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Uma Campanha Alegre/I/XVIII

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XVIII

Julho 1871.

Houve este mez um panico patriotico: julgou-se que iamos perder Macau! A China, segundo se affirmava, tinha intimado Portugal a evacuar aquella colonia —-onde só devia reinar o rabicho.

Foi acusado acremente o Governo; a Baixa pululou de alvitres; e o orgulho nacional da Rua dos Retroseiros pareceu profundamente ferido. Corria que o Sr. Carlos

Bento, como outrora Caím, ouvia, a horas mortas, vozes vingativas que lhe bradavam:

— Que fizeste tu de Macau, Bento?

E tanto que o Governo, para nos tranquilizar, bradou de entre as colunas do Diário do Governo:

— Não, Portugueses, não, Macau ainda é vosso!

A verdade parece ser que Macau está ainda preso à Metrópole — por alguns telegramas que se estão trocando entre o governador de lá, e o Governo de cá. Diríamos que está por um fio! — se tão lamentável eq uívoco se pudesse escrever, quando se trata do orgulho nacional e da Baixa.

As relações de Portugal com as suas colónias são originais. Elas não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um único melhoramento: é uma sublime luta — de abstenção!

— Não — exclamam elas com o olhar voltado de revés para a Metrópole — mais rendimento que o deste ano, que é nenhum, não és tu capaz de nos pilhar, malvada!

— Também — responde obliquamente a Metrópole — em maior desprezo não sois vós capazes de estar!

Quando muito, às vezes, a Metrópole remete às colónias um governador: agradecidas, as colónias mandam à mãe-pátria — uma banana. E perante este grande movimento de interesses e de trocas, Lisboa exclama:

— Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente, somos um povo de navegadores!

É necessário no entanto fazer justiça à Metrópole. A Metrópole tem certas generosidades consideráveis com as colónias. Assim, com os Açores — que não são uma colónia, mas que pela distância, pelo abandono, pela separação de interesses, têm toda a fisionomia colonial... Portugal para com os Açores é inesgotável — de desembargadores!

Às vezes os jornais dos Açores, tomando um ar severo, voltam-se para a Metrópole, e gritam-lhe no rosto: madrasta! O reino imediatamente lhes manda, com todo o zelo — dois desembargadores!

Mas daí a pouco os Açores, inquietos, começam a dizer que não seria mau tentar os Estados Unidos! O País ataranta-se; e para lisonjear os Açores, manda-lhe mais desembargadores. De todos os paquetes, os Açores, aterrados, vêem desembarcar turbas de desembargadores. Já aquele fértil solo negreja de desembargadores.

— Basta! — exclamam os Açores sufocados.

— Basta de segunda instância!

E a Metrópole, inexaurível no seu amor, continua impassível a verter-lhe no seio — catadupas de desembargadores!

Igual generosidade para com as possessões de África, verdadeiras e legítimas

Houve este mês um pânico patriótico: julgou-se que íamos perder Macau! A

China, segundo se afirmava, tinha intimado Portugal a evacuar aquela colónia — onde só devia reinar o rabicho. colónias, essas! Para aí o País é inesgotável — de celerados! E celerados escolhidos com inteligência. Um sujeito que tenha tido a baixeza de roubar só 5$000 réis, nunca poderá aspirar a fazer parte da sociedade de Luanda. Para se ser remetido como mimo da

Metrópole é necessário, pelo menos, ter sondado, com a navalha de ponta, as entranhas de um amigo querido!

Poderá supor-se que Moçambique e Compª recebem estas dádivas com um entusiasmo — extremamente sublinhado. Não! As possessões de África estão contentes.

Há-de vir tempo mesmo em que quem quiser em Moçambique ou em Angola um criado, um amigo ou um noivo — esperará a remessa dos facínoras.

Os comerciantes irão dizendo, com ar pensativo:

— Isto vai mal! Não há caixeiros de confiança! Os ladrões desta vez tardam!

E um sujeito será assim apresentado numa casa particular:

— O Sr. Fulaninho, que teve a honra o ano passado de assassinar seu próprio pai, como demonstra...

— Oh! muito gosto em conhecer...

— E a Srª Fulana, ladra muito conhecida na sociedade da Boa Hora.

— Então? tem a bondade de se sentar!

E com estas generosidades que o Governo responde vitoriosamente àqueles que vão, em falsas vozes, afirmando:

Que o País despreza as colónias; que elas estão abandonadas a uma frouxa iniciativa particular, sem estímulo, sem protecção, sem tranquilidade; que a energia individual só pode ser fecunda num país bem policiado; que nas colónias não há garantias de segurança, nem solicitude pelo comércio, nem polícia, nem higiene, nem instrução; que tudo ali vive na desordem, na desorganização, no desleixo, numa antiquíssima rotina; e que o único movimento é o do estrangeiro que as explora de facto

— apesar de nós as possuirmos de direito.

Mas, meus senhores, antes de tudo, nós não temos marinha! Singular coisa! Nós só temos marinha pelo motivo de termos colónias — e justamente as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha! Todavia a nossa marinha, ausente dos mares, sulca profundamente o orçamento. Gasta 1159 000$000!

Que realidade corresponde a esta fantasmagoria das cifras? uns poucos de navios defeituosos, velhos, decrépitos, quase inúteis, sem artilharia, sem condições de navegabilidade, com cordame podre, a mastreação carunchosa, a história obscura. E uma marinha inválida. A D. João tem 50 anos, o breu cobre-lhe as cãs: o seu maior desejo seria aposentar-se como barca de banhos.

A Pedro Nunes está em tal estado, que, vendida, dá uma soma que o pudor nos impede de escrever. O Estado pode comprar um chapéu no Roxo com a Pedro Nunes — mas não pode pedir troco.

A Mindelo tem um jeito: deita-se. No mar alto, todas as suas tendências, todos os seus esforços são para se deitar. Os oficiais de marinha que embarcam neste vaso fazem disposições finais. A Mindelo é um esquife — a hélice.

A Napier saiu um dia para uma possessão. Conseguiu lá chegar; mas exausta, não quis, não pôde voltar. Pediu-se-lhe, lembrou-se-lhe a honra nacional, citou-se-lhe

Camões, o Sr. Melício, todas as nossas glórias. A Napier insensível, como morta, não se mexeu.

Das 8 corvetas que possuímos são inúteis para combate ou para transporte — todas as 8. Nem construção para entrar em fogo, nem capacidade para conduzir tropa. Não têm aplicação. Há ideia de as alugar como hotéis. A nossa esquadra é uma colecção de jangadas disfarçadas! E este grande povo de navegadores acha-se reduzido a admirar o vapor de Cacilhas!

Têm um único mérito estes navios perante uma agressão estrangeira: impor pelo respeito da idade. Quem ousaria atacar as cãs destes velhos?

Já se quis muitas vezes introduzir nas fileiras destes vasos caducos — alguns navios novos, ágeis, robustos. Tentou-se primeiro comprá-los.

Sucedeu o caso da corveta Hawks. Era esta corveta uma carcaça britânica, que o

Almirantado mandava vender pela madeira — como se vende um livro pelo peso. Por esse tempo o Governo português — morgado de província ingénuo e generoso — travou conhecimento com a Hawks, e comprou a Hawks. E quando mais tarde, para glória da monarquia, quis usar dela, a Hawks, com um impudor abjecto — desfez-se-lhe nas mãos!

Estava podre! Nem fingir soube! Tinha custado muitas mil libras.

Tentou-se então construir em Portugal. Sabia-se que o Arsenal é uma instituição verdadeiramente informe: nem oficinas, nem instrumentos, nem engenheiros, nem organização, nem direcção. Tentou-se todavia — e fez-se nos estaleiros a Duque da

Terceira. Foi meter máquina a Inglaterra. E aí se descobre que a tenra Duque da

Terceira, da idade de meses, tinha o fundo podre! Foi necessário gastar com ela mais cento e tantos contos.

Nova tentativa. Entra nos estaleiros a Infante D. João. 87 contos de despesa. Vai meter máquina a Inglaterra. Fundo podre! O Arsenal perdia a cabeça! Aquela podridão começava a apresentar-se com um carácter de insistência verdadeiramente antipatriótica! Os engenheiros em Inglaterra já se não aproximavam dos navios portugueses senão em bicos de pés — e com o lenço no nariz. As construções saídas do

Arsenal sucumbiam de podridão fulminante. A Infante D. João custou em Inglaterra, mais cento e tantos contos!

O Arsenal, humilhado no género navio, começou a tentar a especialidade lancha.

Fez uma a vapor. Lança-se ao Tejo, alegria nacional, colchas, foguetes, bandeirolas... E a lancha não anda! Dá-se-lhe toda a força, geme a máquina, range o costado — e a lancha imóvel! Mas de repente faz um movimento... Alegria inesperada, desilusão imediata! A lancha recuava. Era uma brisa que a repelia. Em todas as experiências a lancha recuava com extrema condescendência: brisa ou corrente tudo a levava, mas para trás. Para diante, não ia. Pegava-se! O Arsenal tinha feito uma lancha a vapor que só podia avançar — puxada a bois. O País riu durante um mês. O Arsenal roeu a humilhação, encetou a espécie caí que. Ainda o havemos de ver, no género construção em madeira, cultivar — o palito!

A nossa glória, inquestionavelmente, é a Estefânia. Parece que poucas nações possuem um vaso de guerra tão bem tapetado! O orgulho daquele navio é rivalizar com os quartos do Hotel Central. E um salão de Verão surto no Tejo. E no Tejo realmente dá-se bem. No mar alto, não! Aí tem tonturas. Não nasceu para aquilo: um navio é um organismo, e como tal pode ter vocações: a vocação da Estefânia era ser gabinete de toilette. E pacata como um conselheiro. E uma fragata do Tribunal de Contas! Por isso quando a quiseram levar a Suez, quantos desgostos deu à sua Pátria! quantas brancas fez

à honra nacional! E verdade que os cabos novos, da Cordoaria Nacional (sempre tu, ó terra do nosso berço!) quebraram como linhas, e ninguém lhes pode contestar que tivessem esse direito. A marinhagem também não quis subir às vergas (opinião respeitável, porque a noite estava fria). Alguns aspirantes choraram de entusiasmo pela

Pátria. O capelão quis confessar os navegadores.

O caso foi muito falado nesse tempo. Mais celebrado que a descoberta da índia.

Essa só teve Camões que naufragou; — a viagem da Estefânia teve o Sr. O. Vasconcelos que arribou! Tanto é semelhante o destino dos que cultivam o ideal! O facto é que desde então brilha no Tejo, tranquila, reluzente e vaidosa — a Estefânia, corveta mobilada pelos Srs. Gardé e Raul de Carvalho.

Com tal marinha, como podem as colónias prosperar? O Governo daqui a pouco, quando a idade for dizimando estes antigos vasos de guerra — não tem quem lhe leve às colónias um regimento, uma ordem, um ofício. Vê-lo-emos — para vergonha eterna de uma das caravelas de Vasco da Gama — pedir à marinha mercante o patacho Constância, com o fim de acudir a Timor. Há-de chegar a recorrer às faluas de Alcochete. E mais tarde, pela nossa pobreza progressiva, as comunicações com as colónias terão de ser feitas — de viva voz!

Quando houver um ofício que remeter para um governador de colónia, irá um amanuense da secretaria ao Cais do Tejo, e aí, voltando-se para o sul, bradará no espaço e nos ventos:

— Il.mo e Ex.mo Sr...

E as solidões do Oceano repetirão gemendo:

— Il.mo e Ex.mo Sr.!

E depois, sucede que nem todos os ministros dão igual importância à marinha. Se por exemplo os Srs. Latino e Rebelo pensavam que a organização da marinha garantia a prosperidade das colónias, aqui temos o Sr. Melo Gouveia que pensa de outro modo, ele!

Ele entende que a marinha serve — para manter bem presente nas colónias a ideia da Pátria, e sobretudo, (textual: discurso de S. Exª por ocasião da discussão do orçamento da marinha na legislatura passada) sobretudo «para certificar às colónias que elas são lembradas na Pátria com carinho e saudade».

E aí está! Nós a pensarmos que um navio ia vigiar o litoral, garantir a paz interior, impor o respeito ao estrangeiro, dar protecção ao comércio — e no fim o que o navio vai fazer é significar às colónias que a Pátria melancólica lhes manda muitos recados e os seus suspiros!

Ora neste caso a marinha pode ser dispensada. Para expressar o nosso sentimento basta que o Governo remeta às colónias, pelo vapor da carreira, um bilhete contendo uma saudade roxa, uma mecha dos seus cabelos, e estes dizeres meigos:

— «Colónia! lembro-me de ti com pungente mágoa, definho nos teus ardores...

Lembra-te de mim, meu bem... Olha de lá a Lua, que eu de cá também a olho com a alma em ti. Pensando nos teus encantos, dou largas ao salgado pranto. Até à morte o teu

Fiel amante, o ministro e secretário dos negócios da marinha e ultramar,

Gouveia e Melo.»

Ou, para não dar escândalo, pode o Governo de S. M. recorrer a um anúncio amoroso nos jornais.

COLÓNIAS PORTUGUESAS

FITA AZUL NO CHAPÉU

«Sigilo e sentimento. Recebi. Ralado de paixão. Confiemos no Céu. Quem te pudesse ver no Passeio Público à boquinha da noite! Unamos as nossas mentes na mesma prece. Teu, Gouveia.»

Enfim, o amor é muito engenhoso; e o Sr. Melo Gouveia achará, decerto, depois de extinta a marinha, um meio interessante para que o Governo possa manifestar às colónias — a sua chama!

Para que temos colónias? E ai de nós que as não teremos muito tempo! Bem cedo elas nos serão expropriadas por utilidade humana. A Europa pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da civilização; e que tirar as colónias à nossa inércia nacional, é conquistá-las para o progresso universal. Nós temo-las aferrolhadas no nosso cárcere privado de miséria. Não tardará que na Europa se pense em as libertar.

Para evitar esse dia de humilhação sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX — e vendamos as colónias.

Sim, sim! bem sabemos! a honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc.!

Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de um fidalgo (quando os havia) que deixasse em redor dele seus filhos na fome e na imundície — para não vender as salvas de prata que foram de seus avós? Todos diriam que era um imbecil canalha!

Pois bem, estes 4 milhões de portugueses são os filhos esfomeados do Estado, para quem as colónias estão como velhas salvas de família postas a um canto num armário. E hesitará o Estado em as vender? Sobretudo quando temos de as perder? Se o País se pudesse reorganizar — bem! As colónias seriam no futuro uma força. Mas assim! com esta decadência progressiva, irremissível...

E verdade que se as vendêssemos, o Governo deixaria o País no mesmo estado de miséria, e, como já não tinha colónias — compraria fragatas! Dilema pavoroso! Devemos vender as colónias, porque não temos Governo que as administre; mas não as podemos vender, porque não teríamos Governo que administrasse o produto! Miserere!

E depois se as vendêssemos, que dor para o Sr. Gouveia — que as ama! A quem daria ele então as esperanças da sua mocidade e o vico do seu peito? Não, colonias, sêde sempre fieis a Gouveia! Não espesinheis esse coração de vinte annos, cheio de crenças! Que a vossa divisa seja d’ora avante; Gouveia e cacau!

E prosperareis!