Um almoço/IV

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Os meses correram com a velocidade que só se sente de certa idade em diante, quando a velhice nos acena de mais perto e as cãs começam a povoar a cabeça e a barba.

Correram os meses, e mais depressa correu Madureira para a sepultura, aonde baixou em certa manhã de setembro, depois de três dias de moléstias. Já então Seixas era seu sócio. Aberto o testamento, viu-se que o defunto, não tendo parente, dispunha alguns legados e instituía seu herdeiro universal o feliz pai de Elvira. Este e José Marques eram nomeados testamenteiros.

Seixas sentiu a morte do sócio e protetor; mas é força confessar que a herança lhe suavizou grandemente a mágoa. É esse um dos bons efeitos das heranças. Seixas conheceu pela última vez a grande alma de Madureira.

Vê o leitor que estamos longe do dia em que Seixas, cansado de esperar o almoço, resolvera ir comê-lo na eternidade. Agora era um comerciante apatacado e conceituado. Tinha família. Quando ele pensava nisso sentia um tremor nervoso como de quem recorda o terremoto de que escapou; mas ao mesmo tempo comprazia-se em recordar que de baixo subira tanto. Um só ponto negro havia: era José Marques, que (na opinião de Seixas) se constituíra seu eterno perseguidor. Seixas rememorava a cena do Passeio Público, até a chegada de José Marques; logo que José Marques entrava, ele desviava dali o pensamento como de um crime. Agora não podia vê-lo; padecia só com encará-lo.

José Marques, entretanto, era-lhe cada vez mais afeiçoado, e fazia-o sentir com franqueza. Nunca lhe pedia favores; exigia-os, e era justo, porque o salvara da morte. Nem por isso Seixas o convidara um dia de anos da filha. Quando José Marques soube disso ficou consternado. Não se deteve; foi dizer-lho. Seixas recorreu ao meio mais vulgar e usado entre todos.

— Não te convidei? disse ele. Admira-me que o digas, porque eu próprio escrevi uma carta... Não importa! Vai lá logo.

— Decerto que vou; mas sempre quis dizer-te...

— Fizeste bem.

— Sim, era realmente de espantar que tu me tratasses por esse modo. Podes ter defeitos; cada um de nós tem os seus; mas ingrato, não! tu não és ingrato.

— Pois!

— Não és. A que horas?

— Vai jantar.

— Vou, vou.

E foi.

Durante o jantar fez uma saúde única, ao dono da casa, felicitando-se pela parte que o seu coração tinha naquela festa de família. Não foi adiante, mas disse o suficiente para fazer empalidecer o pai de Elvira.

Logo que ele se despediu, à meia-noite, Seixas disse à mulher:

— É o homem mais aborrecido que tenho visto em minha vida!

— Por quê? Não me pareceu.

— Não o conheces.

— Parece até amável comigo e com Elvira.

— Isso pode ser; mas sempre te digo que nunca vi nada pior!

José Marques quase não convivia com outras pessoas, além da família Seixas. Era casado; mas só ia à casa jantar e dormir. Alguns meses depois do jantar de anos de Elvira adoeceu-lhe a mulher; Seixas não a foi visitar logo. Sabendo, porém, que a doente estava à morte, não teve remédio senão ir lá uma noite.

— Creio que está perdida, disse José Marques ao amigo.

— Pobre senhora!

— Obrigado, Seixas — disse José Marques com um suspiro. Vejo que és o mesmo amigo de outro tempo. Queria pedir-te uma coisa; tua senhora podia ficar estas últimas noites com minha mulher?

Seixas ficou gelado.

— Eu sei! Ela anda também tão achacada!

— Não parece.

— Anda.

— Mas, enfim, não está de cama. Vou pedir-lhe.

Seixas não teve tempo de exprimir a segunda objeção que já lhe dançava nos lábios. Sua mulher não pôde negar o que lhe pedia José Marques, alegando razoavelmente que não tinha mais pessoa da família.

Seixas foi obrigado a lá deixar a mulher e a filha, e a voltar só para casa.

— Os diabos o levem! exclamava ele descendo as escadas de José Marques. Isto é um suplício! Isto é... um inferno! E tudo porque me fez um dia... o que faria qualquer outro que ali passasse e soubesse da minha posição. O mundo não é um covil de tigres: a filantropia não veio só de encomenda para ele. Já não o posso tolerar.

A mulher de José Marques faleceu no fim de três dias. Como essa morte restituía a Seixas a mulher e a filha, pode-se dizer que o antigo sócio de Madureira gastou sem grande pena os doze mil-réis do carro em que foi acompanhar a defunta ao cemitério.

Entretanto, a morte da esposa de José Marques veio apertar mais os laços que uniam os dois amigos, porque José Marques, não tendo mais nenhum pretexto para estar em casa algumas vezes, habitava mais a de Seixas que a sua.

Um dia liquidou o negócio, despediu-se da praça, e foi o mais triste dia da vida de Seixas.

José Marques não vivia em outra parte: era sempre na loja ou em casa do pai de Elvira. Esta e a mãe achavam-no agradável, e ele fazia o mais que podia para não contrariar essa impressão. Seixas, porém, padecia (dizia ele) as dores cruciantes de um inferno. Não lhe falava horas e horas; às vezes nem olhava para ele. Se ria, e José Marques se aproximava, fechava logo o rosto, com o mesmo ar como se lhe dissesse: — Meu caro, não me rio para ti; tu aborreces-me; deves tê-lo compreendido; salvo, se és tolo, e o és na verdade.

Nada viu, porém, José Marques. Ele estava tão certo da amizade do outro, que o proclamava em toda a parte:

— O Seixas? é o meu maior amigo; conhecemo-nos há longos anos; sempre o mesmo. Verdade é que de certo tempo em diante deve-me tudo.

— Sim? perguntava o interlocutor, qualquer que fosse.

— Tudo...

— Protegeste-o?

— Mais do que isso!

— Mas... então?...

E se o interlocutor não insistia:

— Aqui em reserva; o Seixas esteve um dia para matar-se.

— Que me diz?

— A pura verdade. Fui eu que o salvei; dando-lhe algum dinheiro e o lugar em casa de Madureira.

— Estou pasmado!

— Mas, também honra lhe seja feita. Nunca se esqueceu de meus benefícios; nunca!

Às vezes acontecia, no meio deste diálogo, surgir ao longe a figura de Seixas, a qual, ou desaparecia na primeira esquina, quando era possível fazê-lo, ou apressava o passo ao acercar-se do grupo, de maneira que passasse por ele, sem outra interrupção mais que um cumprimento de chapéu.

— Vem cá, Seixas! dizia José Marques neste último caso.

— Vou com pressa; até logo!

José Marques ficava a olhar para ele, e dizia ao outro:

— Sempre na labutação! é um homem de truz.

— Oh! lá isso é!

— Bom pai de família... Não, senhor, não me arrependo do benefício que lhe fiz.

Seixas, entretanto, andava cogitando nos meios da fazer uma viagem à Europa. Não se pode dizer que José Marques fosse a causa disso; mas nas vantagens da viagem, entrava a da ausência deste. Uma só dificuldade havia; era o casamento de Elvira.

Elvira, a filha de Seixas, era na verdade uma herdeira graciosíssima, que ainda não sabia haver-se com as cassas e as sedas de que a vestiam, ela, que passara os primeiros anos envolvida em chita, algumas vezes rota. Mas era mulher, bonita e vaidosa; depressa se acostumou às exigências da nova posição. Tinha uns olhos e uns cabelos, negros como a noite escura, uns olhos que traziam desvairados outros da mesma e de outras cores. Mas só dois olhos eram felizes; eram os olhos do novo guarda-livros da casa do pai. Este empregado amava tanto a filha do patrão, como o leitor ama a rainha Pomaré; a faculdade mestra de sua organização era a do negócio. Viu em Elvira uma herdeira bonita, e atirou-se a ela; nada mais.

Seixas percebeu o namoro e aprovou-o mentalmente; esperava que o rapaz a pedisse para consentir logo; mas este hesitava ainda, ou receoso do resultado, ou desejoso de fortalecer mais a sua posição. Não foi ele, porém, o único ferido pela seta do amor. José Marques sentiu-se igualmente tocado da misteriosa arma. Velhote ainda fresco e bem disposto, não pôde nem quis resistir ao ferimento, nem levou a autora à polícia; rendeu-se-lhe aos pés. Elvira deu pela vítima antes mesmo que esta desse por si. É privilégio comum a todas as mulheres. Um homem, quando acontece ser amado por uma senhora, sem iniciativa dele, quase precisa que lhe vão levar a notícia à casa; a mulher é a primeira que vê incêndio na casa do vizinho.

Viu Elvira o incêndio e deixou-o arder. José Marques, porém, foi pedir à moça um pouco de aguada da sua benevolência para atalhar o mal. Vê a leitora que estamos em pleno pays du tendre. Não lhe pediu ele com a boca, mas com os olhos; Elvira entendeu e riu. Ele pensou que o riso era afirmação e levantou as mãos ao céu.

— Quem diria que aquela santa seria tão cedo substituída! exclamou José Marques dentro de si.

Depois cogitou. Cogitou e hesitou. Hesitou, mas venceu, isto é, dispôs-se a casar.

— Dirão muita coisa de mim, pensou ele; mas hão de levar em conta as verduras de uma mocidade prolongada.

Verduras!

Assim disposto, convencido e resoluto, foi José Marques ter com o Seixas.

— Tenho uma coisa para te pedir, disse ele.

— Fala.

— Uma coisa séria.

— Pois fala!

— Muito séria. Que pensas de mim?

— O que penso?

— Sim; que te parece a minha idade?

— Respeitável.

— Justamente: uma idade respeitável, isto é, não caio de maduro.

— Oh! nem eu!

— Nem tu. De maneira que se te dissessem que eu me ia casar, não te admiravas?

— Casar!

— Responde.

Seixas hesitou um instante.

— Não me parece, disse ele, que a coisa fosse de todo desarrazoada. Devo, contudo, dizer-te que não posso ser padrinho... Ando agora muito ocupado.

José Marques sorriu à socapa.

— Nem é para isso que te convido.

— Ah!

— Convido-te para coisa melhor; convido-te para pai.

— Pai!

— Pai da noiva.

— Pai da noiva!

José Marques abriu os braços.

— Dá cá esses ossos! exclamou. Eu restituí-te a vida um dia; tu vais restituir-me a felicidade doméstica.

Seixas começava a ter umas suspeitas da realidade.

— Explica-te! disse ele.

— Peço-te a Elvira.

Seixas não caiu das nuvens, porque já vinha a meio caminho; mas ficou consternado. A consternação era uma prova de simpatia, a última que ele lhe podia dar. A idéia de José Marques parecia-lhe que frisava com a demência. Depois da consternação teve vontade de rir; mas conteve-se. Conteve-se, levantou os ombros, e não respondeu ao pretendente; nem o poderia fazer se quisesse, porque este entregara-se todo a uma descrição vivíssima do afeto que a moça lhe inspirava, e da ambição que tinha de a fazer feliz.

— Meu caro Marques, disse enfim o pai de Elvira, serei franco. Não te posso dar minha filha.

— Não?

— Não posso.

— Mas por quê?

— Tenho outras idéias.

— Será possível? Parece-me contudo que... Estás brincando, decerto.

— Não estou; destino-a a outro.

— Quem quer que seja, meus direitos são anteriores aos dele, porque esse com certeza não te deu nunca provas de amizade, pelo menos do quilate das que te dei.

Seixas, levantou os ombros segunda vez, com tal expressão, que não havia duvidar. José Marques ficou abatido. Murmurou um queixume, que o outro ouviu assobiando, e despediu-se.

— Um homem a quem dei o pão! dizia ele ao entrar em sua casa.

No dia seguinte recebeu uma carta atenciosa e quase amigável de Seixas, pedindo-lhe desculpa de não poder consentir no que ele pedida, pelo motivo já exposto, acrescendo que Elvira não aceitara o casamento com ele; protestavam, no entanto, a sua eterna amizade, esperando que o incidente não romperia as relações que entre ambos existiam. A carta era inspirada pela mulher de Seixas que não desejava magoar o pobre velho. José Marques leu-a e enterneceu-se. Escreveu logo uma resposta longa e amistosa; mas resolveu afastar-se da casa de Seixas durante algum tempo.

Sabendo, dois meses depois, que Elvira ia casar, sentiu-se picado de despeito, e abriu-se com alguns amigos censurando o casamento, e dizendo que alguém podia haver com direitos mais sólidos e antigos que os do guarda-livros.

Logo que Elvira casou, volveu ele a freqüentar a casa de Seixas, onde jantava freqüentemente e passava a maior parte do dia. Seixas já mal podia tolerá-lo. Os meses passaram, depois os anos; a velhice foi tornando José Marques pouco andarilho. A casa de Seixas era já a sua habitação usual. Ninguém o via comer em outra parte.

— Não tenho filhos nem mulher, dizia ele; vocês serão a minha família.

Seixas não respondia nada.

— Sabes que mais? disse José Marques um dia; estou com minhas cócegas de vir morar para aqui.

— A casa é pequena.

— Qual! Eu acomodo-me bem num canto. Podia ir morar com outro; mas, confesso, ninguém me merece tanto como tu, nem há amigo com quem eu possa falar com esta liberdade que uso contigo... Eu considero-te, por assim dizer, uma obra minha; e estou certo de que não és mais amigo de outro. Sei que és grato, que não te esqueces nunca um benefício.

Foi morar com a família de Seixas. O que este sentia não era já aborrecimento, era ódio. Deu-lhe um quarto escuro, em um recanto da casa, onde José Marques se acomodou. Seixas recebia em casa alguns amigos, que ali iam jogar o voltarete ou palestrar. Se faltava um parceiro, José Marques era convidado a supri-lo, mas nada mais. Nem por isso lhe dava o melhor lugar à mesa do chá, onde ninguém fazia caso dele. José Marques, entretanto, não se fartava de elogiá-lo como homem grato, a quem ele matara a fome e salvara da morte.

— É um benefício de que nunca me hei de esquecer, acrescentava ele.

Um dia adoeceu, mas tão infelizmente que já não tinha nada do que possuíra, em conseqüência do incêndio de duas casas, da morte de alguns escravos e da falência da companhia de que ele tinha duzentas ações. Acrescentou a esta desgraça, estar Seixas preparado para uma viagem à Europa. José Marques foi para o hospital de sua ordem, onde faleceu. Seixas, que ainda não havia embarcado, mandou dizer uma missa, não sei se pelo repouso do defunto, se em ação de graças. O coração não falou, mas pensou isto:

— Morreu um dos homens mais insuportáveis que tenho conhecido. A terra lhe seja leve!