Um almoço/III

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Seixas não fora sempre combatido da fortuna. Tempo houve em que a cidade o viu brilhar entre os elegantes de calças cor de flor de alecrim. Dotado de aceitável figura, de uns olhos insinuantes e vivos, feriu alguns corações ingênuos, que em vão esperaram o bálsamo matrimonial. Muitos deles recorreram a outros; alguns ainda esperam boticário próprio. Um desses, em despeito das posturas canônicas e civis, aceitou os conselhos de Seixas, curandeiro de má morte, que transviou o irrefletido coração, de que tudo resultou uma menina gentil como os amores. A menina e a mãe viviam em casa de uma velha parenta, casa que Seixas freqüentou algum tempo, mas de onde o arredaram os lances da fortuna.

Na véspera do dia em que José Marques o encontrou no Passeio Público, Seixas fora ver a sua Elvirinha, criança de quinze anos, de quem se despediu com lágrimas, no meio de grande espanto da mais família, que não atinou logo com a causa daquela aflição. Era a despedida da morte. Arrancado a tempo do fatal abismo em que ia cair, Seixas lembrava-se agora da filha, e sonhava uma família e uma casa. O sonho não combinava muito com a realidade. Seixas compreendia perfeitamente que a sua sorte era ainda mais precária que os recursos. Mas ao mesmo tempo uma esperança vaga lhe falava no coração, voz consoladora ou pérfida, a última felicidade dos desamparados. Era esta voz que lhe contava antecipadamente as alegrias do futuro, dizendo-lhe à guisa das feiticeiras de Macbeth: — Tu serás sócio do Madureira!

A predição não era extravagante. Madureira tratava-o com tamanha benevolência e distinção, que a idéia de o fazer seu sócio podia nascer-lhe um dia de manhã, sem pasmo para ninguém.

Seixas não falou nisso a José Marques. Ia vê-lo todas as semanas, falavam de várias coisas, mas nunca daquela esperança acariciada no peito do guarda-livros.

As visitas de Seixas a José Marques, hebdomadárias durante os primeiros três meses, passaram a ser quinzenais, depois mensais, depois casuais. Seixas melhorara a olhos vistos, nas cores e no vestuário. Logo que pôde contraiu de novo o vício do charuto, deixado algum tempo antes do projeto do suicídio. José Marques folgava em contemplá-lo... Nunca houve joalheiro que olhasse com mais amor e desvanecimento para uma obra sua. Dir-se-ia que ele o inventara.

— Agora, sim! estás outro! exclamava ele. Olhem-me estas bochechas! Quem diria que são as mesmas faces encovadas e amarelas daquele pobre Seixas do ano passado? Não te vexes de ser gordo, homem!

— Pois eu havia de vexar-me? murmurava o guarda-livros.

— Parece! estás assim não sei como...

— São os teus olhos!

E logo que se separavam:

— É insuportável este Marques, dizia Seixas consigo; é um verdadeiro língua-de-trapo!

Um dia José Marques foi ter com Seixas, a pedir-lhe para entrar de irmão em uma ordem terceira.

— Não sei se posso agora fazê-lo, disse este; meus recursos...

— Não são muitos, mas espero que me não recuses isso; é um benefício para ti...

Seixas cedeu; José Marques contou mais um argumento para o caso das vantagens dadas pelo compromisso da ordem em favor dos que lá metessem certo número de irmãos. No mesmo dia em que Seixas foi proposto e admitido, José Marques procurou-o em casa, que já não era no Beco do Cotovelo, mas na .

— Com que então, tens pouco recursos? disse ele logo que entrou.

— Bem o sabes.

— Maganão!

— Que queres dizer com isso?

— Velhaco!

— Mas...

— Pelintra!

— Acaba!

— Ainda em cima dissimulado! Já não tens em mim um amigo na vida e na morte; esquivas-me; desprezas-me...

— Explica-te.

— Não sabes nada? Não sabes que o Madureira...

— Que tem?

— Vejo que ignoras tudo. Pois fica sabendo que ele quer dar-te interesse na casa...

— O Madureira?

— Disse-mo hoje. Escuso acrescentar que o aprovei em tudo e por tudo... Estás contente? Dá cá esses ossos.

José Marques abriu os braços a Seixas, que o chegou ao peito com a mesma ternura com que abraçaria um jacaré. Mas, alegrando-o a notícia, havia em seu rosto uma expressão de bem-aventurança que o amigo saboreou deliciosamente.

— Quando eu dizia que havíamos de vencer a sorte! exclamou José Margues.

Seixas não se deu por achado, a primeira vez que esteve com Madureira; nem perdeu com isso. Daí a dias, Madureira comunicou-lhe o projeto, que o outro ouviu com o reconhecimento próprio da ocasião.

Afigurando-se-lhe mais propícia a estrela, Seixas resolveu definitivamente trazer para sua companhia a filha Elvira e sua mãe. Antes de o fazer, expôs todo o seu passado a Madureira, e comunicou a intenção que tinha de consagrar pelas bênçãos da Igreja as relações que o coração atara entre ele e a senhora D. Lúcia do Carmo. Aprovou-o o negociante. Assim se fez, e um mês depois recebiam-se os dois na igreja da Candelária, sendo padrinhos Marques e Madureira. A princípio Seixas só se lembrara do segundo; mas este fez-lhe ver que era conveniente convidar igualmente José Marques. O guarda-livros cedeu, e o casamento celebrou-se, não sabendo os convidados qual dos dois era o noivo, se Germano Seixas, se José Marques, tão alegre andava este naquela noite.

A noiva tinha um ar de sogra; mas a alegria não a podia haver mais juvenil. Após longos anos de desamparo e aflições, via-se enfim constituída em família. É certo que o devia menos ao próprio mérito do que ao amor que Seixas tinha à filha e ao desejo de lhe deixar um nome, e, se pudesse ser, algum pecúlio. Qualquer que fosse, porém, a causa eficiente, era feliz e isso lhe bastava.

Assim postas as coisas e as pessoas, vejamos agora os sucessos, que põem termo a esta curta, mas substancial narrativa.