Uma Campanha Alegre/I/XXI

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XXI

 

Agosto 1871.

 

A camara conservadora defende-se! rejeita por 51 votos contra 23 a reforma da Carta! Mas como fôram extranhas as declarações de alguns dos 51 conservadores Porque (quem jamais o diria?) elles só votaram contra a reforma da Carta — por entenderem que a Carta deve ser reformada!

Somente entendem tambem que a reforma é inopportuna. Um homem é agarrado por dois ladrões, amarrado a uma arvore. De madrugada passam dois cavalleiros, e vêem ao longe, vagamente, na neblina, o vulto. Comprehende-se que discutam, no primeiro momento, se é ou não um homem que alli está em agonia: mas, desde que verificaram que é um homem, o que se dirá do seu bom senso se começarem a discutir — a opportunidade de o salvar?

A Carta contraria ou não as tendencias do espirito moderno, e a opinião? Sim ou não? Só isto sto se pode debater. Mas confessar publicamente que sim, e votar que não — é o mesmo que declarar:

— Nós entendemos que o País sofre com esta constituição, mas desejamos que ele continue a sofrer!

Ninguém dá crédito, porém, às vossas declamações, senhores! Vós o que não quereis é nenhuma reforma da Carta! O que tentais evitar é que intervenha na vossa política, a força da opinião popular! E sabeis porquê? Porque se a democracia, mesmo sob a forma monárquica, tivesse o seu advento — as vossas doces e rendosas sinecuras ficariam estateladas no chão! E vós quereis ouvir Bellini em S. Carlos, e tomar sorvetes no Verão com sossego! Eis aí!

Ah! vós dizeis que amais o progresso. Amais o progresso que vos inventa cadeiras mais cómodas; o progresso que vos monta operetas de Offenbach para acompanhar alegremente a digestão do jantar; o progresso que descobre melhores limas para cortardes os calos! Esse progresso decerto o amais! Mas o que não amais é o pro-gresso político, porque esse traria uma ordem de coisas que extinguiria os vossos ordenados, levantaria as vossas décimas sonegadas, transtornaria as vossas posições; — isto é, este progresso tirar-vos-ia os meios de poderdes gozar o outro. E aí está o que vós não quereis, amáveis bandidos!

Vinde no entanto para diante dos leitores das Farpas, com o extracto das vossas cómicas opiniões colado às costas. E já que não auxiliais o bem, ajudai a gargalhada!

O Sr. Barjona começou por dizer que o projecto da reforma lhe parecia indefinido e vago. Ora o projecto marcava muito explicitamente os títulos 3, 4, 5, 6 e 7. Pode chamar-se-lhe largo — mas indefinido... Santo Deus! se S. Exª chama à designação explícita de 5 capítulos uma coisa vaga — o que chamará então às nuvens do poente?

Chamar-lhes-á soma de 5 parcelas?

E acrescenta S. Exª que não é daqueles que Liga pouca importância às constituições políticas. Ainda bem! Mas que estranha revelação! Há pois políticos em

Portugal (e só em Portugal se é político), que não dêem importância às constituições políticas? O meu criado não dá com efeito muita atenção a essa espécie, mas porque dá todos os seus cuidados a escovar o meu fato. (E ainda assim não gosta do Sr. Carlos

Bento, mas é uma questão puramente pessoal). Que existam porém sujeitos que tendo profissão de ser só políticos (oh farsa!) não dêem atenção às constituições políticas — estranho parece, porque a verdade é que esses indivíduos não estão encarregados, como o Miguel, de escovar o meu fato.

A câmara conservadora defende-se! rejeita por 51 votos contra 23 a reforma da

Carta! Mas como foram estranhas as declarações de alguns dos 51 conservadores!

Porque (quem jamais o diria?) eles só votaram contra a reforma da Carta — por entenderem que a Carta deve ser reformada.

O Sr. Silveira da Mota é mais estranho ainda! Examina, com grande critério, todas as reformas que o País precisa — e termina por dizer que em vista daquela dolorosa ladainha, o País não precisa nenhuma. O que se traduz deste modo trágico: isto está tão arruinado que já agora deixá-lo ficar assim!

O Sr. Barros e Cunha declara que todo o seu sentimento (êxtase, melancolia, doçura, amor, etc.) são pela reforma da Carta: mas que a frieza da sua cabeça não lhe permite admitir essa reforma. Como homem frio, quando raciocina, o Sr. Barros e

Cunha é conservador: mas como homem de sentimento, quando cisma ao luar, quando segue o gemer da guitarra, quando escuta o rouxinol — ai! como ele então deseja a reforma da Carta!

O Sr. Adriano Machado não quer aquele projecto da reforma da Carta — porque pretende ele mesmo apresentar um. Isto entende-se. É um homem que tem ambições e a sede de um nome! Em lugar da Reforma Mendes, aspira a que os jornais da província celebrem no futuro a Reforma Adriano!

O Sr. Costa e Silva entende que a Carta é liberal e não precisa reformas; e, a tê-las, só em algum dos seus artigos, não muitos. Para este senhor a questão é de quantidade. Aí 5 ou 6 contentam-no: se fossem 3 e meio, tinha cãibras de prazer! Mas sobretudo o que ele apetece — é resolver a questão financeira! E espera que ela seja resolvida! Doce ingenuidade! Todo o mundo estava admirado de tanta inocência infantil; e perguntava-se com cuidado onde teria o Sr. Costa e Silva deixado o seu bibe!

O Sr. Peixoto (?),depois de se ter visto singularmente enredado em grandes frases, conseguiu desentalar-se e dizer, claramente, que antes de tudo a reforma urgente consistiria em escrever bons livros! Que não basta que haja escolas! que são sobretudo indispensáveis bons livros! Faz isto desconfiar que o Sr. Peixoto supõe que o único livro que se tem escrito, depois do Génesis, é o das Proezas de Rocambole! Mas o Sr. Peixoto pareceu sobretudo grande quando declarou que o povo não tem direito a mais liberdade! O Sr. Peixoto, que não é neto do conde Chambord, nem possui na África plantações de café, estava a fingir para a galeria que era da casa de França e grande senhor de engenhos! Pobre moço! E quando ele jurou que a verdadeira reforma, que incumbia ao parlamento, era dar ao povo livros que lhe ensinassem a natureza do seu

País e a sua própria índole? Muita gente compreendeu que esta frase difícil significava que a câmara, antes da questão da fazenda, da administração, etc., se devia ocupar — em escrever compêndios de geografia e tratados de moral.

E terminou assim: «Estas reformas reclamam todas as nossas forças e todo o nosso tempo; não fatiguemos aquelas, e não percamos este!» Abismemo-nos na contemplação deste período imortal, que, à parte a sua construção cómica — significa:

«Não nos levantemos tarde e não comamos coisas que nos façam mal ao estômago». Se acrescentarmos a isto os banhos do mar, há todo o motivo para supor que o País está salvo!

O Sr. Pinheiro Chagas vota contra a reforma da Carta, porque é pouco experiente.

Este moço justifica o seu voto — mostrando a sua pouca barba!

O Sr. Franco Frazão declara que a reforma da Carta não deve ser admitida à discussão, porque está muito calor! Este homem é grande! Este homem há-de ir longe — em havendo frio! Deixem vir Janeiro, e o País verá como o Sr. Franco reforma e organiza. Por ora, não. É este um grande princípio que passará para os repertórios, assim fixado: Janeiro, frio, geada; planta chicória e reforma a Carta!

Tal foi esta sessão, em que notáveis opiniões viram a luz do dia — e a luz do dia viu notáveis opiniões!

XXII

Agosto 1871.

O Sr. Barros e Cunha há dias tinha calor, e não se pôs em mangas de camisa! Via-se bem antes de ontem que o Sr. Arrobas estava apertado no seu colete, e no entanto não se desabotoou! Estranhas abstenções! Porque se coíbem, santo Deus? Porque se impõem a inexplicável privação de não beberem cerveja na sala? Que significa esta falsa compreensão das regalias constitucionais?

Porque não tiram, para maior comodidade de suas pessoas, a consequência lógica do seu procedimento? Se se desprenderam de todo o respeito, porque não se desembaraçam das suas gravatas? Se se atribuíram o direito de dizer injúrias, porque não se dão o direito de trazer chinelas? P orque conservam uma certa compostura de toilette — se têm desabotoado tanto a dignidade? Vamos, meus belos cavalheiros da injúria franca! Um último passo! Já aniquilaram o decoro, ponham de lado a polidez.

Nem mesmo se prendam com o asseio! Tirem os botins, e atirem por cima das carteiras,

à face do País, essas peúgas de alvura duvidosa! Desapertem esses coletes, e que a

Pátria veja nas pregas das camisas o suor dos seus eleitos! Venha cerveja! Saltem as primeiras rolhas! Caiam as últimas injúrias! Ferva a intriga e espumem os bocks! Ao tilintar dos copos misture-se o embate dos insultos! — É falso, mente! Mais cerveja! Isso

é uma bestialidade, fora! Cigarros! Rompam as disputas de café em atitudes de taberna! Ninguém se coíba! Que o fumo do tabaco faça uma nuvem às votações — e as nódoas de vinho um comentário aos projectos de lei! E praguejem, e assobiem, e escarrem! E viva a troça! Hip! hip! hip! Hurra! Salta um decilitro! Fora, patife! E lari-lo- lé, lo-lé! Para o pagode! Oh! legisladores! Oh! homens de Estado! Oh! feira das

Amoreiras!

Pois temos nós obrigação de respeitar a câmara, quando ela se não respeita? Pois ela vive nas assuadas indecorosas — e há-de exigir que nos curvemos como se ela vivesse nas ideias elevadas? Pois aquela senhora, que ali mora defronte, poderá estranhar que eu a repila brutalmente, em lugar de a saudar delicadamente — se em vez de passar na discreta compostura do pudor, ela me vier fazer esgares com a cuia à banda?

Porque vos havemos de respeitar, dizei? Pelo saber que não tendes? Pela dignidade que renegastes? Lêem-se os extractos de todas as câmaras do mundo, e em todas há seriedade e discussão inteligente; em todas se trabalha, se pensa, se organiza, se legisla. Entre nós vemos, durante um mês, arrastar-se uma discussão sobre perso-nalidades de regedores; e o que se debate é se se fez ou se não fez a estrada da Covilhã, e se o Governo comprou ou não comprou exemplares de um Elogio do Sr. Ávila! E todas as questões úteis e altas desprezadas, e uma perpétua ventania de insultos trocados, e o abandono de toda a ideia, o ódio de todo o trabalho, o esquecimento de toda a decência! E no entanto a Espanha mede, polegada por polegada, a porção da nossa liberdade que se vai enterrando no lodo!... Sois tão criminosos que nos fazeis perder o riso. E no entanto ele é a nossa vingança! E é indispensável que se mantenha sempre pronto, amargo, cruel, para que em nome da consciência ofendida vos vamos

A câmara dos deputados está tendo realmente uma compreensão muito estreita dos seus deveres parlamentares. Nota-se com espanto que os senhores deputados, ao entrar, não descalçam as suas botas! Ninguém explica esta reserva. expondo, querendo Deus, trémulos e grotescos, ao escárnio da multidão.

XXIII

Agosto 1871.

Não queremos que acusem as Farpas de parciais! Não se dirá que foi a nossa pena, exaltada pela fantasia e pela ironia, que desenhou os contornos de uma sessão memorável na Câmara! Tomaremos a exacta narração que o Sr. Melício, correspondente, deputado, homem noticioso e linfático, dá ao Comércio do Porto, excelente folha lúgubre!

O Sr. Barjona falava quando o motim rebentou. As provocações (diz o Sr.

Melício) eram acompanhadas de murros sobre as carteiras. Quadro esplêndido! Suas

Ex.as de cabelo em desalinho, gravata solta; as carteiras vergando, e, tanto quanto lhes permitia a sua qualidade de madeira, tomando biocos suplicantes; e Suas Ex.as , atirando-lhes murros, encontrões, pontapés, cachações, palmadas, estouros, todas as variedades sonoras de uma argume ntação eloquente! Isto já é grande! Isto já é prodigiosamente grande!

Mas maior é o último detalhe do motim, contado na correspondência do Sr.

Melício. Diz o Sr. Melício: as POSIÇÕES POUCO ACADÉMICAS E MENOS

PARLAMENTARES (???) de alguns srs. deputados levaram o sr. presidente a

MANDAR EVACUAR A GALERIA!

Pergunta a imaginação aterrada — que posições foram essas?

Não! isto é extremamente sério! Para que o presidente de uma Câmara mande evacuar as galerias com o motivo de elas não presenciarem as posições que os deputados estão tomando — é necessário que estes se tenham permitido atitudes verdadeiramente estranhas! Dado mesmo que alguns senhores se tivessem deitado ao comprido, ou tivessem dado cambalhotas — nada disto, ainda assim, justificaria a precaução pudica do Sr. António Aires. E note-se que as galerias resistiram. É que as magnetizava um espectáculo refinadamente excepcional...

Que se passou pois?

Teria o sr. visconde de Valmor rompido no excesso de se pôr de cócoras? Mas é tão natural isso — no parlamento!

Teria o Sr. Teles de Vasconcelos montado às cavaleiras no Sr. Barjona? Mas isso que importava — entre portugueses!

Teria o Sr. Jaime Moniz, para afirmar à Câmara e ao País a moderação dos seus princípios, mostrado o interior das suas flanelas? Teria o Sr. Arrobas cortado os seus calos? Teria o Sr. Barros e Cunha, num acesso de ira, botado a língua de fora? Não! Não podiam ser somente estes actos ligeiros!

Posições académicas e pouco parlamentares!

O Sr. António Aires, pondo o seu chapéu, não se cobriu apenas, vendou-se.

Enterrou o chapéu até o pescoço, e para que S. Exª se descobrisse à porta, diante do comandante da guarda, vieram médicos que lhe extraíram o chapéu a ferros.

Que seria?!

Santo Deus! Deus clemente, piedoso e justo!

É evidente que os srs. deputados — se puseram nus!

Não, senhores!