Um poema d′alma

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Eu sou como uma estatua, á qual n′um cemiterio A luz apenas doira o livido int′rior; Meu seio é triste, escuro e cheio de mysterio,

             Minha alma sem calor.
(Occasos. — Pedro de Lima.)
I

Chorar! sempre chorar!...

Estanca-te, meu pranto!

Consente que erga a voz, debil do soffrimento, Minh′alma angustiada, e que nos diga o quanto Tem sido doloroso o seu cruel tormento. Escutemos a triste. A sua historia é breve. Veremos o vigor com que ella nos descreve As pallidas visões da sua mocidade. Contar-nos-ha, tambem, com infantil saudade, As horas que passou, escutando as mimosas E inspiradas canções, que lhe deram as rosas

Do seu unico amor, — um ideal proscripto
Na treva do passado, um dédalo infinito.
Dirá que a sua amante era bella e franzina,
Que tinha o cóllo branco, as fórmas d'uma ondina
E no labio impolluto um sorriso candente,
Vermelho como a côr que tem o sol ponente.
Cogitará depois como é que nasce a aurora
De esp′erançosa illusão e como se evapora
No occaso sepulchral das coisas invisiveis!
— A esperança e a illusão são sempre marcesciveis.
Só temos dentro em nós um incola immudavel,
Chamado soffrimento, enorme, perduravel,
Nasce e morre comnosco e, seja breve ou longa
Nossa estada na terra, elle nunca nos deixa!
Se é larga a nossa vida a d′elle se prolonga,
Só fecha os olhos seus se o nosso olhar se fecha!

II


Amor!...
Existirá quem saiba comprehendel-o,
A elle, ao grande deus de tudo quanto é bello?
O mar, o luctador incessante e inclemente
Terá um coração que pulse ternamente,
Quando retracta em si, por noites de bonança,
Da lua o rosto amigo?
O seu bramido enorme
Será um grito d′alma a invocar a esperança?
Aquella furia ingloria e cruel que o consome

Será inconsciente?
— O′ grande monstro, ó mar!
Quem ha ahi tão vão que julgue devassar
Os mysterios que tens n′essas verdes entranhas?

O′ Primavera! tu, que vestes ás montanhas,
Aos cerros, aos jardins, aos oiteiros e aos prados,
Os trajos festivaes, os trajos perfumados,
Urdidos com a flôr das frescas balsaminas,
Da rosa, do jasmim, do lirio e das boninas;
Tu, que tens no teu seio as noites constelladas
E no labio vermelho as brancas madrugadas;
Tu, que trazes no olhar scintillações ardentes,
Como os beijos das mães e as orações dos crentes;
Tu, que és a inspiração das nossas phantasias,
Que ás andorinhas dás um ninho e ás cotovias
Uma argentina voz para saudar a aurora,
Sabes o que é amor, ó fada encantadora?

Esplendoroso sol, que passas no horisonte,
Levando um mar de fogo a salpicar-te a fronte,
Grande fecundador da vasta natureza,
Tu, que nos dás a luz, o calor e a riqueza,
Tu, que fórmas a chuva e que fórmas os ventos,
Que és um grande portento, entre os maiores portentos,
Dize, ó astro gentil, ó astro protector,
Tu pódes comprehender a immensidão do amor?

O′ lua, ó confidente eterna do poeta,
Que vae sob o balcão da timida Julieta
A deshoras chorar apaixonado canto,

O′ lua, tu, que tens reflectido no pranto
De mais d′um infeliz os teus raios siderios,
Desvendaste do amor os innumeros mysterios?

— Talvez!...
O mar, a lua, o sol, a primavera,
A natureza emfim, que é nossa mãe austera,
Tem fortes crispações de extranho movimento.
A tempestade, a paz, o cahos e o firmamento,
As luctas da materia, as transições do esp′rito,
Desde o odio inclemente ao affecto materno,
Desde a alegria leda ao soffrimento afflicto,
São paginas fataes, escriptas pelo Eterno
Que a humanidade lê e por mais que medita
Não póde comprehender.
O′ crença tão bemdicta,
Que immensuravel és! desde o Creador ao homem,
Da casta sensitiva ás heras parasitas,
Das infernaes paixões que o peito nos consomem
A′s crenças varonis bem fundamente escriptas
Em nossos corações, entreabre-se um abysmo
Fascinador, voraz, a que a Philosophia
Que faz a Evolução nas forjas do realismo,
Inda não fez baixar um só raio do dia!

III


Ter dentro em nôs o amor, a inspiração e a crença,
Um coração que pulsa, um cerebro que pensa,
A luz d′um ideal, que nos illumina e guia,

Como um brilhante sol, nos ceus da phantasia,
E ver, pouco e pouco, desfazer-se a esperança,
Sentir que o coração já de pulsar se cança,
Que se vae apagando aquelle nosso ideal
Nas trevas infernaes, ao vir do vendaval;
Ver em cada uma estrella o rosto illuminado
Da formosa mulher, que nos tem fascinado,
E em cada uma flôr, — a recender perfumes,
Como dardejam luz esses sagrados lumes,
Que tem em si o fogo, a espelhação do aço
Que vão a deslumbrar, na amplidão do espaço,­ —
A imagem da sua alma, immaculada e franca,
Como o olhar de Jesus e a alvura da hostia branca;
Depois fitar o ceu e vel-o já deserto,
Olhar para essa flôr e vel-a resequida,
Buscar dentro do peito o espectro d′um affecto,
(Do peito sem amor, sem fé e já sem vida!)
E′ triste expiação a quem só fez o crime
De ter um coração, apaixonado e amante,
Que louco se curvou, flexivel, como um vime,
A′ luz d'um terno olhar, traidor e fulminante!

E é essa a expiação cruel que tem haurido
Esta alma, angustiada em duro soffrimento,
Desde que viu passar o bando foragido
Das suas illusões, na aza do pensamento.