Uma Campanha Alegre/I/LII
Dezembro 1872.
O primeiro destes artigos, tão rudemente desmantelado pelo estimável Bem
Público - censurava o clero do Funchal «por ter impedido que um negociante fosse enterrado no cemitério público, sob pretexto de deveres religiosos mal cumpridos».
O Bem Público cora no seu rosto indignado e exclama: - «A censura tem o mesmo valor que se a dirigisse ao sr. duque de Palmela, por não consentir que no jazigo da sua família sejam sepultados os cadáveres das pessoas que falecem!»
Esta argumentação é vitoriosa, aniquiladora. Somente nos parece que não há absoluta semelhança entre o cemitério público e o jazigo de família do sr. duque de
Palmela. Quando dizemos, ao estudar a nossa geografia, «Lisboa é capital de Portugal»
— não queremos inteiramente dar a entender que a capital de Portugal seja o Hotel dos dois irmãos unidos. E acrescenta o Bem: - «Se um negociante, enquanto vivo, não quer ter nada com as orações, com as assembleias religiosas, como pois condená-lo depois de morto a essas orações e assembleias que detestava em vivo?» O que equivale a dizer: -
Se esse negociante não queria ouvir missa, nem assistir ao lausperene, nem jejuar enquanto vivo - como condená-lo, depois de morto, a estar de joelhos ao lausperene e a comer bacalhau à sexta-feira?
Sim, Bem Público, estamos absolutamente de acordo! Um homem que gosta de comer à sexta-feira rosbife não pode, sem tirânica vileza, ser obrigado a ir para debaixo da terra, amortalhado, dentro do seu esquife, comer à sexta-feira o detestado rodovalho!
Sim, Bem Público! sim, amigo! sim, honrado colega! A verdade é essa! disseste-la com boca melíflua e sábia! Deve-se excluir do cemitério todo o homem que não ouviu missa em vivo... E lá o explicas, com profundidade no dizer e alto critério no pensar: - Porque não se pode obrigar esse homem a ouvir missa depois de morto! - Sim, amigo, tu o disseste, tu, de juvenil fé e de discreto lábio.
Depois o Bem, num outro período austero, pretende combater a afirmação das
Farpas - «que o cemitério não pertence aos padres, pertence aos cidadãos». Para aniquilar esta ideia o Bem afirma que poderia dar uma longa razão, e explica qual é essa razão. Mas acrescenta: «Não a daremos, porque seria insensata» (Bem Público, pág.
188, linha 25). Não, Bem, não, tu não és insensato! não te calunies, amigo, não te humilhes, Bem! Não rojes assim uma cabeça penitente no pó igualitário do macadame!
Não, tu até tens boa ortografia! Até tens bem boa forma de letra! Se quisesses, até eras subtil! É que não queres! Se tu quisesses!
E continua o estimável Bem argumentando. As Farpas disseram: - «Os cemitérios têm a sua origem na higiene, na polícia, na moral, na vida municipal: não têm a sua razão de ser na teologia». E o Bem exclama: - «Pois dizendo tal caem num erro histórico: os cemitérios têm a sua razão de ser na teologia: basta o nome e a história para prová-lo». Mas então uma consideração pavorosa acode: a teologia é pelo menos - deve sabê-lo o Bem - posterior aos primeiros séculos do cristianismo. Começa com as escolas, e com os doutores. Ora se os cemitérios datam apenas deste tempo, segundo afirma o Bem Público, se só têm a sua razão de ser desde que a teologia teve a sua razão
O excelente jornal, o Bem Público, num artigo amargo e piedoso, trabalhado com doçuras de sacristia e repelões de sala de armas, de resto subtil e curioso - dá-nos a honra de sacudir, com a sua pesada mão católica e romana, três pobres artigos das
Farpas. de dominar - o que acontece? É que todos os mortos, desde Nemrod, estiveram aos milhares e aos milhares, enfastiados, de braços cruzados, esperando que a teologia lhes permitisse deitarem-se nos seus sepulcros. Horrorosa antecâmara! Esperaram séculos! E vinham mais, e mais, e mais! Em que se entretiveram tanto tempo, envoltos nos seus sudários, impacientes pelo seu enterro? Oh! sábio Bem Público, diz-no-lo, tu que o sabes! Se os homens só foram enterrados desde que a teologia se fixou em grossos tornos - em que lugar tenebroso aguardaram o seu dia de sepultura os primitivos árias, os luminosos índios, o persa trabalhador, o grego erudito e subtil, os milhares de habitantes do império romano, as raças que viveram junto ao Nilo, e os povos bárbaros que habitavam o norte da Europa, e todos os habitantes de todos os continentes, de todos os séculos? Di-lo, sábio Bem! Será verdade que eles passeavam pelo éter, fumando o seu cigarro - à espera que Santo Agostinho nascesse? Como tu és instrutivo, oh Bem! Só há cemitérios onde há teologia católica. E corno explicas então os cemitérios modernos de Constantinopla e do Cairo, e os de todos os países maometanos, e os de todos os outros países onde floresce alguma das 1 religiões que florescem na Terra, além da católica? Explica isto bem, Bem!
Mas o piedoso jornal exclama ainda: «Os católicos não impedem que os que têm pouca religião ou nenhuma, sejam enterrados: porque não estabelecem as câmaras municipais, para esses, cemitérios especiais?» Parece-nos prudente este alvitre do Bem: estabelecer cemitérios para quem tem muita religião: outros para quem tem bastante: outros para os que possuem alguma: outros para os que alardeiam pouquíssima: outros para os que não apresentam nenhuma. Enfim, um cemitério para cada medida! Um cemitério aos gramas! Ah Bem, como tu vais mal!
O segundo artigo das Farpas censurava que «os missionários vendessem cartas da Virgem Maria a diversos devotos».
O Bem Público diz que nós agitamos argumentos bicórneos. Mas não combate, nem aprecia, nem sequer indica - esses argumentos. É timidez? É desdém? É pudor?
Somente acrescenta: - «A história é falsa: 1º porque os jornais de Braga não falaram em tal...»
Mas, querido Bem, os jornais de Coimbra, os jornais do Porto, e os jornais de
Lisboa, que são liberais, contaram-no. Vale alguma coisa que o não referissem os jornais de Braga, que são ultramontanos? E esses mesmos não estão anunciando a cada momento livros que se vendem para evitar o fim do mundo, cartas vindas do Céu, relíquias achadas, etc.?
Diz mais o Bem: «2º porque em Braga não há missionários!» Como assim!
Tresloucas, Bem! Não há missionários em Braga? Diz antes, amigo, que não há turcos em Constantinopla! que não há água nos rios! que não há estrelas no céu! que não há sons na música! Ah querido! Não há missionários em Braga? Onde os há então, em
Berlim?
No terceiro artigo, as Farpas tinham censurado o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, por ter proibido que as mães levem os filhos à Igreja! O Bem Público escandaliza-se e grita: - «O que iam as crianças fazer aí? Se as mães queriam ir à missa, e não podiam deixar as crianças em casa - que não fossem à missa, que estão em primeiro lugar os deveres da lactação, que os desejos da devoção!»
Esplendidamente bem dito! Mas quem o disse? Foi Michelet decerto, o iniciador naturalista da educação anticatólica? Foi Proudhon talvez, o rude inimigo da Igreja?
Não, meus bons senhores! não, Nação! não, Braga! Foi o Bem Público, jornal católico, romano, devoto, piedoso, ungido em água benta! Os deveres da lactação primeiro que os desejos da devoção! Mas é perfeitamente revolucionário! A lactação antes da devoção - isto é, a natureza antes do misticismo, a razão antes da fé, o dever humano e consciente antes do dever divino e transcendente, o raciocínio antes do dogma, a higiene antes do Evangelho, a mãe antes da devota, o preceito naturalista antes da regra da
Igreja, o homem antes de Deus! Bravo, Bem Público! Segundo tu, o preceito, a missa, a
Igreja, são coisas secundárias, indiferentes, para quando houver vagar. Objecto de luxo, para os dias de ócio, uma forma do teatro aos domingos! «Que farei hoje, irei à igreja ou à Rua dos Condes?» De modo que só quando a mulher tiver amamentado seu filho, arranjado a sua casa, cozinhado o seu jantar, cumprido todos os seus deveres humanos, e se achar numa hora desocupada e vaga - é que deverá ir à missa? Dizes excelentemente! Mas então repara bem, ó Bem. Se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico - rachas de alto a baixo o catolicismo: se a mãe deve amamentar antes de rezar, o homem deve obedecer à sua razão consciente antes de obedecer ao preceito religioso: tens a análise, a liberdade religiosa, a reforma, a revolução. Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo! O Bem
Público, estás pois assim naturalista e ateu? És então um falso devoto? Por cima da tua sotaina de sacristão pões uma faixa escarlate de membro da comuna? O Bem! Espalhas tu água benta ou petróleo? Treme, desgraçado! enquanto a Nação tua irmã, enquanto o
Diário Nacional, a Crença, estarão muito contentes no Paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança por teres renegado a fé, errarás, como uma sombra aflita, na vastidão do céu negro, através de interminável dor, aos encontrões com as sombras condenadas de Sardanápalo, o pagão, e do aborrecido Pilatos!
Ah! Bem Público, excêntrico maganão, conserva-te quieto na tua doce sombra!
Reza, jejua, canta no coro, usa cilício - mas deixa-nos em paz.
Contenta-te em ser um jornal boa pessoa, pesadote e pacatote - e a ter o inteiro aplauso de antigos egressos. Mas não venhas interpor-te no nosso caminho. Toma ao teu canto o teu rapé, e usa em silêncio a tua flanela. E serás grande, ó Bem! ó bom Bem! á
Bem bom! Bum!