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Uma Campanha Alegre/I/I

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I

Junho 1871.

Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito — se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós, e vê.

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniênci a. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.

Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.

De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas, trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da opinião, com padre-nossos maquinais.


Não é uma existência, é uma expiação.

E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: «o País está perdido!» Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na economia, na moral, o País está desorganizado — e pede-se conhaque!

Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!


Nós não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começamos, sem azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar — o progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação amarga de panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina de humoristas?

Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico só há lugar para o humorismo? Esta decadência tomou-se um hábito, quase um bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios, eclesiásticos, políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam insuficientes. Contra este mundo é necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça!

Achas imprudente? Achas inútil? Achas irrespeitoso? Preferias que fizéssemos um jornal político, com todas as suas inépcias e todas as suas calúnias, vasto logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga entre as mãos dos tipógrafos?

Não. Fundaríamos antes um depósito de bichas de sangrar, ou uma casa de banhos quentes. E se nos tiranizasse excessivamente o astuto demónio da prosa, então, em honrada companhia do Sr. Fernandez de los Rios, ajoujados aos líricos de Barcelona, cantaríamos, voltados para os lados da Palestina, a pátria, a e o amor! E patentearíamos aquela crença vivida, aquele arranque peninsular, com que outrora se pelejou a batalha de Aljubarrota — e hoje se fazem caixinhas de obreias!

Aqui estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, doutrinário e grave!

Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades. Sabemos que está cheia de negativas.

Não sabemos, talvez, onde se deve ir; sabemos, decerto, onde se não deve estar.

Catão, com Pompeu e com César à vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Ternos esta meia ciência de Catão.

De onde vimos? Para onde vamos? — Podemos apenas responder:

Vimos de onde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes.

Nesta jornada, longa ou curta, vamos sós. Não levamos bandeira, nem clarim. Pelo caminho não leremos a Nação, nem o Almanaque das Cacholetas. Vamos conversando um pouco, rindo muito.

Somos dois simples sapadores às ordens do senso comum. Por ora, no alto da colina, aparecemos só nós. O grosso do exército vem atrás. Chama-se a Justiça.


Assim vamos. E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa. Apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um sinal! As nossas bandarilhas não têm cor, nem o branco da auriflama, nem o azul da blusa. Nunca poderão tão ligeiras Farpas ferir a grande artéria social: ficarão à epiderme. Dentro continuará a correr serenamente a matéria vital — sangue azul ou sangue vermelho, dissolução de guano ou extracto de salsaparrilha.


Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o riso é uma opinião.

Aqui está esta pobre Carta Constitucional que declara com ingenuidade que o País é católico e monárquico. É por isso talvez que ninguém crê na religião, e que ninguém crê na realeza! E que ninguém crê em ti, ó Carta Constitucional! Os ministros que te defendem, os jornais que te citam, os jurisconsultos que te comentam, os professores que te ensinam, as autoridades que te realizam, os padres que falam em ti à missa conventual, aqueles mesmos cuja única profissão era crer em ti, todos te renegam, e, ganhando o seu pão em teu nome, ridicularizam-te pelas mesas dos botequins!

A Carta adorada da Grã-Duquesa tem mais sucesso do que tu!

Descrê-se da religião, a que deste a honra de um parágrafo. A burguesia fez-se livre-pensadora. Tem ainda um resto de respeito maquinal pelo Todo-Poderoso, mas criva de epigramas as pretensões divinas de Jesus, e diz coisas desagradáveis ao Papa. O cepticismo faz parte do bom gosto. Nenhum ministro que se preze ousaria acreditar em S. Sebastião. A Teologia, o maior monumento do espírito humano, faz estalar de riso os cavalheiros liberais. Desprezam-se os padres e despreza-se o culto, o que não impede que a propósito de qualquer coisa se exija o juramento!

A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da consciência liberal, as burguesas enriquecidas tomaram-na sob a sua protecção: e gostam igualmente que as suas parelhas sejam vistas à porta da Marie e à porta dos Inglesinhos. Aceitam Deus como um chique.

Nos templos mesmo a religião caiu em descrédito. Ser padre não é uma convicção, é um ofício; o sacerdote crê e ora na proporção da côngrua. E como acredita mais na secretaria dos negócios eclesiásticos do que na revelação divina, trabalha nas eleições. O povo, esse, reza. E a única coisa que faz além de pagar.


A pobre realeza, que a Carta tanto honra, não é mais bem sucedida. E a perpétua escarnecida. E escarnecida pelos jornais de oposição, e pelos governos demitidos. 11 escarnecida nos teatros, onde o tipo do Rei Bobeche teve o triunfo de um panfleto. E escarnecida nas conversações dos cafés, e na maledicência do Grémio.

Segundo a Carta, a realeza é irresponsável. Mas não há partido que não lance a sua inépcia à conta da realeza. — Se não fosse o Rei! — é a desculpa invariável dos ministros que não governam, dos oradores que não falam, dos jornalistas que não escrevem, dos intrigantes que não alcançam.

A realeza é acusada por tudo: pelas despesas que faz e pela pobreza em que vive; pela sua acção e pela sua inacção; por dar bailes e por não dar bailes. O público está para com ela num estado enervado, como com um importuno a quem não lhe convém dizer: vai-te embora!

No entanto a opinião liberal continua a declarar que existe um trono. Existe para ela como um efeito de Quintiliano — como um movimento de eloquência para os discursos de grande gala!


Apesar disso, a esta política infiel aos seus princípios, vivendo num perpétuo desmentido de si mesma, desautorizada, apupada, pede ainda, a uma multidão inumerável de simples, a salvação da coisa pública. E trágico, como se se pedisse, a um palhaço de pernas quebradas, mais uma cambalhota ou mais um chiste.


O orgulho da política nacional é ser doutrinária. Ser doutrinário é ser um tanto ou quanto de todos os partidos; é ter deles por consequência o mínimo; é não ser de partido nenhum — ou ser cada um apenas do partido do seu egoísmo.

De modo que todos estes monárquicos, bem no íntimo, votariam por uma república. Todos estes republicanos terminam por concordar que é indispensável a monarquia!

Quer-se geralmente o prestígio da realeza e a majestade do poder; mas deseja-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguel e que Sua Majestade a Rainha não tenha mais que dois pares de botinas.

Chega-se a admirar Luís Blanc, mas prefere-se a tudo isso uma terra de semeadura obrigada à côngrua para o pároco e aos tantos por cento para a viação. A burguesia invejosa e desempregada fala na federação, na república federativa, na extinção do funcionalismo, na emancipação das classes operárias; mas entende que o País pode esperar por estes benefícios todos, se no entanto lhe derem a ela lugares de governadores civis ou de chefes de secretaria. Uma plebe ardente fala em beber o sangue da nobreza; mas ficaria satisfeita se a nobreza, em vez de oferecer a veia, mandasse abrir Cartaxo.

Tanto se conciliam todos! E assim que o egoísmo domina. Cada um se abaixa avidamente sobre o seu prato.

— Mas tudo se equilibra, diz a opinião constitucional, não há comoções, não há lutas!

Sim, tudo se equilibra — no desprezo, por desprezo.

Nas sociedades corrompidas a ordem chega assim às vezes a reinar.

E a ordem pelo desdém. Outros diriam pela imbecilidade!


A opinião é tão indiferente e alheia às mudanças de ministério, como as cadeiras do Governo são indiferentes a suportarem a pesada corpulência do gordo ministro A, ou a inquietação nervosa do esguio ministro B. O País ouve falar da evolução política, com a mesma distracção com que ouve falar dos negócios do Cáucaso.

Sabem, pois, qual seria o Governo útil, profícuo, necessário, neste deplorável estado do espírito público?

Aquele que o País, chamado a pronunciar-se por um plebiscito negativo, declarasse terminantemente e compactamente — que não queria. Porque então a opinião acordaria talvez, viveria, lutaria, e apareceriam dois partidos que não existem agora, e sobre os quais gira como nos seus pólos naturais a lei do aperfeiçoamento: — para um lado a Reacção, para outro a Revolução.


Até lá os poderes do Estado subsistem, tendo perdido a sua significação.

O corpo legislativo há muitos anos que não legisla Criado pela intriga, pela pressão administrativa, pela presença de quatro soldados e um senhor alferes, e pelo eleitor a 500 réis, vem apenas a ser uma assembleia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim. Às vezes procura viver; e demonstra então, em provas incessantes, a sua incapacidade orgânica para discutir, para pensar, para criar, para dirigir, para resolver a questão mais rudimentar de administração. Não sai dela uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito fino! A deputação é uma espécie de funcionalismo para quem é incapaz de qualquer função. E o emprego dos inúteis.

Por isso o parlamento é uma casa mal alumiada, onde se vai, à uma hora, conversar, escrever cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos.

O ministério, o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. E apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta. O País verifica todos os dias que alguns correios andam atrás de algumas carruagens — e fica contente.

— Lá vai um ministro! — diz-se na rua.

— Ah! vai? — exclama a burguesia. — Bem, existe a ordem!


E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro!

Pagou — já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Paga os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.

E em recompensa, dão-lhe uma farsa.

No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez

— Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam. O que apenas podemos dizer é que não é o sr. bispo de Viseu.


E não obstante, como tudo parece feliz e repousado! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério, todo encolhido, diz aos partidos — chuta! As secretarias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter, maneja sorrindo as quatro espécies. A polícia, torcendo os bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os cães vadios.

As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera... Viva a Carta!


Decerto, como tudo é congénere! Vejam a imprensa. A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os políticos.

Os políticos têm todos a mesma política:

A — quer ordem, economia e moralidade.

B — queixa-se de que não há economia nem moralidade, o que ele receia muito que venha a prejudicar a ordem.

C — diz que a ordem se não pode manter por mais tempo, porque ele nota que principia a faltar a moralidade e a economia.

D — observa que no estado em que vê a economia e a moralidade, lhe parece poder asseverar que será mantida a ordem.

Os noticiosos têm todos a mesma notícia:

A — noticia que o seu assinante, colaborador e amigo X, partiu para as Caldas da

Rainha.

B — refere que o seu amigo, colaborador e assinante que partiu para as Caldas da

Rainha, é X.

C — narra que, para as Caldas da Rainha, partiu X, seu colaborador, assinante e amigo.

D — que se esqueceu de contar oportunamente o caso, traz ao outro dia: «Querem alguns dizer que partira para as Caldas da Rainha X, o nosso amigo, assinante e colaborador. Não demos fé».


Se a imprensa política é assim harmónica na exposição da doutrina, nem sempre o é na apreciação dos factos.

Assim, por exemplo, o ministério Fulano propõe em cortes : — que, atentos os serviços da ostra, o Governo seja autorizado a declarar que se considera para com a ostra como um verdadeiro pai.

Então os jornais Fulanistas exclamam: «O Governo acaba de se declarar pai da ostra. Medida de grande alcance! E uma garantia para a ordem, um penhor solene de zelo pelos serviços públicos. Quando um Governo assim procede, pode-se dizer que ampara com mão segura o leme do Estado!»

Mas no dia imediato, por qualquer coisa, o ministério Fulano cai. Sobe o ministério Sicrano, e logo em seguida propõe em cortes: — que de ora em diante, atentas grandes vantagens para a causa pública, o Governo se declare para todos os efeitos em relação à ostra, mais que um pai, uma verdadeira mãe!

Dizem os mesmos jornais Fulanistas: «O ministério ominoso, que com mão tão incerta dirige o leme da coisa pública, declarou-se mãe da ostra. É mostrar um profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um ministério assim pratica é que vai no caminho da anarquia, e nos leva direitos ao abismo!»


Também não é igualmente harmónico o processo para julgar as pessoas.

O Sr. Fulano, feito presidente de ministros, vai à Câmara.

Ao outro dia dizem os jornais ministeriais:

«O nobre Presidente do Conselho tinha ontem, à sua entrada na Câmara, umas magníficas botas de pelica. Que admirável pelica! Só quando se tem como S. Exª um tão grande zelo pelo bem do País e uma tão alta experiência das coisas públicas, se pode encontrar uma tão boa pelica!»

Os jornais moderados, em expectativa, em meia oposição, declaram: — «Não somos aduladores do poder, dizemos-lhe em face a verdade. Conhecemos a longa experiência, os fortes dotes oratórios do Sr. Presidente do Conselho; mas, apesar do seu tacto político, S. Exª tinha simplesmente umas botas moderadas de vitela francesa».

Os jornais de oposição exclamam:

«Insensatos! Que vindes vós falar na experiência, nas virtudes cívicas do Sr.

Presidente do Conselho? S. Exª é ominoso! Não! As suas botas não são de vitela francesa, como quer uma oposição refalsada, nem de pelica fina, como quer uma maioria venal. As suas botas demonstram que caminhamos para a anarquia e são de couro de Salvaterra!»


Olhemos agora a literatura. A literatura — poesia e romance — sem ideia, sem originalidade, convencional, hipócrita, falsíssima, não exprime nada: nem a tendência colectiva da sociedade, nem o temperamento individual do escritor. Tudo em torno dela se transformou, só ela ficou imóvel. De modo que, pasmada e alheada, nem ela compreende o seu tempo, nem ninguém a compreende a ela. E como um trovador gótico, que acordasse de um sono secular numa fábrica de cerveja.

Fala do ideal, do êxtase, da febre, de Laura, de rosas, de liras, de Primaveras, de virgens pálidas — e em torno dela o mundo industrial, fabril, positivo, prático, experimental, pergunta, meio espantado, meio indignado:

— Que quer esta tonta? Que faz aqui? Emprega-se na vadiagem, levem-na à Polícia!

Ela, desatendida e desautorizada, vai todavia soltando, com grandes ares, por entre o gás e o pó do macadame, as declamações sonoras do lirismo de Lamartine e do misticismo de Chateaubriand. E gloria-se de ser nos seus costumes e nas suas obras, intransigentemente ideal. Mera questão de retórica: os poetas líricos e os cismadores idealistas tratam de se empregar nas secretarias, cultivam o bife do Áurea, são de um centro político, e usam flanela.

Em França ao menos a literatura, quando a corrupção veio, exprimiu a corrupção. No Paris da decadência, no Paris do barão Haussmann, e dos Srs. Rouher e Fialin (vulgo de Persigny), os livros detestáveis foram a expressão genuína e sincera de uma sociedade que se dissolvia. A literatura de Boulevard há-de ficar por esse motivo, e há-de ter o seu lugar na história do pensamento, assim como da decadência latina ficaram Apuleio, Petrónio e o mordente Tertuliano, cujo estilo tem cintilações ainda hoje tão vivas que parecem emanadas da podridão do moderno mundo poético.

Na corrente da literatura portuguesa nenhum movimento real se reflecte, nenhuma acção original se espelha. Como nas águas imóveis e escuras da lagoa dos mortos, apenas nela se retratam sombras. Mas são sombras que não têm as lívidas roupagens usadas no Estígio: estão de fraque e de chapéu alto — e é a única coisa que lhes dá direito a julgarem-se vivas!

A poesia fala-nos ainda de Julieta, Virgínia, Elvira — belas e interessantes criaturas no tempo em que Shakespeare se ajoelhava aos seus pés, em que Bernardim de Saint-Pierre lhes oferecia rapé da sua caixa de esmalte circundada de pérolas, em que Lamartine, embuçado na capa romântica de 1830, as passeava em gôndola nos lagos da Itália. Hoje são um ideal de museu.

E todavia, além destas mulheres, ela nada conhece no Mundo. A poesia contemporânea compõe-se assim de pequeninas sensibilidades, pequeninamente contadas por pequeninas vozes. O poeta lírico A diz-nos que Elvira lhe dera um lírio numa noite de luar! O poeta lírico B revela-nos que um desespero atroz lhe invade a alma, porque Francisca está nos braços de outro! O poeta lírico C conta-nos uma noite que passou com Eufémia, num caramanchão, olhando os astros e dizendo frases. E no meio das ocupações do nosso tempo, das questões que em roda de nós de toda a parte se erguem como temerosos pontos de interrogação, estes senhores vêm contar-nos as suas descrençazinhas ou as suas exaltaçõezinhas! No entanto operários vivem na miséria por essas trapeiras, e gente do campo vive na miséria por essas aldeias! E o Sr. Fulano e o Sr. Sicrano empregam toda a sua acção intelectual em se gabarem que apanharam boninas no prado, para as ir pôr na cuia de Elvira! Noites e noites movem-se os prelos a vapor, calandra-se o papel, esfalfam-se os tipógrafos, arrasam-se os revisores, emprega-se uma imensa quantidade de vida e de trabalho, para que o público saiba que o poeta lírico, Policarpo de tal, ama uma virgem pálida com olheiras!

E ainda se a poesia lírica se contentasse com ser de uma inutilidade lorpa... Mas ela é de um erotismo ofensivo! Há lupanares mais castos do que certos livros de versos que se chamam melancolicamente Harpelos ou Prelúdios.

Poesia lírica, poesia lírica, esconde-te nos conselhos de ministros ou nas secretarias do Estado! Não apareças ao mundo vivo. Sabes qual é o lugar que tu nele mereces? Não é o Panteão, é o Limoeiro.


A poesia individual tem um nobre alcance quando o poeta se chama Byron, Espronceda, Hugo, Lamartine, Musset. Porque então, naquelas almas, todo o século com as suas dúvidas, as suas lutas, as suas incertezas, as suas tendências, as suas contradições, se retrata. São grandes almas sonoras onde vibra em resumo toda a vida que as cerca. Estuda-se ali, como num sumário, a existência de uma época. Mas, com franqueza, que se há-de estudar na alma do Sr. João, ou na alma do Sr. Francisco? A imensa dúvida que pesa sobre a Baixa? Os tormentos ideais que agitam a Rua dos Fanqueiros?

E a maior desgraça e a maior tolice é que, por farfanteria lírica, alguns homens honestos na sua vida vêm diante do Público declarar-se perversos na sua rima!

Tomemos um exemplo, um dos mais piegas — o Sr. X. O Sr. X é um rapaz honesto, bom chefe de família, ganhando honradamente o seu pão. Merece a nossa estima.

Vejamos a sua poesia. Aí não se fala senão em amores, prazeres, delírios, orgias, virgens sacrificadas... Das seguintes coisas, uma:

Ou o Sr. X pinta a verdade quando escreve estes seus versos, e então é um devasso que dá um exemplo detestável a seus filhos, e desconsidera sua esposa... Como havemos de acreditar em tal caso na seriedade do seu carácter?

Ou o Sr. X não diz a verdade, e todos aqueles seus êxtases são rimados muito aconchegadamente à mesa do chá, entre um dicionário e uma poética, com um barrete de algodão na cabeça... Neste caso como havemos de acreditar na seriedade da sua arte?

O romance, esse, é a apoteose do adultério. Nada estuda, nada explica; não pinta caracteres, não desenha temperamentos, não analisa paixões. Não tem psicologia, nem acção. Júlia pálida, casada com António gordo, atira as algemas conjugais à cabeça do esposo, e desmaia liricamente nos braços de Artur, desgrenhado e macilento. Para maior comoção do leitor sensível e para desculpa da esposa infiel, António trabalha, o que é uma vergonha burguesa, e Artur é vadio, o que é uma glória romântica. E é sobre este drama de lupanar que as mulheres honestas estão derramando as lágrimas da sua sensibilidade desde 18501 O autor, ordinariamente, tem o hábito de Sant’Iago. O editor tem a perda. O leitor tem o tédio. — Santa distribuição do trabalho!

De resto, quando um sujeito consegue ter assim escrito três romances, a consciência pública reconhece que ele tem servido a causa do progresso e dá-se-lhe a pasta da fazenda.


Deves querer que te falemos do teatro, leitor de bom senso. Mas tu tens lido por essas esquinas os cartazes, e tens visto, mal sentado, quando o gás da sala diminui, erguer-se o pano sobre farsas tão melancólicas como uma ruína, e sobre dramas tão cómicos como uma caricatura de Cham!

O teatro perdeu a sua ideia, a sua significação; perdeu até o seu fim. Vai-se ao teatro passar um pouco a noite, ver uma mulher que nos interessa, combinar um juro com o agiota, acompanhar uma senhora, ou — quando há um drama bem pungente — para rir, como se lê um necrológio para se ficar de bom humor. Não se vai assistir ao desenvolvimento de uma ideia; não se vai sequer assistir à acção de um sentimento.

Vai-se, como ao Passeio, em noites de calor, para estar. No entanto, como é necessário que, quando se ergue o pano, se movam algumas figuras e se troquem alguns diálogos — tem por isso de existir em Portugal uma literatura dramática.

A ideia que acode a todos é traduzir. E desde logo moços, que ficaram no seu tempo reprovados no exame de Francês, traduzem. Onde está vous, põem v. exª; e este esforço prodigioso de invenção está gastando em Portugal a força de uma geração literária. Mas nem sempre se pode traduzir... O público gosta de ver coisas que se pas-sem no Chiado e na Rua dos Fanqueiros; e depois, as obras francesas são para grandes companhias de actores, que pelo seu número, pelos seus recursos, pelo seu saber, deixam livre a fantasia criadora do dramaturgo. Então imita-se. Onde está Mr. Valeroy, põe-se o Conselheiro Bezerra; onde está Lyon, põe-se Arcos de Valdevez; onde está Rue Vivienne, põe-se Beco do Fala-Só. Os jornais aplaudem, o Rei preside ao espectáculo, e todo o mundo vai tomar chá com emoção.


Mas é necessário por vezes que haja obras originais. Nesse caso imita-se do mesmo modo, mas põe-se no cartaz: original. Que importa? Sabem-no apenas três ou quatro amigos. Ou faz-se deveras uma coisa original. A dificuldade não está em obter os nomes das personagens. Uma acção também se alcança: há muitas feitas — a filha per-dida e depois achada, o cofre roubado, o fidalgo arruinado, o homem do povo sublime, etc. O difícil e fazer falar esta gente Neste lance, o dramaturgo nacional tudo explora e tudo aproveita: vai, procura, tira aqui, copia ali, arranca frases dos Miseráveis, gracejos do Sr. Luís de Araújo, discursos do Sr. Fontes ou de José Estêvão, tratados de Economia política, pedaços de artigos de fundo, sermões (muitos sermões!), recorta, cirze, cose, remenda, cola aqueles pedacinhos à língua de cada personagem, salpica-os de gestos de desespero, faz esguedelhar os cabelos, ensaia músicas tristes para os finais de actos (puxando assim ao sentimento o arco do rabecão), manda levantar o pano — e repousa na imortalidade.

O tempo em que o teatro floresceu foi o tempo em que o teatro cantou Offenbach. Offenbach então triunfava; todas as famílias o decoravam; todos os realejos o moíam; todos os sinos o repicavam. Levantava-se então a hóstia ao som da canção do general Bum! A alta burguesia sobretudo é que o frequentava, e que o adoptava. E nesta simpatia geral apenas alguns dramaturgos, alguns arranjadores, acusavam o maestrino filosófico de perverter o gosto, desmoralizar a consciência, e abaixar o nível intelectual.

Nem a burguesia teve razão em o adoptar, nem os dramaturgos em o maltratarem.

Não, dramaturgos amigos, não compreendestes Offenbach! Offenbach é maior que vós todos. Ele tem uma filosofia, vós não tendes uma ideia; ele tem uma crítica, vós nem tendes uma gramática! Quem, como ele, bateu em brecha todos os preconceitos do seu tempo? Quem, como ele, com quatro compassos e duas rabecas, deixou para sempre desautorizadas velhas instituições? Quem, como ele, fez a caricatura rutilante da decadência e da mediocridade? Vós, com a vossa severidade, não tendes feito um único serviço ao bom senso, à justiça, à moral. Tendes só feito sono! E ele? o militarismo, o despotismo, a intriga, o sacerdócio venal, a baixeza cortesã, a vaidade burguesa, tudo feriu, tudo revolveu, tudo abalou num couplet fulgurante! Não, alta burguesia, não fizeste bem em o aplaudir e em o proteger. Julgaste encontrar nele um passatempo, encontraste uma condenação. A sua música é a tua caricatura. Tão mal alumiados são os teatros, tão estreita a vossa penetração, que vos não reconhecestes um por um naquela galeria ruidosa dos medíocres do tempo? Não é o Rei Bobeche a fantasmagoria cantada da vossa realeza? Não é Calchas, da Bela Helena, a mascarada pagã do vosso clero? Não é o general Bum a personificação ruidosa da vossa estratégia de salão? Não é o barão Grog a grotesca pochade da vossa diplomacia? Não é o trio da conspiração a fotografia em couplets das vossas intrigas ministeriais? Não é toda a Grã-Duquesa a charge implacável dos vossos exércitos permanentes?

Vós ristes perdidamente de todas aquelas criações facetas? Pois da vossa realeza, da vossa diplomacia, do vosso exército, das vossas intrigas, dos vossos cortesãos vos ristes. E convosco riu-se todo o mundo, clero, nobreza e povo.

Sim, Offenbach, com a tua mão espirituosa, deste nesta burguesia oficial — uma bofetada? Não! Uma palmada na pança, ao alegre compasso dos cancãs, numa gargalhada europeia!

Offenbach é uma filosofia cantada.


Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.

Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.

Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos corno uma fatalidade.

Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.

Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.

Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.

Serve-se, não quem se respeita, mas quem se vê no poder. Um governador civil dizia: — «É boa! dizem que sou sucessivamente regenerador, histórico, reformista!... Eu nunca quis ser senão — governador civil!» Este homem tinha razão, porque mudar do Sr. Fontes para o Sr. Braamcamp, não é mudar de partido; — ambos aqueles cavalheiros são monárquicos e constitucionais e católicos. A desgraça é que, se em Portugal existissem partidos republicanos, monárquicos, socialistas, aquele homem, assim como fora sucessivamente reformista, histórico e regenerador — isto é, as coisas mais iguais — seria republicano, monárquico e socialista — isto e, as coisas mais contraditórias.

A família é a primeira a desmoralizar neste sentido a consciência. — «Quem apanhou, apanhou», é a voz doméstica. O indivíduo assim rebaixado, tendo perdido a altivez da dignidade e da opinião, habitua-se a dobrar-se; dobra-se diante do agiota, do merceeiro, do criado... Dobra-se sempre; propõe injustiças e aceita-as. Extingue-se nele gradualmente a noção do justo e do injusto. Julga o favor, a protecção, a corrupção, funções naturais e aceitáveis. Não há um juiz em Portugal que não possa contar que se lhe tem pedido as coisas mais monstruosamente iníquas, com a simplicidade com que se pede o lume de um cigarro.

O homem, à maneira que perde a virilidade de carácter, perde também a individualidade de pensamento. Depois, não tendo de formar o carácter, porque ele lhe é inútil e teria a todo o momento de o vergar; — não tendo de formar uma opinião, porque lhe seria incómoda e teria a todo o momento de a calar — costuma-se a viver sem carácter e sem opinião. Deixa de frequentar as ideias, perde o amor da rectidão. Cai na ignorância e na vileza.

Não se respeitando a si, não respeita os outros: mente, atraiçoa, e se chega a medrar, é pela intriga.


As mulheres vivem nas consequências desta decadência. Pobres, precisam casar. A caça ao marido é uma instituição. Levam-se as meninas aos teatros, aos bailes, aos passeios, para as mostrar, para as lançar à busca. Faz-se com a maior simplicidade esse acto simplesmente monstruoso. Para se imporem à atenção, as meninas têm as toilettes ruidosas, os penteados fantásticos, as árias ao piano.

A sua mira é o casamento rico. Gostam do luxo, da boa mesa, das salas estofadas: um marido rico realizaria esses ideais. Mas a maior parte das vezes, o sonho cai no lajedo: e casam com um empregado a 300$000 réis por ano. Aquilo começou pelo namoro e termina pelo tédio. Vem a indiferença, o vestido sujo, a cuia despenteada, o cão de regaço. As que porventura casam ricas desenvolvem outras vontades: satisfeitas as exigências do luxo, aparecem as exigências do temperamento.

Outrora havia a religião. Mas hoje as mulheres crêem da religião o que é necessário para ser moda; ou então crêem apenas na exterioridade — novenas, festas de igreja, flores e altares — tudo o que excita os sentidos, exalta a sensibilidade, e não dá uma regra para o julgamento, nem um critério para a consciência.

A Moda é que é uma religião. A modista reina, absorve tudo, não deixa tempo para a menor ocupação ou curiosidade de espírito. Rara a mulher que lê um livro. Rara a que tem um interesse intelectual

É porventura isto desenhar, a capricho, um quadro sombrio? — Não, descrevemos a acção de uma lei geral.

No fim de tudo, as mulheres virtuosas, as mulheres dignas formam ainda na sociedade portuguesa uma maioria inviolável! Se alguma coisa podemos dizer profundamente verdadeira é — que elas valem muito mais do que nós.

Nós é que somos abomináveis com a nossa caça à herdeira. É esse, hoje, para o homem, o supremo motivo do casamento. Em que se tornou hoje a família? A Família é o desastre que sucede a um homem por ter precisado de um dote!

A grande questão é o dote. Mulher, filhos, parentes, criados, são desagradáveis consequências que se sofrem. Faltando assim o laço moral, a família vive no egoísmo.

O homem, sem respeito, dá-se à concubinagem e ao jogo. A mulher, desocupada e enfastiada, dá-se ao sentimentalismo e ao trapo. Os filhos, se os há, são educados pelos criados, enquanto não são educados pelos cafés.


— Ando aborrecido! — é o coro geral. Os espíritos estão vazios, os sentidos insatisfeitos. Gradualmente, com a vontade doente, o corpo enfraquecido, o homem só procura distrair, matar o tempo. Mas em quê? Na leitura?

Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. Lê-se Ponson du Terrail — emprestado!

Ao teatro não se pede uma ideia: querem-se vistas, fatos, mutações. O espírito tem até preguiça de compreender um enredo de comédia; prefere-se olhar, recostado, fazendo a digestão de um mau jantar, os bastidores pintados do Rabo de Satanás.

O Passeio Público é um prazer lúgubre. E uma secretaria arborizada, onde se vai estar, gravemente, em silêncio, de olhar amortecido, de braços pendentes!

Os cafés são soturnos. Meio deitados para cima das mesas, os homens tornam o café a pequenos goles, ou fumam calados. A conversação extinguiu-se. Ninguém possui ideias originais e próprias. Há quatro ou cinco frases, feitas de há muito, que se repetem. Depois boceja-se. Quatro pessoas reúnem-se: passados cinco minutos, murmuradas as trivialidades, o pensamento de cada um dos conversadores é poder-se livrar dos outros três.

Perdeu-se através de tudo isto o sentimento de cidade e de pátria. Em Portugal o cidadão desapareceu. E todo o País não é mais do que uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam.

É uma Nação talhada para a ditadura — ou para a conquista.