Um homem dormindo...

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Les hommes endormis et les hommes morts ne sont que de vaines peintures.

SHAKESPEARE, Macbeth

Ei-lo, na noite, após as inclementes fadigas do dia, corpo estirado sobre o leito, gozando o repouso de algumas horas, mudo e imóvel dormindo...

O descanso, como um bem misericordioso, como um óleo consolador, unge-o voluptuosamente, enquanto a grande asa crepuscular da ave taciturna da Cisma faz-lhe uma sombra piedosa, grave e doce como uma bênção paterna, em torno do corpo cansado.

Na indiferença quase da morte, que o envolve todo de um vago esquecimento das cousas, deitado sobre o leito, como estirado sobre a terra, com a face mergulhada num meio luar galvânico de lividez, esse homem de ombros vigorosos e largos, de tórax poderoso, de estatura gigantesca, hércules fatigado e melancólico da Natureza, talvez o vencedor de batalhas formidáveis, parece, agora, tão pequeno, deitado!

De pé, há pouco no dia, caminhando, andando, girando no absurdo Contingente, sob as guerras armadas da Vida, como esse homem se projetava verdadeiramente grande, se compenetrava do valor do aço do seu peito, se iludia a si mesmo com os seus invejáveis músculos, com a sua forte andadura de animal de campanha — lesto, tenaz, reto, preciso e afouto nas distâncias e nas culminâncias a galgar!

Mas, agora, deitado no leito, como esse homem forte parece fraco, como toda a sua força hercúlea se evaporou à toa pelos interstícios da prisão brumal do sono e, como simplesmente, mas fatalmente ele recorda, exprime bem a rastejante atitude de um verme!

Há nele a expressão do mais completo aniquilamento, da mais funda inanição; ele sente-se sufocado pelos espectros sub-reptícios do Nada que vertiginam e rodam em torno ao eterno absoluto.

Deitado, dormindo, ele não é mais o homem, mas o silêncio, o vácuo, o além, o esquecimento. Dormindo, ele conserva essa aparência, essa abstração aflitiva, essa espasmada alucinação de um ser que já foi ser, de uma voz que se tornou mudez, de um movimento que se fez impassibilidade.

Não importa mesmo que todos os seus órgãos não estejam totalmente paralisados, sob camadas letais de gelo. Mas a expressão do sono é por tal forma aureolada de mistérios, tais segredos escapam dessa indiferença, que o homem que dorme estirado no leito fica nesse momento mais indefeso, mais frágil e mais inócuo do que uma criança, que na sua vibrante garrulice cor-de-rosa e cristalina impõe mais ação, mais vida, desprende mais ritmos e acordes do sangue, projeta mais ondas sonoras e nervosas de movimento.

Pelo estado inerme desse homem que está dormindo parece que uma força oculta, uma catástrofe inesperada, invisivelmente suspensa há muito sobre a sua existência, vai, afinal, certeira e rápida, desapiedadamente esmagar-lhe, caindo dos altos Destinos, a atormentada e vaidosa cabeça com a mais natural facilidade. Pois não é tão fácil, sem dúvida, destruir um obscuro reptil que se arrasta na terra?!

Toda a sua coragem louca de guerreador da Existência, toda a aspiração alucinada, todo o sonho de Infinito que lhe povoa a alma, sem mesmo ele se aperceber disso, e que às vezes, por acaso, escapa, traindo-se pelo brilho misterioso dos olhos e por vagos, perdidos suspiros desolados que ele desprende à toa, sem mesmo saber por quê, na inconsciência dos fenômenos ingênitos do seu ser; tudo isso está por algum tempo desvanecido, apagado, sumido já nessa amesquinhada posição de homem deitado, a quem só falta, cerradas como estão as pálpebras, cruzar sobre o ventre as mãos e unir os pés para semelhar um morto.

Entretanto, no silêncio e na sombra desse sono como que se está gerando secretamente, sutilmente e profundamente, átomo a átomo, um mundo de fenômenos, uma tragédia muda de fenômenos.

Entretanto, assim parecendo despreocupado dos segredos e signos da Vida, renunciando a tudo, agora, nesse aspecto de aparente tranqüilidade simples do sono, ele está ali curiosamente, em fundas brumas, vivendo uma alta e íntima vida psíquica muito mais intensa, muito mais complexa e preocupada do que a outra.

Porque ninguém sabe que, a seu pesar, ele, por mil sutis combinações transcendentes e engenhosas do querer latente do seu organismo anelante deseja atingir, tocar e radiar entre as esferas siderais do majestoso Espírito.

Porque mesmo não há alma nenhuma, por mais vã, por mais humilde, por mais obscura que seja que não aspire subir, por secretos movimentos instintivos e intuitivos, que são as transfulgentes escadas do Abstrato, às transfiguradoras montanhas do Sonho, ao desenvolvimento melhor, à pura perfectibilidade; penetrar, consolada, alheando-se de tudo, nas transcendentalizantes auroras boreais do Sentimento, satisfazendo assim, embora inconscientemente, a ansiedade de Infinito que cada alma traz mais ou menos em si, por maior ou menor que seja a esfera de ação onde ela gravite.

No sono como que esses fenômenos tomam vulto, começam a girar, a girar, a girar, em íris de sensibilidade, em halos de lua, na Imaginativa do homem dormindo, cujo fundo vago carregado de narcotismos e de ópios secretos e fascinantes fica como uma rara região, rara e polar, gerando flores exóticas de quint'essência.

E nas volúpias e melancolias do sono a alma paira absorta, perplexa, tateando em brumas maravilhosas, como celeste cega de sede da Imortalidade, nos círculos convulsos das lágrimas.

Véus diáfanos adelgaçam-se para além da visão terrena! Véus de fímbrias de luar! Véus de centelhas de luar! Véus de fogos-fátuos de luar!

E o ser, mudo, solitário, solene, pálido, indiferente, misterioso, fugitivo, trágico, belo, horrível, no espasmo elixírico do sono, dormindo, dormindo aspira, dormindo, dormindo anseia, dormindo, dormindo goza e sofre e geme e soluça e suspira e chora para além da outra vida dos sentidos encarcerados no sono e na outra vida do sono sonha com a Morte libertadora, engrinaldada de virgem, esqueleto extravagante de nervosismos e histerismos terríveis e curiosos de Eternidade, — noiva do Soluço, branca, friamente bela e branca, de um terror que vence, que atrai, que esmaga, e que faz delirar de sinistra majestade e de sinistra beleza.

É que o ser bebeu, esgotou até às fezes o licor sombrio, taciturno e estranho do sono pelo cálice amargo da Fadiga e ficou embriagado de sombra, vencido de sombra, desceu ao poço cheio de cismas e pesadelos do Nada para no Nada dormir ansiando, para no Nada viver dormindo, para no Nada dormir sonhando...

O sono em que ele está embalsamado põe-lhe em torno à fronte fatigada uma auréola de martírio, mas de um martírio tão singular e tão abstrato que parece como que glorificá-lo, imortalizá-lo, dando-lhe a aparência secreta de estar gozando um gozo muito belo e muito triste, vagamente empoeirado de Esquecimento...

Nessa hora de descanso transitório, a mágoa, os dissabores, os infortúnios inclementes, as desgraças sem remédio, as paixões desmanteladas e sem termo, as aflições, os desesperos, os sentimentos obscuros que revestem uma expressão magicamente cabalística, toda essa horrível escala humana de desventuras e misérias, tudo está, por um pouco, sem movimento, inerte, como animais de emboscada, à socapa, eternamente de espreita na vida desse homem, esperando que ele de novo acorde para de novo assaltá-lo e para de novo vencê-lo.

E ah! como a esse homem que dorme estirado no leito da sua noite de mísero e efêmero repouso, quase mergulhado na calma negra da morte, há de talvez parecer sempre essa noite pútrida, esverdeada e formidável vala comum onde podem perpetuamente caber bilhões e bilhões de corpos humanos!