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Um almoço/I

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A manhã era das mais puras, frescas e transparentes manhãs do nosso inverno. Não havia sequer um retalho de neblina; o céu estava azul e nu, o sol pacato, a temperatura deliciosa. O Passeio Público convidava a ir gozar ali um pouco de ar e meia hora de silêncio, por isso mesmo estava deserto. Deserto, não. Havia ali um passeador matinal, um só, mas justamente o único de que precisamos para este caso vulgaríssimo.

Chamava-se este passeador Germano Seixas, homem de quarenta e dois anos, mal trajado, pálido e abatido. A passo lento ia ele, cabisbaixo e triste, por uma das alamedas fora, desandando o caminho logo que chegava ao fim, parando a espaços, fitando uma coisa no ar, uma coisa invisível que podia ser um problema ou um consoante, e era nada menos que esse dilema nu e cru: comer ou morrer.

Sim, leitor amigo, Germano Seixas não come há vinte e quatro horas, e acha-se atualmente entre um almoço problemático e um suicídio certo. O estômago e a eternidade o solicitam com igual persistência. Ele cogita, indaga, esmerila a possibilidade de acudir às urgências do estômago; mas nada vê, nada sequer o ilude.

Numa das vezes que voltava a andar, viu surgir-lhe em frente um sujeito conhecido; quis esconder o rosto, mas não pôde. Era tarde.

— Oh! Germano! disse o novo passeante, que fazes aqui a esta hora?

— Eu?... eu...

— Eu quê?

— Ando tomando fresco...

— Pois está calor?

— Talvez... creio que sim...

— Ora essa! Eu ia agora passando pela rua, vi-te a filosofar e entrei. Há quantos meses não nos vemos?

— Uns oito, talvez...

— Upa! Há mais. Mas, enfim, oito ou dez, não importa.

O novo personagem era um sujeito cheio, trajado com limpeza ainda que sem gosto, corado, satisfeito, em paz com a natureza. Apesar de ser ainda muito cedo, trazia um palito na boca, sinal de que almoçara.

Seu nome era José Marques.

Germano olhava para o palito, com que José Marques brincava — olhar de inveja e desespero. Mas o dono do palito não dava por isso; extraía a boceta do bolso e tomava uma pitada.

— Queres?

Uma pitada a um que deseja um bife é certamente a mais pungente ironia do mundo. Germano nem teve ânimo de falar; recusou com um gesto.

— Que tens, homem? disse José Marques; acho-te assim um pouco...

Parou.

Seixas olhou para ele, para o chão, para as grades, para os bambus, e só depois destes círculos e retas murmurou a medo:

— Marques, eu estou... estou...

— Estás? Acaba.

— Adeus!

E deu alguns passos.

— Onde vais? clamou José Marques acompanhando-o.

— Para a eternidade!

José Marques alcançou o infeliz deitando-lhe a mão à aba da sobrecasaca. Germano não resistiu, mas não pôde encará-lo.

— Que é isso, homem? disse José Marques com ar de amigável repreensão. Morrer! Pois és tão fraco, tão covarde...

— Não é covardia, é miséria, é fome. Ouve-me. Desde ontem não como nada. Sou chegado a uma terrível situação, desesperada e morta. Minha vida tem sido uma luta impossível com a fatalidade; já não posso lutar; sucumbo. Você pode impedir que hoje me atire à morte, mas amanhã, mas depois, um dia há de vir em que o meu destino tem de cumprir-se.

José Marques ouviu enfiado a narrativa de Germano. Olhou para ele, e leu no rosto o comentário das palavras. A fome e o suicídio davam-se as mãos naqueles olhos encovados e desvairados. José Marques achou em si um bom sentimento, que exprimiu em tom rude:

— Ora vamos! Não sejas tolo! Um homem deve ser superior à fortuna, sem o que não pode ser homem. É preciso contar com a Providência...

— A Providência! interrompeu Germano.

— Sim, porque foi ela que me mandou aqui. Um almoço! Pois a gente mata-se por um almoço! Anda comigo; eu lutarei com a tua sorte, e vencê-la-emos.

Seixas sentiu-se enternecido ao ouvir aquelas palavras de José Marques. Aceitou a mão que este lhe estendeu e apertou-a entre as suas. Na pálpebra fatigada fulgiu uma lágrima de gratidão.

— Marques! exclamou ele com a voz trêmula. Ainda tenho um amigo.

— Um amigo que vale por dez homens. Anda daí!

Marques puxou-o pelo braço e os dois saíram do Passeio Público. Em caminho, Germano referiu a José Marques todos os seus infortúnios daqueles dez ou doze meses. Era um fio interminável de desgraças e contratempos; tentara todos os meios de vida ao alcance de suas habilitações, havendo-se em todos com mais fervor que fortuna; ultimamente servira de guarda-livros em uma loja de São Cristóvão, que faliu quinze dias depois de lá entrar. Vivia afinal de empréstimos e fiados. Mas isso mesmo cessou; a ponto de achar-se entre a vida e a morte naquela funesta manhã.

José Marques ouviu a narração do amigo sinceramente comovido. Interrompia-o para lhe dar ânimo e confiança.

— Agora as coisas mudam, dizia ele; eu vou corrigir tudo isso.

Entraram num hotel, onde Germano almoçou razoavelmente, combinando quanto possível a discrição com as exigências do estômago. Os empregados notaram a intimidade de Marques com o maltrapilho, e acharam singular que se tuteassem dois homens, um dos quais parecia não ter o preconceito do lenço de assoar. Mas, ao cabo de tudo, como o almoço era farto e a paga certa, serviram a Germano com a mesma solicitude com que o fariam a outro freguês mais apurado.

No corredor do hotel, Germano disse a José Marques:

— Deste-me a vida; sinto agora que era uma loucura o que ia fazer. Com que expressões te agradecerei tamanho benefício?

— Ora, adeus, redargüiu José Marques. Vou daqui à praça. Aparece daqui a duas horas no armazém.

— Sim.

— Onde moras?

— No .

— Bem; vai ao armazém daqui a duas horas.