua qualidade de funcionário e de sábio.

Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele sagrado respeito dos camponeses pelos homens que recebem a investidura do Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil, ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em grande consideração a erudição do compadre.

Não é, pois, de estranhar que ele visse com mágoa o nome de Quaresma envolvido em fatos que os jornais reprovavam. Leu de novo o requerimento, mas não entendeu o que ele queria dizer. Chamou a filha.

— Olga!

Ele pronunciava o nome da filha quase sem sotaque; mas, quando falava português, punha nas palavras uma rouquidão singular, e salpicava as frases de exclamações e pequenas expressões italianas.

— Olga, que quer dizer isto? Non capisco...

A moça sentou-se a um cadeira próxima e leu no jornal, o requerimento e os comentários.

Che! Então?

— O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende o senhor?

— Como?

— Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em diante falemos tupi.

Tutti?

— Todos os brasileiros, todos.

Ma che coisa! Não é possível?

— Pode ser. Os tcheques têm uma língua própria e foram obrigados a falar alemão, depois de conquistados pelos austríacos; os lorenos, franceses...

Per la madonna! Alemão é língua, agora esse acujelê, ecco!

— Acujelê é da África, papai; tupi é daqui.

Per Bacco! É o mesmo... Está doido!

— Mas não há loucura alguma, papai.

— Como? Então é coisa de um homem bene?

— De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.

Non capisco.

— É uma ideia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...

Por mais que quisesse, ela não podia julgar o ato do padrinho sob o critério de seu pai. Neste, falava o bom senso e, nela, o amor às grandes coisas, aos arrojos e cometimentos ousados. Lembrou-se de que Quaresma lhe falara em emancipação e, se houve no fundo de si um sentimento que não fosse de admiração pelo atrevimento do major, não foi decerto o de reprovação ou lástima; foi de piedade simpática por ver mal compreendido o ato daquele homem que ela conhecia há tantos anos, seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.

— Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.

E ele tinha razão. A sentença do arquivista foi vencedora nas discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse doido foi tomando foros de certeza. Em princípio, o subsecretário suportou bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o supunham insciente no tupi, irritou-se, encheu-se de uma raiva surda, que se continha dificilmente. Como eram cegos! Ele que há trinta anos estudava o Brasil minuciosamente, ele que em virtude desses estudos, fora obrigado a aprender o rebarbativo alemão, não saber tupi, a língua brasileira, a única que o era - que suspeita miserável!

Que o julgassem doido - vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de suas afirmações, não! E ele pensava, procurava meios de se reabilitar, caía em distrações, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa quotidiana. Vivia dividido em dois: uma parte nas obrigações de todo dia, e a outra, na preocupação de provar que sabia o tupi.

O secretário veio a faltar um dia e o major lhe ficou fazendo as vezes. O expediente fora grande e ele mesmo redigira e copiara uma parte. Tinha começado a passar a limpo um ofício sobre coisas de Mato Grosso, onde se falava em Aquidauana e Ponta Porã, quando o Carmo disse lá do fundo da sala, com acento escarninho:

— Homero, isto de saber é uma coisa, dizer é outra.

Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em tupi que se encontravam na minuta, fosse pela alusão do funcionário Carmo, o certo é que ele insensivelmente foi traduzindo a peça oficial para o idioma indígena.

Ao acabar, deu com a distração, mas logo vieram outros empregados com o trabalho que fizeram, para que ele examinasse. Novas preocupações afastaram a primeira, esqueceu-se e o ofício em tupi seguiu com os companheiros. O diretor não reparou, assinou e o tupinambá foi dar ao ministério.

Não se imagina o rebuliço que tal coisa foi causar lá. Que língua era? Consultou-se o doutor Rocha, o homem mais hábil da secretaria, a respeito do assunto. O funcionário limpou o pince-nez, agarrou o papel, voltou-o de trás para diante, pô-lo de pernas para o ar e concluiu que era grego, por causa do "yy".

O doutor Rocha tinha na secretaria a fama de sábio, porque era bacharel em direito e não dizia coisa alguma.

— Mas, indagou o chefe, oficialmente as autoridades se podem comunicar em línguas estrangeiras? Creio que há um aviso de 84... Veja, Senhor doutor Rocha...

Consultaram-se todos os regulamentos e repertórios de legislação, andou-se de mesa em mesa pedindo auxilio à memória de cada um e nada se encontrara a respeito. Enfim, o doutor Rocha, após três dias de meditação, foi ao chefe e disse com ênfase e segurança:

— O aviso de 84 trata de ortografia.

O diretor olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando as suas qualidades de empregado zeloso, inteligente e... assíduo. Foi informado de que a legislação era omissa no tocante à língua em que deviam ser escritos os documentos oficiais; entretanto não parecia regular usar uma que não fosse a do país.

O ministro, tendo em vista esta informação e várias outras consultas, devolveu o ofício e censurou o arsenal.

Que manhã foi essa no arsenal! Os tímpanos soavam furiosamente, os contínuos andavam numa dobadoura terrível e a toda hora perguntavam pelo secretário que tardava em chegar.

Censurado! monologava o diretor, Ia-se por água abaixo o seu generalato. Viver tantos anos a sonhar com aquelas estrelas e elas se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um escriturário!

Ainda se a situação mudasse... Mas qual!

O secretário chegou, foi ao gabinete do diretor. Inteirado do motivo, examinou o ofício e pela letra conheceu que fora Quaresma que o escrevera. Mande-o cá, disse o coronel. O major encaminhou-se pensando nuns versos tupis que lera de manhã.

— Então o senhor leva a divertir-se comigo, não é?

— Como? fez Quaresma espantado.

— Quem escreveu isso?

O major nem quis examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da distração e confessou com firmeza:

— Fui eu.

— Então confessa?

— Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...

— Não sabe! que diz?

O diretor levantou-se da cadeira, com os lábios brancos e a mão levantada à altura da cabeça. Tinha sido ofendido três vezes: na sua honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de ensino que frequentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro estabelecimento científico do mundo. Além disso, escrevera no Pritaneu, a revista da escola, um conto - A saudade - produção muito elogiada pelos colegas. Dessa forma, tendo em todos os exames sido aprovado plenamente e com distinção, uma dupla coroa de sábio e artista cingia-lhe a fronte, tantos títulos valiosos e raros de se encontrarem reunidos mesmo em Descartes ou Shakespeare transformavam aquele - não sabe - de um amanuense em ofensa profunda, em injúria.

— Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor matemática, astronomia, física, química, sociologia e moral? Como ousa então? Pois o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um francesinho aí, pode ombrear-se com quem tirou grau nove em cálculo, dez em mecânica, oito em astronomia, dez em hidráulica, nove em descritiva? Então?!

E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para Quaresma, que já se julgava fuzilado.

— Mas, senhor coronel!...

— Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso até segunda ordem.

Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar da sabedoria do seu diretor. Ele não tinha nenhuma pretensão a sábio e pronunciara a frase para começar a desculpa; mas, quando viu aquela enxurrada de saber, de títulos, a sobrenadar em águas tão furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as ideias e nada mais soube nem pôde dizer.

Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Saiu afinal. Chegando à sala do trabalho nada disse: pegou no chapéu, na bengala e atirou-se pela porta afora, cambaleando como um bêbado. Deu umas voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde encontrou o Ricardo Coração dos Outros.

— Cedo, hein major?

— É verdade.

E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito. Ricardo avançou algumas palavras:

— O major, hoje, parece que tem uma idéia, um pensamento muito forte.

— Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.

— É bom pensar, sonhar consola.

— Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens....

E os dois separaram-se. O major tomou o bonde e Ricardo desceu descuidado a rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças dobradas nas canelas, sobraçando o violão na sua armadura de camurça.