Um melodrama em Santo Tirso/III

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No dia seguinte acordou Eduardo sobressaltado, ouvindo o piano revoltar-se em guinchos desafinados contra os incríveis tormentos com que uma das meninas martirizava o inofensivo teclado.

Eduardo julgou que seria pelo menos meio dia; saltou fora da cama, e correu à janela. Um nevoeiro densíssimo não deixava calcular as horas pela altura do sol. O nosso alferes tinha vindo na véspera com tanto sono, que nem reparara que havia um relógio em cima da mesa; quando voltava da janela, deu com ele, e viu que ainda não eram oito horas!

Com efeito, pouco depois da aurora ter vindo abrir com os dedos rosados as portas do Oriente, viera a menina Feliciana (parda no 2) abrir o piano com os dedos cor de cobre, e sobressaltar Eduardo com aquela desafinação matutina.

O nosso herói arranjou-se à pressa, e abriu a porta do quarto. Apenas o ex-negociante o sentiu, veio ter com ele rindo muito.

— Ora viva o nosso mandrião; vá almoçar, ande que lá tem guardado o almoço. Como passou a noite?

— Perfeitamente; eu peço mil desculpas do incômodo involuntário que lhe dei; mas vinha tão cansado e com tanto sono, que, por melhores tenções que formasse, não consegui levantar-me a horas, mas protesto que será a última vez, que isto me há de suceder.

— Nada... não incomoda, vá almoçar, ande, e volte depois para a sala ouvir as pequenas tocar piano.

Quando daí a dez minutos o nosso herói fez a sua entrada na sala, a menina Emília, que estava sentada junto à janela em atitude melancólica e romanticamente cismadora, cumprimentou-o suspirando plangentemente; a menina Adelaide fez esforços incríveis para substituir a camada de sécia que lhe cobria as faces, pela camada carmínica indicativa de modéstia; e a menina Feliciana, sacerdotisa do deus Charivari,sacrificou o Míserere do Trovador,para solenizar a entrada de Eduardo Teixeira.

O sr. Bernardo, querendo mostrar ao seu hóspede, que conhecia perfeitamente a música que a filha estava tocando, assobiava ingenuamente o Pirolito.Eduardo, muito longe de supor que aquilo era música de Verdi, inclinava-se para a interpretação musical do honrado negociante.

O nosso alferes foi postar-se ao pé da menina Emília, ouviu primeiro em silêncio o pseudo-Miserere,e depois, inclinando-se para a provinciana, que suspirava amiudadamente, disse-lhe a meia voz:

— Está hoje um dia triste, não acha, minha senhora?

— Ah! Não me fale nisso; dias assim esmagam-me o coração. Estes dias chubosos são horríveis para os sofrimentos interiores!

— V. Exa padece do interior... azias de estômago, talvez?!

— Ah! não, senhor, sou excessivamente nerbosa; o espírito domina o que há em mim de material!

— Há-de-lhe fazer muito mal o café, minha senhora, aconselho-lhe os banhos do mar.

— Para os sofrimentos da alma não tem a medicina valsamos,respondeu a provinciana suspirando ruidosamente.

— Na sua idade, minha senhora, tornou Eduardo, vendo que não havia remédio senão afinar a conversa no tom de Emília, na sua idade, só uma paixão infeliz produz grandes infortúnios. Ora V. Exa pode inspirar, mas não sentir uma paixão infeliz, não julgo os santo-thyrsenses tão falsos de gosto, que algum deles recusasse a felicidade invejada por todos. Só se a morte lhe veio truncar nas primeiras páginas algum romance da juventude...

E Eduardo, ufano (com razão) do romanticismo da sua linguagem, recostou-se na cadeira com gravidade igual à dum ilustre orador, que ao acabar um discurso monumental acerca do sino da sua paróquia, é cumprimentado por vários senhores deputados de todos

os lados da câmara, e de todas as cores políticas.

— Oh! mas ver as ilusões desfolharem-se pouco a pouco, observou a Sra D. Emília, e ver trocar-se o amor ideal, que sonhamos, pela vil realidade deste mundo prosaico... é atroz, não é?

— Sofrer tormentos horríveis... eis a fatal predestinação das almas privilegiadas, tornou Eduardo, abanando acabeça lugubremente.

— Diz bem, diz. Ah! não encontrar eu no mundo uma alma irmã da minha, que compreenda e avalie o meu afeto! Oh!

—Ih! que massadora, disse Eduardo com os seus botões; tem curso completo de romances sentimentais. E o caso é que não é feia. Vou-me propor a candidato ao trono do seu afeto.

— Ó Feliciana, dizia entretanto o sr. Bernardo à menina que tocava piano, toca-me aquele bocadinho do Ernani,de que eu gosto tanto.

— Qual é?

O ilustre Bernardo começou a assobiar a Maria Cachuchaaproximadamente.

— Ah! já sei, Éa cabatinado soprano. Já toco.

— Eu, minha senhora, dizia Eduardo em voz cavernosa à sua interlocutora, também por muito tempo vaguei errante no mundo, sem encontrar a mulher que a Providência me destinava, aquela que devia realizar os sonhos mais arrojados da minha fantasia. Nenhuma compreendeu o amor santo e puro que eu lhe queria ofertar... escarneceram-me e passaram. - Isto não vai mau, dizia ele lá de si para si; mas eu daqui a pedaço engasgo-mo. - Sim, minha senhora, continuava Eduardo entusiasmando-se, só agora posso dizer: Eureka!achei no mundo o anjo que eu sonhava... achei... sim, encontrei... sim, minha senhora, quero dizer que simpatizei com V. Exa desde que a vi, e que serei o mais feliz dos homens, se corresponder ao meu ardente amor. - Láestraguei o efeito, concluiu ele em aparte,parece-me que este final édo Secretário dos Amantes.

— Eu, sr. Teixeira, respondeu a menina, procurando corar, eu aceitaria o seu amor, mas os homens são tão lisonjeiros..

— Eu sou uma exceção, creia, minha senhora...

— A mim agradam-me os seus sentimentos, e simpatizei com o senhor também, logo que o vi; mas...

— O Emiliazinha, bradou o negociante, vem tocar também.

— Lá vou, paizinho. - CaIe-se, continuou ela, dirigindo-se a Eduardo.

— Mas eu desejava tanto falar-lhe mais em particular...

— Pois sim, logo às onze horas da noite, desça ao quintal, que eu lhe falo da janela do meu quarto; que deita para lá.

— Oh! quanto lhe agradeço!

— Silêncio!

— Então, que lhe parecem as pianistas, exclamou o sr. Bernardo, sorvendo uma pitada, há-as melhores em Lisboa?

— Qual historia! Suas filhas tocam admiravelmente! Se as levasse à Lisboa, haviam de ser muito admiradas.

— À Lisboa? Nada, isso é muito longe, lá esteve agora o meu Dionísio; por sinal que há de estar a chegar. Ele é rapaz, pode ir; mas eu e a minha Belizária, já estamos velhos para essas danças.

— É verdade, o mano Dionísio temo-lo cá um dia destes...- muito se divertiu ele por lá provavelmente, observou a menina Adelaide com um suspiro.

— Deus queira que o Dionísio se não esqueça de me trazer a música, que lhe pedi. Ó sr. Eduardo quer ouvir a ária final da Lucia?perguntou a romântica Emília.

— Pois não, minha senhora, com todo o gosto, respondeu Eduardo aproximando-se do piano.

— Como a música exprime bem os sentimentos da alma! observou Emília, quando o viu sentado ao pé de si - eu adoro as músicas tristes!

— Também eu, minha senhora, também eu.

— Acho prazer em derramar lágrimas, quando ouço algum trecho patético.

— Também eu, minha senhora, também eu.

— Que doce conformidade de sentimentos!

— Também eu, minha senhora, também eu, tornou Eduardo distraidamente.

— Que diz?

— Que também me enleva, emendou ele, essa conformidade de sentimentos. Estou ansioso por ouvir a Lucia.

Neste ponto vejo-me obrigado a estigmatizar o meu herói. Tornou-se cúmplice de um assassínio. Para se salvar da entalação, em que a sua distração o tinha colocado, sacrificou Donizetti, e a sua ópera magistral. É imperdoável!

Quando o crime de lesa-harmonia se consumou, e foi devidamente aplaudido por todos os circunstantes, o nosso Bernardo Guimarães, dirigindo-se ao moço alferes, convidou-o a ir dar um giro pela vila. Eduardo aceitou o convite com o entusiasmo que os seus ouvidos magoados lhe inspiravam.

E, depois de ter trocado um olhar amoroso com a romântica donzela, saiu para ir admirar a vila de Santo Tirso, e o seu convento.

Nessa mesma noite, pouco depois das onze horas, estava Eduardo Teixeira colocado no quintal da casa do sr. Guimarães, ao pé de uma janela pouco elevada, janela que servia de tribuna, onde a jovem provinciana, declamava enfaticamente os seus discursos sentimentais.

Infelizmente para a romântica oradora, a noite estava fria e úmida, o que tinha por tal forma congelado a pouca dose de sentimentalismo, de que Eduardo podia dispor, que respondia a uns protestos d'amor ardentes, com uns queixumes sobre a frialdade dos pés, e a um trecho sublime acerca da lua argêntea, da rainha da noite, com um espirro acompanhado por uma dissertação científica sobre o perigo das constipações desprezadas.

Estavam pois aqueles dois entes poéticos embebidos em tão suaves colóquios quando de repente no quintal se sentiram passos apressados.

— Que será? bradou Emília bastante assustada, retira-se depressa, não quero que ninguém o veja aqui.

— Nesse caso é impossível safar-me, porque estão interceptadas as comunicações!

— Mas como há de ser isto, meu Deus!

— Como quem quer que for não se dirige ao seu quarto, conceda-me V. Exa por um instante licença que me esconda nele, porque lhe dou a minha palavra de honra, que saio, apenas o perigo tenha cessado.

E, juntando a ação à palavra, Eduardo lançou as mãos ao parapeito da janela, e num pulo se achou dentro do quarto.

Com grande espanto dos dois, um outro vulto apareceu junto da janela, e, repetindo a manobra de Eduardo, entrou logo atrás dele no quarto da Sra D. Emília Guimarães.

— Dionísio! bradou aterrada a romântica donzela.

— Querem ver que é o irmão, murmurou Eduardo.

Enbiou-me a Probidência,regongou o recém-chegado com entonação irrepreensivelmente melodramática, é grande o crime, Sra D. Emília da Fonseca Guimarães; a vingança há de ser tremenda, senhor desconhecido!