Uma Campanha Alegre/Advertência
ADVERTENCIA
As paginas d’este livro são aquellas com que outr’ora concorri para as Farpas, quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que a tolice tem cabeça de loiro, decidimos farpear até a morte a alimaria pesada e temerosa. Quem era eu, que fôrça ou razão superior recebera dos deuses, para assim me estabelecer na minha terra em justiceiro destruidor de monstros?... A mocidade tem d’estas esplendidas confianças; só por amar a Verdade imagina que a possue; e, magnificamente certo da sua infallibilidade, anceia por investir contra tudo o que diverge do seu ideal, e que ella portanto considera Erro, irremissivel Erro, fada. do á exterminação. Assim foi que, chegando da Universidade com o meu Proudhon mal lido debaixo do braço, me apressei gritar na cidade em que entrava — Morte á Tolice! E desde então, á ilharga de Ramalho Ortigão, não cessei durante dois annos de arremessar farpas, uma após outra, para todos os lados onde suppunha entrever o escuro cachaço taurino. Não me recordo se acertava; sem duvida muitos ferros se embotaram nas lages; mas cada arremesso era governado por um impulso puro da intelligencia ou do coração. E assim d’esses tempos ardentes me ficara a idea d’uma campanha muito alegre, muito elevada, em que a ironia se punha radiantemente ao serviço da justiça, cada rijo golpe fazia brotar uma soberba verdade, da demolição de tudo resaltava uma educação para todos, e o cumulto do ataque apparentemente desordenado era, como os dos gregos combatendo em Platéa, dirigido por Minerva armada— quero dizer, pela Razão.
Vinte annos são passados; — e hoje releio essas paginas amarellecidas das Farpas. Que encontro n’ellas? Um riso tumultuoso, lançado estridentemente através d’uma sociedade coino seu commentario unico e critica suprema. Encontro um riso desabalado — mas escassamente uma verdade adquirida, uma conclusão de experiencia e de saber, algum resultado visivel d’essa inspiração de Minerva que eu suppunha combatendo por traz de mim, invisivel e armada d’ouro, como nos campos de Platéa. Nada que para governar entre os homens o pensamento ou a conducta merecesse ficar archivado em tomos duraveis; — unicamente um riso immenso, troando, como as tubas de Josué, em torno a cidadellas que decerto não perderam uma só pedra, porque as vejo ainda, direitas, mais altas, da côr torpe do lôdo, estirando por cima de nós a sua sombra teimosa.
Ora vale a pena recolher, perpetuar este riso, esparso outr’ora em pamphletos leves? Ha por ventura utilidade em codificar assim a gargalhada? Aos milhares de livros que atravancam o mundo con. vém ajuntar um livro mais d’onde nada sae, quando aberto, senão o rumor fugidio e remoto de risadas de ha vinte annos, tão mortas como as rosas d’então?
Penso que não. E, por determinação minha, eu deixaria estas Farpas nos breves folhetos amarellos onde o Diabo ri por traz d’um oculo, já tão raros, e cada vez mais sumidos n’essa corrente vaga chamada «dos Tempos, que providencialmente vae acarretando tudo o que se tornou inutil, folhas de lirio e folhas de louro, os homens, as suas illusões immensas, e os seus pequeninos livros. Não o consentiu porém assim, por uma tocante superstição d’amizade, o meu camarada Ramalho Ortigão. Reunindo as suas Farpas, vasta obra, es. sa, de pensamento e de saber, elle desejou que não ficassem fora do seu monumento aquellas paginas que eu compuz a seu lado, nos primeiros tempos, quando, levados na mesma santa revolta, nos abalançamos a atacar toda uma Sociedade com um punhado ligeiro de ironias douradas.
Ahi vão pois as minhas Farpas, a que eu dou agora o nome unico que as define e as justifica — Uma Campanha Alegre. Não ha ahi com effeito senão uma trasbordante alegria empenhada n’uma campanha intrepida. Todo este livro é um riso que peleja. Que peleja por aquillo que eu suppunha a Razão. Que peleja contra aquillo que eu suppunha a Tolice.
Ahi vão pois estas Farpas, na sua forma primordial, improvisada na pressa e no fragor da lide — forma desordenada e tumultuaria, em que as palavras, as exclamações, as mesmas virgulas, tudo é empurrado para ávante, ao acaso, n’um tropel clamoroso, contra a cousa detestada que urgia demolir. E todavia, tal me pareceu agora a desordem, e tão incorrigivelmente se me impõe o amor da harmonia, que não resisti por vezes a disciplinar esta turba fremente de vocabulos em correria, e a estabelecer, n’estas orações descompostas onde adjectivos se estramalhavam, pesados adverbios cahiam no fundo de reticencias inesperadas, e verbos se acavallavam sobre verbos, — alguma regra, compostura e rythmo. Mas, além d’estas depurações exteriores, procurei escrupulosamente que não se desmanchasse aquelle feitio especial das Farpas que constituiu a sua força especial, e que nem uma nota se evaporasse d’aquelle riso que outr’ora tão triumphalmente cantou, e pelo contagio da sua sinceridade accordou os risos da multidão contra a Tolice de cabeça de toiro.
Terá ainda hoje este riso vibração bastante para despertar outros risos?... As cousas que o provo. carão são já tão passadas como as de Troia. Este livro é menos uma reimpressão que uma excavação. As minhas Farpas surgem á superficie, enferrujadas, sem gume e sem brilho, como as antigas armas d’uma batalha de que ninguem sabe o nome.
Que importa? O que me encanta, n’esta solemne reedição, é sobretudo a camaradagem. Depois de ter combatido arrebatadamente ao lado de Ramalho Ortigão em folhetos fogosos que um vento levava e espalhava nas ruas, sinto felicidade e orgulho em me encontrar ainda junto do meu amigo em volumes repletos, calmos, dorès sur tranche, que vão repousar no decoro e na paz das Bibliothecas.
Paris, outubro, 1890.
E. Q.