Troca de datas/III

Wikisource, a biblioteca livre

Como não é intenção do escrito contar a guerra, nem o papel que lá fez o Capitão Eusébio, corramos depressa ao fim, no mês de outubro de 1870, em que o batalhão de Eusébio voltou ao Rio de Janeiro, vindo ele major, e trazendo ao peito duas medalhas e dois oficialatos: um bravo. A gente que nas ruas e das janelas via passar os galhardos vencedores era muita, luzida e diversa. Não admira, se no meio de tal confusão o nosso Eusébio não viu a mulher. Era ela, entretanto, que estava debruçada da janela de uma casa da Rua Primeiro de Março, com algumas parentas e amigas, e o infalível tio João.

— Olha, Cirila, olha, lá vem ele, dizia o bom roceiro.

Cirila baixou os olhos ao marido. Não o achou mudado, senão para melhor: pareceu-lhe mais robusto, mais gordo; além disso, tinha o ar marcial, que acentuava a figura. Não o tendo visto desde cinco anos, era natural que a comoção fosse forte, e algumas amigas, receosas, olhavam para ela. Mas Cirila não desmaiou, não se alvoroçou. O rosto ficou sereno como era. Fitou Eusébio, é verdade, mas não muito tempo, e, em todo caso, como se ele tivesse saído daqui na semana anterior. O batalhão passou; o tio João saiu para ir esperar o sobrinho no quartel.

— Ora, vem cá, meu rapaz!

— Oh! tio João!

— Voltas cheio de glória! exclamou o tio João depois de o abraçar apertadamente.

— Parece-lhe?

— Pois então! Lemos tudo o que saiu nas folhas; você brilhou... Há de contar-nos isso depois. Cirila está na corte...

— Ah!

— Estamos em casa do Soares Martins.

Não se pode dizer que ele recebeu a notícia com desgosto: mas também não se pode afirmar que com prazer; indiferente, é verdade, indiferente e frio. A entrevista não foi mais alvoroçada; ambos apertaram as mãos com um ar de pessoas que se estimam sem intimidade. Três dias depois, Cirila voltava para a roça, e o Major Eusébio deixava-se ficar na corte.

Já o fato de ficar é muito; mas, não se limitou a isso. Eusébio estava namorado de uma dama de Buenos Aires, que prometera vir ter com ele ao Rio de Janeiro. Não acreditando que ela cumprisse a palavra, preparou-se para tornar ao Rio da Prata, quando ela aqui aportou, quinze dias depois. Chamava-se Dolores, e era realmente bela, um belo tipo de argentina. Eusébio amava-a loucamente, ela não o amava de outro modo; ambos formavam um par de doidos.

Eusébio alugou casa na Tijuca, onde foram viver os dois, como um casal de águias. Os moradores do lugar contavam que eles eram um modelo de costumes e outro modelo de afeição. Com efeito, não davam escândalo e amavam-se com o ardor, a tenacidade e o exclusivismo das grandes paixões. Passeavam juntos, conversavam de si e do céu; ele deixava de ir à cidade três, cinco, seis dias, e quando ia era para se demorar o tempo estritamente necessário. Perto da hora de voltar, via-se a bela Dolores esperá-lo ansiosa à janela, ou ao portão. Um dia a demora foi além dos limites do costume; eram cinco horas da tarde, e nada; deram seis, sete, nem sombra de Eusébio. Ela não podia ter-se; ia de um ponto para outro, interrogava os criados, mandava um deles ver se aparecia o patrão. Não chorava, tinha os olhos secos, ardentes. Enfim, perto de oito horas, apareceu Eusébio. Vinha esbaforido; tinha ido à casa do Ministro da Guerra, onde o oficial do gabinete lhe disse que S. Ex.ª desejava falar-lhe, nesse mesmo dia. Voltou lá às quatro horas; não o achou, esperou-o até às cinco, até às seis; só às seis e meia é que o ministro voltou da Câmara, onde a discussão lhe tomara o tempo.

Ao jantar, contou Eusébio que o motivo da entrevista com o Ministro da Guerra fora um emprego que ele pedira, e que o ministro, não podendo dar-lho, trocara por outro. Eusébio aceitou; era para o Norte, na província do Pará...

— No Pará?! interrompeu Dolores.

— Sim. Que tem?

Dolores refletiu um instante; depois disse que ele fazia muito bem aceitando, mas que ela não iria; receava os calores da província, tinha lá perdido uma amiga; provavelmente, voltava a Buenos Aires. O pobre major não pôde acabar de comer; instou com ela, mostrou-lhe que o clima era excelente, e que as amigas podiam morrer em qualquer parte. Mas a argentina abanou a cabeça. Sinceramente, não queria.

No dia seguinte, Eusébio desceu outra vez para pedir dispensa ao ministro, e rogar-lhe que o desculpasse, porque um motivo súbito, um incidente... Regressou à Tijuca, dispensado e triste; mas os olhos de Dolores curaram-lhe a tristeza em menos de um minuto.

— Já lá vai o Pará, disse ele alegremente.

— Sim?

Dolores agradeceu-lhe o sacrifício com um afago; abraçaram-se amorosos, como no primeiro dia. Eusébio estava contente com ter cedido; não advertiu que, se ele insistisse, Dolores embarcaria também. Ela não fez mais do que exercer a influência que tinha, para se não remover da capital; mas, assim como Eusébio sacrificou por ela o emprego, assim Dolores sacrificaria por ele o repouso. O que ambos queriam principalmente era não se separarem nunca.

Dois meses depois, veio a quadra dos ciúmes. Eusébio desconfiou de Dolores, Dolores desconfiou de Eusébio, e as tempestades desencadearam-se sobre a casa como o pampeiro do Sul. Diziam um ao outro coisas duras, algumas ignóbeis; Dolores arremetia contra ele, Eusébio contra ela; espancavam-se e amavam-se. A opinião do lugar chegava ao extremo de dizer que eles se amavam melhor depois de espancados.

— São sistemas! murmurava um comerciante inglês.

Assim se passou metade do ano de 1871. No princípio de agosto, recebeu Eusébio uma carta do tio João, que lhe dava notícia de que a mulher estava doente de cama, e queria falar-lhe. Eusébio mostrou a carta a Dolores. Não havia remédio senão ir; prometeu voltar logo... Dolores pareceu consentir, ou deveras consentiu na ocasião; mas duas horas depois, foi ter com ele, e ponderou-lhe que não se tratava de moléstia grave, se não o tio o diria na carta; provavelmente, era para tratar dos negócios da fazenda.

— Se não é tudo mentira, acrescentou ela.

Eusébio não tinha advertido na possibilidade de um invento, com o fim de o arrancar aos braços da bela Dolores, concordou que podia ser isso, e resolveu escrever. Escreveu com efeito, dizendo que por negócios urgentes não podia ir logo; mas que desejava saber tudo o que havia, não só a respeito da moléstia de Cirila, como dos negócios da fazenda. A carta era um modelo de hipocrisia. Foram com ela uns presentes para a mulher.

Não veio resposta. O tio João, indignado, não lhe respondeu nada. Cirila estava deveras doente, e a doença não era grave, nem foi longa; nada soube da carta, na ocasião; mas, quando ela se restabeleceu o tio disse-lhe tudo, ao dar-lhe os presentes que Eusébio lhe mandara.

— Não contes mais com teu marido, concluiu ele; é um pelintra, um sem-vergonha...

— Oh! tio João! repreendeu Cirila.

— Você ainda toma as dores por ele?

— Isto não é tomar as dores...

— Você é uma tola! bradou o tio João.

Cirila não disse que não; também não disse que sim; não disse nada. Olhou para o ar, e foi dar umas ordens da cozinha. Para ser exato e minucioso, é preciso dizer que, durante o trajeto, Cirila pensou no marido; na cozinha, porém, só pensou na cozinheira. As ordens que deu saíram-lhe da boca, sem alteração de voz; e, lendo daí a pouco a carta do marido ao tio, fê-lo com saudade, é possível, mas sem indignação nem desespero. Há quem afirme que uma certa lágrima lhe caiu dos olhos no papel; mas se deveras caiu, não foi mais de uma; em todo caso, não chegou a apagar nenhuma letra, porque caiu na margem, e Eusébio escrevia com margens grandes todas as suas cartas...