Uma Campanha Alegre/I/XIX
XIX
Samuel é nosso amigo, ama o nosso riso, e presta as suas mãos, que diz cansadas e velhas, para ajudar a tirar a verdade do fundo do nosso poço.
Samuel porém insinua que as Farpas mostram vaidade quando afirmam que são o bom senso — porque ninguém é o bom senso! Mas, injusto Samuel, atende bem! — As
Farpas não disseram que eram o bom senso absoluto, com a suprema plenitude da razão, a posse exclusiva da verdade, nenhum temperamento e muita roupa branca! O nosso prospecto não declarava — As Farpas são o espírito de Deus levado sobre as
águas.
Pobres Farpas! decerto que elas não são a coluna de log o, nem as doze tábuas da lei, nem a grande voz do deserto! — Enfeitadas e coloridas na sua porção de bandarilhas, aguçadas e incisivas na sua porção de ferro, ágeis e laboriosas como abelhas, elas são sobretudo e antes de tudo 96 páginas impressas na Tipografia Universal, sem grandes erros de gramática e sem grandes verdades de filosofia, estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa — e contentando-se com serem alegremente recebidas, pela manhã, à hora do correio e do almoço, por alguns espíritos simpáticos e por algumas brancas mãos. Diógenes decerto, por tão pouco, não apagaria a sua lanterna!
Samuel escreve-nos uma carta, que ele intitula Consciência, e em que discute opiniões, juízos, ditos, espalhados, ao flutuante acaso do humorismo, nas páginas rápidas destes volumes.
XX
Agosto 1871.
Bom, ou mau, o folheto foi lido, levemente discutido, totalmente comprado. Era anónimo.
Que há-de acontecer? o Governo proíbe-lhe a venda! Só aqui há um mundo revolto de pilhéria. O livro é publicado em Maio, esgotado em Junho, e proibido em
Julho! A única crítica é a gargalhada!
Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada.
Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel — a gargalhada!
Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime — nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça. Tu és filha de um dichote que casou com uma pirueta! Tu és clown! tu és Fajardo! Se viveres, rimos! A oração fúnebre que diremos sobre a tua campa será — Ah! ah! ah! — A nota que a teu respeito se lançará na história será — Ih! ih! 1h! A tua recordação entre os homens será — Uh! uh! uh! Oh poder executivo! oh Sandio Pança! oh pilhéria! Publicado num mês, esgotado no outro, proibido no seguinte! Oh Pátria! Oh cambalhota! oh Bertoldinho!
Mas corre que o Governo, além de proibir o folheto, vai processar o autor do folheto. Aí, alto! Recolhemos a gargalhada, tiramos do cesto o ferro em brasa.
Processado porquê?
Três coisas fazia o autor anónimo daquele opúsculo:
Explicava a situação e as ideias dos partidos em França; verberava os Srs. Thiers e
Jules Favre; defendia alguns actos da comuna e alguns dos seus homens.
Por qual destes três factos é ele processado? Qual determina o estado de criminalidade?
Explicar os partidos em França? Então são seus cúmplices e devem ser processados pelo Governo português:
Todos os jornais, de todas as cores, de todas as cidades;
Todos os deputados, de todas as câmaras, de todas as nações;
Todos os livros, de todas as políticas, de todos os continentes.
E preparar, para toda esta gente, quartos no Limoeiro! Ergue-te e abre, ó Manuel
Mendes Enxúndia!
É acusado o autor do folheto por ter verberado os Srs. Thiers e Favre? Que lei lho proíbe? Que regulamento, que portaria, que decreto me inibe, a mim, a ti, a ele, de gritar em cima das torres que o Sr. Thiers é um imbecil, o Sr. Favre um traidor, o imperador da Rússia um bebedor de champanhe?! Está o Sr. Thiers elevado à categoria de dogma?
E ele equiparado pelo Governo à religião do Estado? Temos o Sr. Thiers inviolável como Cristo?
Que façam um processo às Farpas, pois nós declaramos isto: — O Sr. Thiers é um sujeito astuto, aproveitável a um país que precise viver de expedientes, mas
Publicou-se, há tempo, na Imprensa da Universidade, em Coimbra, um folheto acerca da Comuna. perfeitamente inapto para uma nação que tenha de se organizar com ideias; é um político de pequenos meios que já foi polícia e parteiro.
O Sr. Favre é um bastardo de Robespierre, declamador de tribunal, violentador do poder em 4 de Setembro como radical, e em 18 de Março ministro conservador, personagem característico daquela farsa política que se chama — tira-te tu, para que vá eu!
E aqui estão estes Adolfo Thiers e Júlio Favre, iguais em inviolabilidade à
Sagrada Eucaristia, ou à Imaculada Conceição! E seremos processados, seremos degradados, se ousarmos vergastar com algumas frases de história as carnes antiquadas dos Srs. Adolfo e Júlio!
Mas é acusado o autor do folheto por ter defendido alguns actos da comuna e alguns dos seus homens? — Oh! indigna vergonha! Pois é proibido em Portugal ter opinião sobre um facto estrangeiro? Pois a comuna passou-se na nossa política? Foi a
Rua do Arco do Bandeira incendiada com petróleo? Foi o Sr. O. de Vasconcelos que mandou fuzilar o arcebispo de Paris? Pois não pertence a história ao puro domínio do pensamento? Pois a própria França não impede que se escrevam livros louvando a comuna, e o Governo português impede-o? Pois o Governo não proíbe que os jornais legitimistas exaltem o absolutismo que prendeu e matou, cortou a machado nossos pais, sequestrou as nossas casas, queimou as nossas searas, e proíbe que se discuta uma política cujos excessos se passaram a 100 léguas de nós, sem relação connosco, sem acção na nossa acção?! Pois há alguma lei que me obrigue a amar S. Francisco de Sales e a desprezar Tibério?! Pois a opinião impõe-se como as posturas da câmara municipal?! Pois haverá cartilha para as nossas apreciações históricas? Se o Governo proíbe que se exaltem os homens da Comuna, deve logicamente proibir que se exaltem os homens de 93, o Governo provisório de 48, e que admiremos o próprio Sr. Thiers, antigo redactor do Nacional, fautor da revolução de 30! E que vá mais longe então! que nos processe, porque nós admiramos os Gracos, Espártaco salvador de escravos, Moisés que libertou um povo, Cristo que remiu uma raça!
O Governo português pondo a sua tosca mão sobre o pensamento! — oh! pirueta, dá-lhe tu a recompensa!