Ubirajara/III
Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos olhos negros.
Seu canto foi o primeiro que saudou o nascer do dia e acordou em seu ninho a viuvinha.
A doce filha de Majé saltou da rede que embalara os sonhos castos da virgem; e despediu-se dela como a jaçanã que deixa a moita para habitar o ninho do amor.
A virgem araguaia acreditava ter dormido a última noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do esposo.
O jovem caçador que a amava, Jaguarê, fora aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros, o chefe da nação.
Como guerreiro ele pode tomar uma esposa; e como chefe pertence-lhe a virgem de sua escolha, entre as mais formosas da taba.
Ainda que a virgem tenha um noivo, ou que o pai a destine a outro, se o chefe a deseja, a vontade de Tupã é que lhe pertença.
Tupã assim ordena para que os grandes chefes possam gerar de seu sangue os mais belos e valentes guerreiros.
Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão o jovem caçador a quem amava.
Ela o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe, há de vir buscá-la.
Então a virgem se despedirá de Majé; e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rede da esposa.
Ligeira e contente, corre a banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo e unge-se com o óleo fragrante do sassafrás.
Ela quer que o destemido guerreiro ache seu amor saboroso como o vinho que espuma na taça e ferve nas veias.
Tornando à cabana, perfumou de beijoim a larga rede que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as penas do guará.
Essa rede tinha duas vezes o tamanho de sua rede de virgem porque era a rede do casamento em que devia receber o esposo.
Depois arrumou no uru a louça que havia fabricado para o serviço do guerreiro, e que devia transportar à sua nova cabana.
Quando terminou todos os preparativos, encostou-se à porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.
Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha subido além da crista da serra.
A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria que lhe afogara os sonhos da noite fugia agora da alma de Jandira.
Então a filha de Majé partiu em busca do noivo que a esquecera.
No mais escuro da mata, vaga o chefe dos araguaias.
Seus olhos fogem à luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imagem que traz na lembrança. A noite, quando o guerreiro dormia em sua rede solitária, Araci, a linda virgem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:
- Jaguarê, jovem caçador, tu dormes descansado enquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virgem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.
Ele erguera-se para segui-la; mas a virgem formosa desferiu a corrida veloz através da campina e desapareceu na floresta.
Neste ponto do sonho o guerreiro acordara.
Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lágrima de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de Araci, a filha da luz.
A juriti arrulhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se da voz maviosa da virgem do sol.
O guerreiro tornou à rede, esperando achar ali outra vez o sonho que visitara sua alma; porém o sono fugira de seus olhos.
Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no mais espesso da mata a sombra propícia à saudade.
Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande rio, onde devia ficar a taba dos tocantins.
É assim que os coqueiros, imóveis na praia, inclinam para o nascente seu verde cocar.
Ubirajara ouviu o rumor de um passo ligeiro através da mata; de longe conheceu Jandira que o procurava.
A doce virgem achara à porta da cabana o rasto do guerreiro e o seguira através da floresta.
- Que mau sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para que ele se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera?
- A tristeza entrou no coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda virgem.
- A tristeza é amarga; quando entra no coração do guerreiro o enche de fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a abelha, ela fabricará em seus lábios, os favos mais doces para seu guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ela derramará na alma do esposo.
- Filha de Majé, doce virgem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara escolha uma esposa; nem ele sabe ainda qual o seio que Tupã destinou para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.
O lábio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.
A virgem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se dela, e que de todo o perderia se o não defendesse.
Então escondeu a dor no fundo da alma e chamou o riso a seus lábios, a alegria a seus olhos.
Ela sabia que os guerreiros amam a flor da formosura, como a folhagem da árvore; e que a tristeza murcha a graça da mais linda virgem.
- Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezas Jandira que outrora escolheste para tua noiva. Se então ela era formosa a teus olhos, mais formosa se fará para merecer teu amor. Tu gostavas de seus cabelos negros que arrastam no chão; ela os entrançará com as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos negros que te falavam, ela os cercará de uma listra amarela como os olhos da jaçanã. Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que bebas nela o contentamento.
Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os lábios mudos do guerreiro não se abriram.
- Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flor no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor. Nestes peitos que te pertencem, ela os nutrirá com seu sangue, não menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior dos anciões, depois de Camacã. Seus braços, que outrora querias para tua cintura, não servirão unicamente para te abraçarem, mas também para te servirem. Tua esposa te acompanhará por toda parte, na taba, como no campo do combate; ela cuidará de tua cabana; aprontará as mais saborosas iguarias para seu guerreiro, e fabricará para ele o vinho, que a alma da festa.
- Jandira é a mais bela das virgens araguaias. Seu amor fará a ventura de um guerreiro valente. Ubirajara não podia achar para si uma esposa mais fiel; nem para seus filhos outra mãe tão fecunda. Mas a noite desceu em sua alma. Só a estrela do dia pode restituir-lhe a alegria que o abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro que tenha olhos para a sua formosura.
Pojucã sentou-se pensativo à porta da cabana.
O semblante, sempre grave, como convém a um chefe, cobre-se de tristeza.
A noite que foge da terra, vencida pelo sol, parece recolher-se na alma do chefe tocantim.
Não é sua ferida que o faz sofrer. O bálsamo suave da embaíba sara rapidamente os golpes mais profundos; e os varões tocantins aprendem desde o berço a desprezar a dor.
E em seu coração de guerreiro que Pojucã sente as garras do Anhangá.
O revés de ser vencido e cair prisioneiro, ele o suporta como o varão forte que viu prostrados por Aresqui, no campo da batalha, os mais terríveis guerreiros.
A grandeza do vencedor o consola; resta-lhe ainda a glória de ter resistido a um braço como o de Ubirajara, grande chefe dos araguaias.
Mas ele esperava que depois de haver ornado com sua presença a festa do triunfo, o vencedor fosse generoso, e lhe concedesse a honra do sacrifício.
É o temor de que Ubirajara lhe recuse uma morte gloriosa e o retenha cativo, que nesse momento acabrunha o chefe dos tocantins.
Ele, um guerreiro livre, que pisara outrora como senhor aqueles campos, reduzido à condição de escravo?
Ele, um varão chefe, que tinha na obediência de seu arco mais de mil guerreiros valentes, obrigado a reconhecer um dono?
Ele, que afrontava a cólera de Tupã, quando o deus irado rugia do céu, curvar-se ao aceno de um homem, fosse, embora, o mais pujante dos filhos da terra?
Pojucã estremecia quando se lembrava que podia ser condenado a tão grande humilhação.
Em seu terror promovia o passo, com o ímpeto de fugir para sempre da taba dos araguaias, onde o ameaçava aquela vergonha.
Mas uma força invencível atava-lhe a vontade. Ele não se pertencia desde o momento em que Ubirajara calcou-lhe a mão direita no ombro.
Esse era o sinal da conquista, que prendia o vencido ao vencedor; aquele que violasse a lei da guerra, perderia para sempre o nobre título de guerreiro.
O desprezo do inimigo o acompanharia aos seus nativos; e a taba de seus irmãos não se abriria para o fugitivo que houvesse desonrado o nome de sua nação.
Por isso, na cabana solitária, Pojucã está mais guardado do que se o cercasse a multidão dos guerreiros araguaias.
Vela ele próprio em si, porque vela em sua fama.
Pode Ubirajara esquecê-lo que na volta o encontrará ali onde o deixou.
Nada o arrancará da cabana; nem a necessidade de buscar o alimento para o corpo.
Bem-vinda será a fome, se durar tanto que prostre seu corpo robusto, e o entregue ao seio da terra, onde o guerreiro dorme o sono da glória.
Além, rompe da selva Ubirajara, que se encaminha para a cabana com o passo rápido.
Segue-o de perto Jandira, como a gentil corça acompanha o caçador, que roubou-lhe o companheiro.
Descobrindo o chefe dos araguaias, Pojucã encerrou a tristeza dentro de sua alma; e chamou ao rosto a altivez dos grandes guerreiros.
O chefe tocantim não queria que seu vencedor se regozijasse de ter-lhe abatido o ânimo inflexível.
Quando Ubirajara aproximou-se da cabana, Pojucã tomou-lhe o passo.
- Ubirajara, senhor da lança, grande chefe da nação araguaia, não confessaste tu, diante dos anciões das tabas e de todos os teus guerreiros, que Pojucã era o varão mais forte e o mais terrível no combate, que o sol tinha visto até o momento de ser vencido por ti?
- Ubirajara o disse. É a voz da nação araguaia.
- Desde que tu cruzaste comigo a seta do desafio até este momento, Pojucã, guerreiro varão, e chefe de uma taba na valente nação dos tocantins, mostrou-se pela sua constância e valor digno do sangue de seus avós?
- Pojucã o disse, e a fama o repete.
- Então, por que Ubirajara, o grande chefe dos araguaias, não concede a Pojucã a morte gloriosa, que os tocantins jamais recusaram a um guerreiro valente, e que somente se nega aos fracos? Já não serviu Pojucã à tua glória na festa do triunfo? Esperas dele que te obedeça como um escravo? Se aviltas o varão a quem venceste, humilhas o teu valor que ele exaltava.
O grande chefe araguaia ouviu sem interromper o prisioneiro e respondeu com gravidade;
- Ubirajara não recusa ao bravo chefe tocantim, seu terrível inimigo, o suplício, que não negaria a qualquer guerreiro valente. Ele esperava que tua ferida se fechasse de todo, para que o grande Pojucã possa, no dia do último combate, sustentar a fama de seu nome, e a glória de um varão que só foi vencido por Ubirajara.
O grande chefe dos araguaias levou aos lábios a inúbia de Camacã; a voz do mando reboou pelo vasto âmbito da taba.
Apareceram vinte jovens guerreiros, a quem ele ordenou que chamasse a conselho os anciões.
Depois tornou ao chefe tocantim;
- Os araguaias receberam de seus avós o costume das nações que Tupã criou. Eles destinam ao prisioneiro a mais bela e a mais ilustre de todas as virgens da taba, para que ela conserve o sangue generoso do herói inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua nação.
"É esta também a lei, que os guerreiros tocantins observam em suas tabas.
A mais bela e a mais nobre de todas as virgens araguaias, aquela que se ergue como a palmeira no meio da campina coberta de flores, é Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces favos da abelha.”
Travando então do pulso de Jandira, que ali ficara presa de sua vista, levou-a ao prisioneiro.
- Recebe-a como esposa do túmulo.
Jandira, que ouviu espavorida aquelas palavras, quis fugir; porém a mão do chefe araguaia a reteve.
- Ubirajara parte, mas ele voltará para assistir a teu suplício e vibrar-te o último golpe. Pojucã terá a glória de morrer pela mão do mais valente guerreiro.
Ficaram Jandira e Pojucã em face um do outro.
- Virgem dos araguaias, Tupã te reservou para esposa do mais terrível dos inimigos de tua nação. O filho de seu sangue será o mais valente dos guerreiros; tu sentirás orgulho por havê-lo gerado em teu seio.
- Pojucã, chefe tocantim, Jandira nunca será tua esposa.
- Não é Ubirajara o chefe de tua nação, e não te destinou ele para servir de noiva do túmulo ao guerreiro que vai morrer no suplício?
- Ubirajara é o grande chefe da nação araguaia; à sua voz cala-se a palavra dos anciões; a seu gesto curva-se a fronte dos guerreiros; à sua vontade obedecem as tabas. Mas no amor de Jandira, ninguém manda, nem Tupã. Jandira é noiva de Ubirajara, e se ele não quiser aceitá-la, o guanumbi a levará para os campos alegres onde repousam as virgens que morreram.
- Pojucã não carece do amor de Jandira. Nas tabas dos tocantins, a mais bela das virgens se regozijaria de pertencer ao mais valente dos chefes e de habitar sua rede. Nas tabas dos araguaias, onde nascem guerreiros como Ubirajara, não faltarão virgens formosas, que desejem a glória de ser mãe de um filho de Pojucã.
- Jandira seria a primeira, se não conhecesse Jaguarê, o mais belo dos jovens caçadores, que é hoje Ubirajara, o senhor da lança e chefe dos chefes. Pojucã merece uma esposa que nunca tenha ouvido o canto de outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno dele.
- Os ritos de tua nação não punem a noiva que rejeita o prisioneiro?
- Jandira sabe que sujeita-se à morte; mas a morte é menos cruel do que o abandono.
- Então foge, virgem dos araguaias; e esconde-te à cólera dos anciões. Talvez mais tarde Ubirajara se arrependa e te perdoe.
- Jandira parte. Ela te deseja uma esposa terna e a morte gloriosa.
A filha de Majé penetrou na floresta e afastou-se rapidamente da taba.
Quando já estava muito longe, sentou à sombra de um manacá coberto de flores e cantou:
- Eu fui Jandira, a linda abelha, que fabricava os favos de cera para enchê-los de mel saboroso.
"Agora arrancaram-me as minhas asas com que eu voava pela campina colhendo o pó das flores e secou a doçura de meu sorriso.
O canto que saía de meu seio era como o da patativa ao pôr-do-sol, quando se recolhe em seu ninho de paina macia.
Agora eu queria ter no coração uma serpente para morder aquela que roubou-me o amor de meu guerreiro.
Guardei a minha formosura para orgulho do esposo, e inveja dos outros guerreiros.
Agora eu trocaria a flor do meu rosto por um aspecto terrível que infundisse pavor.
Meus seios mais lindos que os botões do cardo, por um peito feroz, e as mãos ligeiras que tecem os fios do algodão pelas garras do jaguar.
Eu fui Jandira, o manacá viçoso que se vestia de flores azuis e brancas.
Agora sou como a juçara que perdeu a folha, e só tem espinhos para ferir aqueles que se chegam.”
Os anciões já estavam reunidos na oca do conselho, quando Ubirajara entrou.
Falou Camacã:
- Ubirajara, senhor da lança, chefe dos chefes, os pais da grande nação araguaia escutam a tua voz.
O grande chefe três vezes bateu no chão com a ponta do arco e disse:
- Pojucã, o chefe tocantim, pede a morte do combate; ele a merece, porque é um grande guerreiro e um varão ilustre. Ubirajara concedeu-lhe essa honra, como seu vencedor.
- Ubirajara é um inimigo generoso, respondeu Camacã.
Todos os anciões inclinaram gravemente a cabeça encanecida para exprimirem sua aprovação às palavras de Camacã.
Prosseguiu Ubirajara:
- É tempo de escolher para o prisioneiro uma esposa digna de acompanhar em seus últimos dias ao herói inimigo, e de ser mãe do marabá, o filho da guerra.
Todos os abarés desejavam para si a glória de oferecer uma filha ao prisioneiro.
- Ubirajara destinou-lhe Jandira, filha de Majé. Ela o merece por sua formosura e pelo sangue do grande guerreiro que gira em suas veias.
- Ubirajara é um grande chefe, disse Camacã.
Os anciões aprovaram outra vez com a cabeça; Majé acrescentou:
- O sangue do velho Majé não desmentirá em Jandira a fama da nação araguaia.
- Não! disse Ubirajara, e todos os anciões repetiram-Não! O grande chefe tornou com a voz pausada;
- Celebrai a cerimônia da entrega da esposa ao prisioneiro. Ubirajara parte; só estará de volta na próxima lua para assistir ao suplicio de Pojucã. Se na ausência de Ubirajara cair na taba a flecha, núncia da guerra, conduzi o trocano ao sitio onde se abraçam os grandes rios e soltai a voz da nação araguaia. Nesse dia Ubirajara será convosco.
Os prudentes anciões, com a cabeça inclinada para melhor ouvir, recebiam as palavras do grande chefe e as guardavam na memória.
Quando Ubirajara calou-se, Camacã repetiu, ainda mais pausado, as recomendações do filho. - É esta a vontade de Ubirajara?
- Tu o disseste.
- Os anciões guardaram a palavra do chefe dos chefes? perguntou ainda Camacã.
- Ela entrou no espírito dos abarés, como a raiz no seio da terra; observou Majé.
- Bem dito; repetiram todos.
Ubirajara saiu do carbeto; após ele os anciões se retiraram lentamente.