Um melodrama em Santo Tirso/II

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Vamos nós, amigo leitor, assistir à ceia do sr. Bernardo Guimarães. O digno negociante não se deve zangar conosco; eu pelo menos vou com o propósito firme de não lhe aceitar coisa alguma; porque ao amaldiçoado caldo verde, e ao detestável vinho verde tenho um ódio particular. Venho simplesmente, como grande curioso que sou, espreitar o aspecto da mesa, e ver se pesco a conversa dos convivas que deve estar interessante.

Ao pé do respeitável sr. Bernardo, está sentado o nosso alferes de caçadores, a cair de sono, segundo parece; porque as pálpebras cercam-se-lhe a miúdo, e os bocejos, apesar dos esforços incríveis que faz para os reprimir, tornam-se cada vez mais freqüentes.

À esquerda do nosso Eduardo Teixeira senta-se a veneranda metade do venerando Bernardo. Cinqüenta vezes tem florido a amendoeira desde, que Santo Tirso teve a glória de produzir um dos mais feios espécimes da fealdade humana. Apesar disso, rosnavam os maldizentes que um certo mestre de meninos da vila se encarregara do papel de Cireneu, que ajudasse o sr. Bernardo a levar aquela cruz desdentada ao Calvário matrimonial. Línguas danadas, que não poupam nem a virtude... nem os mestres de meninos.

Defronte estava sentado o sobredito sr. Temudo (que este era o nome do chichisbeo) homem rubicundo, e de proporções hercúleas, capaz de levar trinta cruzes principalmente carunchosas como aquela, ao gólgota mais elevado.

Este senhor estava flanqueado pelas três meninas da casa, e felizmente para o equilíbrio gastronômico, ficava ele desse lado da mesa, porque as filhas do negociante, donzelas vaporosas e ideais, achavam feio comer diante de gente; mas o nosso amigo tratava com muito cuidado do seu estômago, do coração de D. Belisária Guimarães, e da cabeça do ex-negociante, porque comia como quatro, deitava olhos ternos à respeitável matrona, e aconselhava o uso do chinó ao marido, que se queixava de freqüentes constipações na cabeça.

No momento em que eu e o leitor começamos a espreitar aquela cena doméstica, tinha um formidável prato de arroz doce entrado em cena, e o nosso Eduardo Teixeira, apreciador desses doçuras gastronômicas, atacava-o com um denodo, que honrava sobremaneira o valor do seu... apetite.

As meninas da casa entretanto apoquentavam-no com perguntas acerca de Lisboa, do casamento do rei, dos teatros, dos literatos, enfim, de todas as casas da capital, desse eldorado das donzelas pretensiosas das províncias.

— Então, diga-me uma coisa, sr. Teixeira, como ia vestida a rainha no dia do casamento?

Eduardo, que em questões de toilettes femininos era perfeitamente um selvagem, e que demais estava saboreando com delícias uma colher d'arroz doce, respondeu com toda a serenidade:

— Ia vestida de verde, branco e escarlate.

— Uma noiva!

— Sim, minha senhora, trajava as cores italianas, para mostrar o afeto que tem à sua pátria!

— Mas os jornais não falavam em tal coisa!

— Ora, os jornais sabem lá o que dizem, - respondeu Eduardo cortando com a colher a questão, e um castelo d'arroz doce, que se formara ao canto do prato, - os jornais estão sempre pessimamente informados.

Ninguém ousou replicar; falara o oráculo lisbonense, emudeciam os profanos da província.

— O sr. Eduardo, exclamou a menina Adelaide, que era uma das pardas, já leu o D. Jaime?

— Já, sim, minha senhora; V. Exa também o leu, segundo vejo. É um bonito poema.

— O que é isso do D. Jaime? perguntou o sr. Bernardo.

— O meu amigo nunca leu aquela sandice, observou o mestre de meninos em tom... de mestre de meninos, fez bem, fez bem; é um péssimo livro; tem um erro de gramática, e meia cacofonia; e de mais a mais é revoltantemente imoral, acrescentou ele, lançando um olhar terno para a mulher do seu amigo.

— O sr. Temudo deve ser muito entusiasta da História da Imperatriz Porcina,observou Eduardo com a maior gravidade.

— Não desgosto, não desgosto; mas lá o D. Jaime,não presta para nada; e aquele pateta do Castilho a elogiá-lo... Ora o Castilho sempre é homem, que quer ensinar as crianças com um método racional! Como se, para ensinar meninos, fosse necessário ser racional! Aqui estou eu para prova do contrário. Ensino os pequenos com a cartilha do mestre Inácio, e no fim de quatro anos estão prontos. Eu cá sou assim.

— Diga-me uma coisa, sr. Teixeira, conhece o Thomaz Ribeiro? perguntou a pianista.

— Se conheço o Thomaz Ribeiro? Perfeitamente, minha senhora, tornou Eduardo, que tinha adormecido quase, ouvindo o discurso do sr. Temudo.

— Então diga-nos como é a fisionomia do poeta?

— Cabelos louros e olhos azuis.

— Ah! Também?!

— Também, sim, minha senhora, estatura ordinária e boca regular!

— E o nariz, e o nariz?

— O nariz, tornou Eduardo surpreendido em flagrante delito de contemplação diante dum copo de vinho do Porto, que estava observando à luz; o nariz arrebitado!

— Arrebitado, tornaram as raparigas em coro, e depois, voltando-se umas para as outras acrescentaram em reza-voce: O autor das Cenas da Minha Terra tem o nariz arrebitado!

— Já se vê, minhas senhoras, observou Eduardo, nariz de folhetinista! Todos os folhetinistas têm o nariz arrebitado!

— Ora essa, então a mana Emília, respondeu uma das pardas apontando para a pianista, a mana Emília deve escrever folhetins, tem o nariz arrebitado.

— Exatamente, minha senhora, se tivesse o nariz aquilino, aconselha-lhe que escrevesse poemas épicos, ou tragédias de cinco atos!

Eduardo, julgando-se livre de interrogatórios, dispunha-se a pedir licença para se retirar, quando a mana Emília acrescentou:

— Gostou do Prato d'arroz doce?

— Muito, minha senhora, os ovos estavam em muito boa conta, açúcar magistralmente distribuído, e a canela dizia-lhe muito bem!

— Mas eu falo do romance do Antônio Augusto.

— Ah! O romance está muito bem escrito, é uma bela obra!

— Conhece o Teixeira de Vasconcellos!

— Ora essa, nisso nem se fala... sou íntimo amigo dele. Inda V. Exa me pergunta se conheço o Teixeira de Vasconcelos!

— Descreva-nos lá a cara dele. Nós temos muita curiosidade de conhecer a fisionomia dos literatos notáveis!

— Oh! o Antônio Augusto! Tem cabelos louros e olhos azuis!

— Então todos os literatos de Lisboa têm cabelos louros e olhos azuis?

— Todos, minha senhora, excetuando os ultra-românticos, que esses têm olhos verdes. e cabelo ruivo, e se me dão licença, minhas senhoras, retiro-me; porque estou caindo de sono e de cansaço.

E saiu, deixando ficar os seus hospedeiros, como se vê, perfeitamente conhecedores da fisionomia dos literatos lisbonenses.