Um almoço/II

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Duas horas depois Germano entrava no armazém de José Marques. A esperança iluminava os olhos, até pouco antes sombreados de suicídio. Não obstante, entrou constrangido e envergonhado.

José Marques manteve a palavra e desempenhou o papel que a Providência lhe confiara naquela manhã. Chamou Germano ao escritório, e aí lhe ofereceu um lugar de guarda-livros em casa de um seu amigo.

— Aceitas?

— Se aceito!

— Pois estás arranjado.

— Mas... como...

— Não digas nada! Não quero ouvir observações nem dar explicações. Achei-te hoje à beira da morte por falta de um almoço; dei-te o almoço. Mas como a situação pode repetir-se amanhã ou depois, ou em outro qualquer dia ofereço-te, dou-te agora uma coleção de almoços, que te hão de livrar da morte!

José Marques disse isto batendo-lhe com a mão no ombro, e rindo do ar acanhado de Germano, que não sabia se havia de olhar para ele, se para o chão.

— Sou amigo, não? perguntou Marques rindo.

— Imenso!

— Um bom amigo, não é?

— Excelente.

— Amigo para as ocasiões, porque isto de fazer obséquios em circunstâncias ordinárias não é grande mérito. O mérito é fazê-los nas ocasiões graves e solenes.

— Justamente.

— Por exemplo, esta. Vi-te de longe triste e cabisbaixo; entrei; soube que a causa da tua tristeza era não teres comido ontem. Imediatamente acudi às duas precisões que tinhas; comer logo alguma coisa, e obter um emprego...

— É verdade, meu bom Marques, disse Germano; vejo que ainda te lembras de mim, que apesar da minha miséria...

— Qual, miséria!

— Vejo que, embora maltrapilho...

— Maltrapilho! exclamou José Marques inspecionando a roupa do amigo. Não estás finamente vestido, mas... mas precisas de mudar isso... é verdade, precisas...

— Irei ganhar o meu primeiro mês.

— Oh! não te apresentes assim em casa do Madureira. Chama-se Madureira o dono da casa para ondes vais. Não te apresentes assim que não te há de acreditar.

— Entretanto...

— Arranjaremos roupa; não se há de perder a viagem por falta de uma vela latina...

José Marques riu-se da graça que achou em si próprio, empregando aquela imagem náutica, e levou o amigo a uma casa de roupa, à ; mas o novo guarda-livros não ousou ir além de uma andaina de roupa, não só porque tinha vergonha de abusar dos obséquios de José Marques, como porque, examinando casualmente um segundo paletó, viu o dono da casa menos solícito do que quando ele escolheu o primeiro. Que importa? Um paletó bastava para trinta dias; rigorosamente sobrava.

Despedidos os dois, encaminhou-se Seixas para o Beco do Cotovelo, com a roupa debaixo do braço, e a alma nadando em gratidão.

— Oh! dizia ele consigo, há ainda almas generosas neste mundo! A caridade, a afeição, os bons sentimentos não fugiram dele. Nobre Marques! Não se envergonhou de apertar a mão e ajudar a um antigo companheiro de balcão, menos feliz que ele! Menos feliz, muito menos! Ele está bem, pode liquidar, se quiser, ao passo que eu não tenho para comer. O que são destinos! Deus queira que isto agora não seja simples aragem de fortuna. Farei o que puder, e é a última experiência; se falhar...

O pensamento não ousou concluir a frase.

No dia seguinte apresentou-se Seixas em casa de Madureira e tomou posse do cargo. O patrão simpatizou desde logo com o guarda-livros, ou foi talvez prevenido pela narração que José Marques lhe fizera de seus infortúnios. O certo é que o tratou com excepcional benevolência, correspondendo Seixas desde logo e estabelecendo-se entre ambos uma amizade, que devia aproveitar mais tarde ao ex-suicida do Passeio Público.

— Então, que tal parece o Seixas? Perguntava José Marques três dias depois a Madureira.

— Um excelente homem!

— Não é verdade?

— Excelente; ao menos por ora a impressão é esta.

— E continuará a sê-lo.

— Zeloso, cortês, inteligente...

— Verás; é uma pérola. Se não fosse eu, talvez a esta hora...

— Pobre rapaz!

— Já te contei que o salvei da morte?

— Já, já.

— Pois é verdade, se passo ali meia hora depois, era homem morto.

— Praticaste uma boa ação, Marques.

— Oh!... Não falemos nisso.

— E podes crer que ele te é grato. Ainda hoje, perguntando-lhe eu, à mesa do almoço, se te conhecia há muitos anos, falou de ti com um entusiasmo! um ardor!...

— Sim?

— Não imaginas.

José Marques não escondeu, nem procurou fazê-lo, a boa impressão que lhe causara a notícia de Madureira. Afagou as barbas, abotoou e desabotoou o paletó, enfim expectorou este aforismo:

— A verdadeira paga do benefício é a gratidão do beneficiado.

— Não há outra, opinou Madureira. Infelizmente, são raros os agradecidos.

— Raríssimos, confirmou José Marques. Eu, pela minha parte, tenho visto poucos. Mas não me engano com aquele. O Seixas nunca se há de esquecer de mim. Nem é fácil. Tu eras capaz de esquecer um homem que te desse a vida e o pão?

— Nunca.

— Pois!

No fim do mês Seixas foi ter com José Marques para lhe dizer que amortizara parte da dívida contraída na loja de roupa. Havendo algumas pessoas presentes, não quis ele dizer logo ao que vinha; José Marques apressou-se a chamá-lo de parte, onde lhe ouviu a boa notícia.

— Não havia pressa, observou ele.

— Convém pagar quanto antes. Todas as dívidas devem ser pagas; esta mais depressa que as outras, porque é preciso desempenhar a tua honrada palavra, e ao mesmo tempo mostrar que não lançaste a semente do benefício em terra estéril...

— Quem te diz isso, homem? Estás contente com o Madureira?

— Estou.

— Também ele contigo.

— Sim? Tanto melhor.

— Agora, é fazeres por ser bom cavalheiro. Eu digo de ti o que devo e mereces, porque não entendo que a prova de amizade consista somente em certos benefícios. Nem só de pão vive o homem. Vive de pão e de crédito. O Madureira sabe o que és e o que vales.

— Obrigado, Marques! disse Seixas estendendo-lhe a mão.

— Onde vais?

— Vou à casa.

— Espera um pouco...

— Se puderes dispensar-me era favor.

— Tens algum negócio urgente?

— Urgentíssimo.

Seixas saiu e dirigiu-se para o Beco do Cotovelo, entrou em casa e lá ficou até o dia seguinte. Era noite; ocupou-se em apurar um assunto de que trataremos no capítulo seguinte.