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Troca de datas/IV

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Dolores acabou. O que é que não acaba? Acabou Dolores poucos meses depois da carta de Eusébio à mulher, não morrendo, mas fugindo para Buenos Aires com um patrício. Eusébio padeceu muito, e resolveu matar os dois, — ou, pelo menos, arrebatar a amante ao rival. Um incidente obstou a esse desastre.

Eusébio vinha do escritório da companhia de paquetes, onde fora tratar da passagem, quando sucedeu um desastre na Rua do Rosário perto do Beco das Cancelas: — um carro foi de encontro a uma carroça, e quebrou-a. Eusébio, apesar das preocupações de outra espécie, não pôde conter o movimento que tinha sempre em tais ocasiões para ir saber o que era, a extensão do desastre, a culpa do cocheiro, para chamar a polícia, etc. Correu ao lugar; achou dentro do carro uma senhora, moça e bonita. Ajudou-a a sair, levou-a para uma casa, e não a deixou sem lhe prestar outros pequenos serviços; finalmente, deu-se como testemunha nas indagações policiais. Este último obséquio foi já um pouco interesseiro; a senhora deixara-lhe n’alma uma deliciosa impressão. Soube que era viúva, fez-se encontradiço, e amaram-se. Quando ele confessou que era casado, D. Jesuína, que este era o nome dela, não pôde reter um dilúvio de lágrimas... Mas amavam-se, e amaram-se. A paixão durou um ano e mais, e não acabou por culpa dela, mas dele, cuja violência não raras vezes trazia atrás de si o fastio. D. Jesuína chorou muito, arrependeu-se; mas o fastio de Eusébio era completo.

Esquecidas as duas, aliás as três damas, porque é preciso contar a do circo, parecia que Eusébio ia voltar à fazenda e restituir-se à família. Não pensou em tal coisa. A corte seduzia-o; a vida solta entrara-lhe no sangue. Correspondia-se com a mulher e com o tio, mandava-lhes presentinhos e lembranças, chegara mesmo a anunciar que iria para casa daí a uma semana ou duas, pelo S. João, pela Glória, mas ia-se deixando ficar. Enfim, um dia, ao mês de dezembro, chegou a preparar-se deveras, embora lhe custasse muito, mas um namoro novo o dissuadiu, e ele ficou outra vez.

Eusébio freqüentava assiduamente os teatros, era doido por francesas e italianas, fazia verdadeiros desatinos, mas como era também feliz, os desatinos ficavam largamente compensados. As paixões eram enérgicas e infrenes; ele não podia resistir-lhes, não chegava mesmo a tentá-lo.

Cirila foi-se acostumando a viver separada. Afinal convenceu-se de que entre um e outro o destino ou a natureza cavara um abismo, e deixou-se estar na fazenda, com o tio João. O tio João concordava com a sobrinha.

— Tem razão, dizia ele; vocês não nasceram um para o outro. São dois gênios contrários. Veja o que são às vezes os casamentos. Mas eu também tenho culpa, porque aprovei tudo.

— Ninguém podia adivinhar, tio João.

— Isso é verdade. E você ainda tem esperanças?

— De quê?

— De que ele volte?

— Nenhuma.

E, de fato, não esperava nada. Mas escrevia-lhe sempre, — brandamente afetuosa, sem lágrimas, nem queixumes, nem pedido para voltar; não havia sequer saudades, dessas saudades de fórmula, nada. E era isto justamente o que quadrava ao espírito de Eusébio; eram essas cartas sem instância, que o não perseguiam nem exortavam, nem acusavam, como as do tio João; e era por isso que ele mantinha constante e regular a correspondência com a mulher.

Um dia, — passados cinco anos, — Cirila veio à corte, com o tio; esteve aqui cinco ou seis dias e voltou para a roça, sem procurar o marido. Este soube do caso, disseram-lhe que ela estava em certo hotel, correu para lá, mas era tarde. Cirila partira no trem da manhã. Eusébio escreveu-lhe no dia seguinte, chamando-lhe ingrata e esquecida; Cirila desculpou-se em dizer que tivera necessidade urgente de voltar, e não se falou mais nisso.

Durante esse tempo a vida de Eusébio continuara no mesmo diapasão. Os seus amores multiplicavam-se, e eram sempre mulheres tão impetuosas e ardentes, como ele. Uma delas, leoa ciumenta, duas ou três vezes lutara com outras, e até o feriu uma vez, deitando-lhe à cara uma tesoura. Chamava-se Sofia, e era rio-grandense. Tão depressa viu o sangue rebentar do queixo de Eusébio (a tesoura apanhara de leve essa parte do rosto) Sofia caiu sem sentidos. Eusébio esqueceu-se de si mesmo, para correr a ela. Voltando a si, ela pediu-lhe perdão, rojou-se-lhe aos pés, e foi curá-lo com uma dedicação de mãe. As cenas de ciúmes reproduziram-se assim, violentas, por parte de ambos.

Rita foi outra paixão de igual gênero, com iguais episódios, e não foi a última. Outras vieram, com outros nomes. Uma dessas deu lugar a um ato de delicadeza, realmente inesperado da parte de um homem como aquele. Era uma linda mineira, de nome Rosária, que ele encontrou no Passeio Público, um sábado, à noite.

— Cirila! exclamou ele.

Com efeito, Rosária era a cara de Cirila, a mesma figura, os mesmos ombros; a diferença única era que a mulher dele tinha naturalmente os modos acanhados e modestos, ao passo que Rosária adquirira outras maneiras soltas. Eusébio não tardou em reconhecer isso mesmo. A paixão que esta mulher lhe inspirou foi grande; mas não menor foi o esforço que ele empregou para esquecê-la. A semelhança com a mulher constituía para ele um abismo. Nem queria ao pé de si esse fiel traslado, que seria ao mesmo tempo um remorso, nem também desejava fitar aqueles costumes livres, que lhe conspurcavam a imagem da mulher. Era assim que ele pensava, quando a via; ausente, voltava a paixão. Que era preciso para vencê-la, senão outra? Uma Clarinha consolou de Rosária, uma Luísa de Clarinha, uma Romana de Luísa, etc., etc.

Não iam passando só as aventuras, mas os anos também, os anos que não perdoam nada. O coração de Eusébio tinha-se fartado de amor; a vida oferecera-lhe a taça cheia, e ele embriagara-se depressa. Estava cansado, e tinham passado oito anos. Pensou em voltar para casa, mas como? A vergonha dominou-o. Escreveu uma carta à mulher, pedindo-lhe perdão de tudo, mas rasgou-a logo, e ficou. O fastio veio sentar-se ao pé dele; a solidão acabrunhou-o. Cada carta de Cirila trazia-lhe o aroma da roça, a saudade de casa, a vida quieta ao lado da esposa constante e meiga, e ele tinha ímpetos de meter-se na estrada de ferro; mas a vergonha...

No mês de outubro de 1879, recebeu uma carta do tio João. Era a primeira depois de algum tempo; receou alguma notícia má, abriu-a, e preparou-se logo para seguir. Com efeito, Cirila estava doente, muito doente. No dia seguinte partiu. Ao ver, à distância, a fazenda, a casa, a capelinha, estremeceu e sentiu alguma coisa melhor, menos desatinado do que os anos perdidos. Entrou em casa trôpego. Cirila estava dormindo quando ele chegou, e, apesar dos pedidos do tio João, Eusébio foi ao quarto, pé ante pé, e contemplou-a. Saiu logo, escondendo os olhos; o tio João apertou-o nos braços, e contou-lhe tudo. Cirila adoecera de uma febre perniciosa, e o médico disse que o estado era gravíssimo, e a morte muito provável; felizmente, naquele dia de manhã, a febre cedera.

Cirila restabeleceu-se em poucos dias. Eusébio, durante os primeiros, consentiu em não ver a mulher, para lhe não produzir nenhum abalo; mas já sabemos que Cirila tinha os abalos insignificantes. Estendeu-lhe a mão, quando ele lhe apareceu, como se ele tivesse saído dali na semana anterior; tal qual se despedira antes, quando ele foi para a guerra.

— Agora é de vez? perguntou o tio João ao sobrinho.

— Juro que é de vez.

E cumpriu. Não se pense que ficou constrangido, ou com o ar enfadado de um grande estróina que acabou. Nada; ficou amigo da mulher, meigo, brando, dado ao amor quieto, sem explosões, sem, excessos qual o de Cirila. Quem os via podia crer que eram as duas almas mais homogêneas do universo; pareciam ter nascido um para o outro.

O tio João, homem rude e filósofo, ao vê-los agora tão unidos, confirmou dentro de si mesmo a observação que fizera uma vez, mas modificando-a, por este modo: — Não eram as naturezas que eram opostas, as datas é que se não ajustavam; o marido de Cirila é este Eusébio dos quarenta, não o outro. Enquanto quisermos combinar as datas contrárias, perdemos o tempo; mas o tempo andou e combinou tudo.