Um melodrama em Santo Tirso/I

Wikisource, a biblioteca livre


Estou embirrando solenemente com o título do meu romance. Um melodrama em Santo Tirso, numa terra pacífica e bem morigerada, cujos habitantes mais notáveis pela sua respeitabilidade, lêem o Flos Sanctorum, e suspiram pelo tempo dos frades, desses incansáveis moralizadores e bem-feitores da população!

Eu podia inventar um enredo terrível, e tornar editores responsáveis das peripécias mais criminosasdo meu entrecho, alguns habitantes de quem eu tivesse tido razão de queixa, quando estive em Santo Tirso (porque eu estive em Santo Tirso, oh! patrícios alfacinhas) mas naquela boa terra não fui ofendido senão pelas pulgas da estalagem, e, a respeito de pulgas, nem mesmo as industriosas são próprias para personagens de melodrama.

Mas eu não quero inventar, quero apenas ser cronista da muito verídica história (chavão infalível) que passo a contar a quem tiver paciência de me ler, e declaro desde já aos Santo Tirsenses que, se os fatos, que historio, têm uma aparência melodramática, a culpa não é minha... é dos acontecimentos.

Anoitecia; a tarde, apesar do outono ir já adiantado (a ação do meu romance passa-se em novembro), tinha estado linda, e até mesmo quente; mas ao pôr do sol levantara-se um vento fino e glacial que ameaçara os prudentes freqüentadores da botica com um dilúvio de catarros e constipações, e os narizes dos veneráveis minhotos, vítimas dum abuso de confiança atmosférico, tinham obrigado os seus donos a procurarem um abrigo nos lares domésticos, para não apanharem o ar úmido da noite, quando, segundo o seu costume, abandonassem o gamão, para voltarem para casa a horas mortas.

A horas mortas?! Sim, não posso deixar de confessar que a perversão dos costumes tinha chegado a Santo Tirso! Uma roda de jovens extravagantes, todos de menos de sessenta anos de idade, haviam instituído, com grave escândalo das pessoas sérias, o costume de se recolherem às dez horas!!! Às dez horas! Às dez horas, raça degenerada! Quando, ao quintal fronteiro à botica, as galinhas se recolhiam à capoeira, não vos parecia ver passar d'envolta com dias as sombras venerandas dos vossos avós, aconselhando-vos o regresso a casa?! Netos degenerados, as cinzas dos vossos antepassados tremem de indignação, não vos sentindo ressonar às oito horas da noite... Horror!

Fatais conseqüências do progresso! E por toda a parte vai lavrando este contágio funesto. Tudo está impregnado de imoralidade; a literatura mesmo está viciada. Ó adoradores do passado, compadecei-vos de nós! Atualmente lêem-se os romances de Alexandre Dumas, filho. No vosso tempo lia-se o Cavalheiro de Faublas,e a Justinado Marquês de Sade. Ó tempos felizes d'outrora! Ó moral das passadas eras!

Começo eu a perder-me em digressões. É um defeito, que confesso humildemente; prometo emendar-me dele, e vou entrar imediatamente na minha narração.

Começava pois a anoitecer, quando à porta de uma das melhores casas de Santo Tirso um moço e esbelto oficial de caçadores se apeava de um cavalo, que mereceria uma descrição especial, se o meu protesto de me deixar de digressões não fosse ainda tão recente. Basta dizer-se que o sendeiro de Nicolau Tolentino era um prodígio d'obesidade, comparado com o ente (rebelde a toda a classificação zoológica), em que vinha montado o nosso jovem oficial.

A casa, junto à qual tinha parado o intrépido rocinante daquele D. Quixote arregimentado, tinha uma aparência sedutora para um lisboeta desterrado na província. Via-se que o proprietário atendera às condições de elegância e conforto, quando mandou construir a casa. Duas senhoras novas ainda, sofrivelmente feias, um tanto pardas, e ambas de luneta, adornavam ou desadornavam uma das sacadas. Os sons dum piano desafinado, (como qualquer piano dum terceiro andar da baixa, e tocado com a mestria com que o poderia tocar em Lisboa a menina da casa, filha dum negociante rico, em função de anos com entusiásticos aplausos dos convidados... se o serviço ao chá foi bom) chegaram aos ouvidos do oficial de caçadores, e vieram demonstrar-lhe que os instintos fildesarmônicos da nova geração feminina se revelavam em Santo Tirso com tanto rigor, como na terra das alfaces.

O nosso lisboeta (o rapaz efetivamente era de Lisboa) cumprimentou aqueles dois exemplares do sexo feminino, tirados em papel pardo, e perguntou:

— V. Exas têm a bondade de me dizer se mora aqui o sr. Bernardo da Fonseca Guimarães, antigo negociante?

— Sim, senhor, respondeu uma das interpeladas, é meu pai.

— Nesse caso tem a bondade de lhe dizer que lhe trago uma carta do seu amigo de Lisboa o sr. Antonio Ricardo de Souza.

— Ó paizinhotornou a rapariga, voltando-se para dentro, está aqui um senhor oficial, que o procura.

— Manda subir, Adelaide.

Ao mesmo tempo abriu-se a porta, e o nosso amigo, depois de ter atado à aldrava a rédea do rocinante (o arrieiro chamava-lhe rédea, com o mesmo direito com que o governo chama barão a um lapuz opulento), subiu a escada, no patamar da qual encontrou o nosso Bernardo Guimarães, em chinelos de moiro, na mão um barrete cônico, em forma de apagador, e pronto a receber diplomaticamente a visita inesperada.

Antão bossenhoriatraz-me uma carta do meu amigo Antônio Ricardo? Ora pois, muito estimo, muito estimo. Como está aquele maganão?

— Menos mal!

— Ele dantes padecia muito de calos!

— Ainda hoje.

— Ora bom, entre aqui para a sala... como se chama bossenhoria?Quero apresentá-lo a minhas filhas, a quem dei uma educação, que não a têm melhor as fidalgas de Lisboa! Como é a sua graça?

— Eduardo Augusto d'Almeida Teixeira.

— Vá entrando, vá entrando que eu vou ler a carta do meu Antônio Ricardo.

Eduardo Teixeira entrou na sala, e achou-se em frente das duas pardas, que já tinha visto, e duma terceira, que estava sentada ao piano, bonita falando em absoluto, e formosíssima comparando-a com as outras. Lindos olhos pretos rasgados, um pouco morena, grande a boca, mas não muito desgraciosa, - tal é o retrato da desalmada pianista.

Eduardo cumprimentou-as; elas responderam com um comprimento cerimonioso, e ficaram todos em silêncio.

As raparigas olhavam para Eduardo, como olhariam para um objeto de curiosidade; e o nosso alfacinha, que não gostava de ser contemplado como se fosse um macaco de espécie raríssima, ou um embaixador japonês, entendeu que devia sair daquela posição embaraçosa, lançando mão da primeira banalidade, que lhe ocorresse. Lembrou-se que ao subir a escada tinha ouvido o La dona é mobiledesfigurado com a maior bulha possível pela pianista provinciana.

Foi uma idéia salvadora! Eduardo, por conseguinte, puxou os punhos da camisa, torceu o bigode com toda a afabilidade, tossiu agradavelmente, esboçou no sorriso o prólogo de uma fineza, e disse com o tom mais melífluo que pôde encontrar:

— Minha senhora, eu assim que entrei nesta casa, tive uma surpresa muito agradável.

— Sim, então qual foi? tornou a martirizadora de Verdi.

— Ouvi tocar admiravelmente no piano um trecho do Rigoletto.

As três meninas olharam umas para as outras boquiabertas. Finalmente a pianista desfez provisoriamente o ponto d'admiração em que tinha transformado a cara, e exclamou:

— É espantoso! Como conheceu!

— Mas, minha senhora... observou Eduardo.

— Não admira, é de Lisboa, interrompeu uma das pardas.

— Mas, minha senhora... acudiu o lisboeta.

— Freqüenta muito o teatro lírico, tornou a parda no 2.

— Mas, minha senhora continuou Eduardo já aterrado por aquela insistência.

— Oh! o teatro lírico, acudiu a pianista em tom inspirado, e arregalando muito os olhos, o santuário do prazer. Como deve ser belo! Viu a Lotti, sr. alferes? Tem ouvido o

Rigoletto?Como ele conheceu!

Eduardo escandalizou-se; o espantarem-se de que ele conhecesse La dona é mobileera a maior ofensa que se podia fazer aos seus conhecimentos musicais, por isso não pôde deixar de responder:

— Mas, minha senhora, em Lisboa não há um só gaiato, que não conheça este trecho.

— Ah! é vulgar!

— Sim, minha senhora, é do domínio do realejo.

Neste momento entrava na sala o sr. BernardoGuimarães. Vinha com uma cara prazenteira, óculos no nariz, e sorvendo com delícia uma pitada de simonte.

Antão já se conhecem, bradou ele, olhem que este senhor é afilhado do nosso Antônio Ricardo. Antão está agora em caçadores 7, e tem licença de um mês? Anda aver o nosso Minho. Isto para quem em de Lisboa, não tem que ver.

— Ora se tem, sr. Guimarães! é um torrão abençoado. Que deliciosas paisagens, que magníficos panoramas! É realmente uma província muito pitoresca, e muito curiosa até pelas suas recordações históricas. Guimarães possui relíquias arqueológicas importantíssimas, e é pena que as não saibam avaliar devidamente, e que profanem os venerandos monumentos do berço da monarquia, sarapintando de verde e azul, por exemplo, a pia do batismo de D. Afonso Henrique.

— Ora, não me venha com lérias. Os cônegos fizeram muito bem. Estava a pia suja, que metia medo, e envergonhava a colegiada. Há mais tempo que o deviam ter feito. Vejam como agora está bonita. Ninguém há de dizer que tem oitocentos anos a tal pia. Vão lá adivinhá-lo. Agora nem o mais pintado.

E o bom do negociante confirmava a sua dissertação artística com o silvo estrondoso duma pitada.

Bossenhoria agora fica conosco alguns dias, tenha paciência. Hei de lhe dar água da fonte da Maria Velha, que tem a virtude de fazer que quem a bebe só com muito custo saia de Santo Tirso. Já tem um quarto preparado, vá descansar um pouco, depois ceia conosco às sete horas, sem cerimônia, sem cerimônia.

— Ó paizinho, observou a mais bonita das filhas, este senhor pode ser que esteja costumado a tomar chá e tostas,veja lá não lhe faça mal cear.

— Oh! não, minha senhora, muitíssimo obrigado; o meu estômago é duma flexibilidade espantosa, presta-se a todos os usos gastronômicos das diferentes terras. Isto para um militar é essencial.

— Bem dito, bem dito, tornou o sr. Bernardo, até daqui a pedaço, hein?

— Até já, minhas senhoras; um criado de Vv. Exas.

E Eduardo Teixeira saiu da sala, guiado pelo seu hospedeiro.