Uma Campanha Alegre/I/XXIX

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XXIX

Setembro 1871.

Um dia o Centro promotor das classes laboriosas sentiu o impeto todo moderno de sahir da sua ob- scuridade veneravel e da sua modestia tradicional. Appeteceu as palpitações do perigo. Appeteceu a popularidade do telegramma. Appeteceu a prosa descriptiva do sr. Melicio, correspondente.

Para isso perorou, gritou, tomou resoluções!... Em seguida esperou. O seu desejo, o seu capricho, o seu filé, era atrair sobre si um golpe de Estado. E depois as belas atitudes de protesto, e a impressão que ainda fazem os mártires em Vila Nova de

Cerveira e em Mogofores!...

Ora justamente o sr. ministro do Reino teve a imprudência de chamar à secretaria o vice-presidente do Centro, e amigavelmente, tomando ambos o seu rapé, trocaram algumas falas. O sr. ministro pedia que o Centro não continuasse em discussões, que nem estavam na permissão dos estatuto sua dignidade de corporação. Escutando estas admoestações o vice-presidente do Centro tremia de jubilo. Alli o tinha inteiro, real, presente, completo-o estremecido, o appetecido golpe d’estado! E apenas o sr. ministro termina, eis o sr. vice-presidente que corre a sala do Centro, e brada, como se se tratasse de um codilho:

— Meus senhores! levamol-o!

— O golpe de estado? interroga o Centro ávido, esgaseando os olhos.

— O golpe de estado!


Então, tomando subitamente a sua carranca de solemnidade, o Centro deliberou. E, para fazer alguma cousa como a destruição da Bastilha, (porque é necessario conservar a tradição jacobina) o Centro subiu a um banco com um martello, despregou um retrato da parede da sala, espanejou-lhe o pó, pôl-o ao canto de um armario, e, serenado por esta decapitação moral, sacudiu as mãos, limpou os beiços, e de pé – jurou qualquer cousa!


Nós não sabemos, e ainda não se averiguou nitidamente que discussões agitavam o ar abafado da sala do Centro. Uns dizem que alli, a horas lobregas, se falava da internacional e das suas pompas, e se discutia a sanguinolenta questão do salario! Querem outros porém affirmar, com mais seguro criterio, que as discussões do Centro eram de ordem politica e intrigante, e que se esmiuçavam ministerios, camaras, reformistas e reforminhos, eleições, influencias, partidos, e outras especies torpes.

Estas duas informações alteram, completamente, o indefinido perfil da questão.

Se o Centro Promotor discutia nas suas reuniões a política que intriga e que grunhe em S. Bento, então a advertência do sr. ministro adquire uma alta feição de sensatez e de direito: não só está na legalidade, porque fez cumprir um estatuto — mas na verdade, porque afastou os que trabalham na penumbra dos que enredam.

Sim, o sr. ministro tem razão, amigos operários do Centro! O dever da vossa associação não é discutir combinações ministeriais ou personalidades estéreis. Que importa ao vosso bem-estar, às boas cores de vossos filhos e à substância do vosso caldo, que a farda pública esteja nas costas grossas do Sr. Ávila ou nas magras costelas do Sr. Braamcamp? Quereis dar à política a vossa colaboração? Vós? Tão desmoralizados estais que desejeis abandonar a vossa dignidade de trabalhadores, para vos virdes curvar entre a sabuja humilhação dos políticos? Vós, os produtores por excelência — porque só trabalhais, que tendes de comum com os improdutivos por excelência — porque só intrigam? Quereis trocar a altiva fadiga da oficina, pela

Um dia o Centro promotor das classes laboriosas sentiu o ímpeto, todo moderno, de sair da sua obscuridade venerável e da sua modéstia tradicional. Apeteceu as palpitações do perigo. Apeteceu a popularidade do telegrama. Apeteceu a prosa descritiva do Sr. Melício, correspondente. ociosidade mendicante do parlamento? Quereis trocar as vossas livres ferramentas, pela pena de pato das secretarias? Não é outro o vosso dever, outro o destino do vosso pensamento? Não tendes, para vos absorver, as altas questões de salários, de trabalho, de produção, de escola, de instrumentos, de associação? Elas erguem-se, as questões sociais, as vossas, de todos os pontos do horizonte, correndo, correndo à desfilada sobre o velho mundo que apodrece! Voltai aos vossos interesses e voltai às vossas casas!

Deixai o senhor A ser um político, ó riso! e o senhor B um homem de Estado, ó troça!

Ah! mas se porventura o Centro Promotor tratava apenas, nas suas sessões, a questão social e operária — o salário, o trabalho, a associação, a coalizão, a greve — então, bom Deus, a advertência do sr. ministro enche-nos de perturbação!

Parece realmente que se não deve estranhar que uma associação criada para promover o bem das classes laboriosas — trate as questões que mais vitalmente interessam as ditas classes laboriosas. Aqui à puridade, entre gentlemen, confessemos que imensa seria a nossa admiração — se operários reunidos, em lugar de falar do seu salário, discutissem a melhor maneira de servir o champanhe! E qualquer de nós ficaria pálido se visse, no Centro, um operário, para salvar os seus interesses de operário, levantar-se e dizer:

— «Pedi a palavra sobre a questão social: a minha opinião é esta:

La donna é mobile

Qual pluma al vento..

Decerto, seria interessante e proveitoso que o Centro Promotor se ocupasse em averiguar e experimentar o meio mais profícuo de pernear o cancã — porque convém que cada um saiba a maneira de se portar no meio das sociedades cultas. Mas também nos não pareceria inteiramente inútil que, visto acharem-se ali reunidos, esses operários, depois de terem dado uma parte da noite às questões sérias, (como, por exemplo, a maneira mais meiga de interpretar o final da Lúcia) dedicassem também uns minutos, como por demais, por prazer, para repousar o espírito, a fútil e folgazã questão do salário!

Entenda-se! as Farpas não querem de modo algum sustentar que as associações operárias sejam para discutir as questões operárias! Não! O operário, nas suas reuniões, deve exercitar-se em recitar Lamartine. Isto está estabelecido na prática de todas as nações e nos princípios de toda a economia... Mas convém que, de vez em quando, (e sem que isso perturbe os interesses de ordem literária, lírica, elegante e romântica, que lhes estão confiados) os operários, coitados, se entretenham a arranjar o melhor meio de não morrerem inteiramente de fome!

O Centro julgou-se tiranizado, e protestou. Como? Fazendo um arranjo na sua sala. O retrato do Sr. A. R. Sampaio, que estava na parede — está agora num armário. Oh grandes homens do Centro! Vós quisestes fazer uma alta justiça social. E o que fizestes?

Uma alteração na mobília! Pretendíeis significar por esse facto que éreis os homens da dignidade austera, e todo o mundo vê que sois simplesmente os admiradores das paredes lisas! Dizei cá! A advertência do Sr. Sampaio. ministro, foi ou não opressiva do vosso direito? Não? Então que homens sois vós que gratuitamente, caprichosamente, dais a desautorização a quem vos deu a associação? Foi opressiva? Então que homens sois vós que, por todo o desafogo do vosso direito violado, do vosso pensamento reprimido — não tendes mais iniciativa do que a de um criado tonto! A vossa justiça indigna-se — despregando pregos! Isto leva-nos a acreditar que o vosso carácter se afirma — jogando o pião! Criançolas! pequerruchos! grandes homens do Centro! oh traquinas!

Ah! a vossa maneira de protestar é cómoda para os homens — mas terrível para a mobília!

— «Está suspensa a sessão do Centro!» — declara um dia o Governo.

— Está? — grita o Centro. — Volte-se a mesa de pernas para o ar!

— «O Centro está dissolvido» — proclama noutro dia o Governo.

— Está? Rasguem-se as bambinelas!

E são terríveis! Que culpa tendes vós, mesa suja de tinta, portadas empenadas da janela, fechaduras, boas paredes de papel francês?

Ai! se o Centro se resolvesse um dia a conspirar deveras e o Governo a reprimir deveras — tremei, tremei, tremei, ó capachos da entrada!

XXX

Setembro 1871.

Os jornais deste mês travaram uma questão singular. Acusava-se este facto: a Srª

D. Eugénia de Montijo, condessa de Teba, ex-imperatriz dos Franceses (por um crime de seu marido) atravessara Lisboa para ir ver a Espanha os antigos paraísos da sua antiga mocidade; e o Governo expedira à Alfândega uma portaria galante, para que não fossem revistadas as bagagens de S. Exª! A isto respondiam algumas gazetas negando esta portaria — mas lembrando o utra pela qual são isentas das indiscrições fiscais as bagagens em trânsito, e afirmando que os baús ex-imperiais, com um desdém censurável pelas glórias de Lisboa, tinham passado rapidamente, sem curiosidade, da

Alfândega para a estação de Santa Apolónia. Os periódicos acusadores, porém, declaravam que conheciam de antiga data a portaria de excepção para as bagagens em trânsito — mas que tal não era o caso da loura e altiva inquilina das Tulherias. Por este tempo, porém, a índia penetrou nos artigos graves, e a questão das malas perdeu-se na esbatida penumbra das locais folgazãs. Nunca se averiguou se Madama Bonaparte tinha sido privilegiada delicadamente com uma portaria quase amorosa — ou se aproveitara as disposições de uma portaria qualquer, feita para mim, e para ti.

Se o privilégio se deu — atenda-se bem! — o privilégio não nos escandaliza. E, todavia, temos visto bastantes vezes, estendidas nos balcões da Alfândega, numa desordem impiedosa, toda a traparia obscura que habita as nossas malas! Mas como todo o privilégio pressupõe um mérito, nós queremos indagar qual é o mérito da Srª condessa de Teba: e procuraremos desde logo alcançá-lo para nós mesmos e para todos os nossos concidadãos — pondo assim a nossa roupa branca, e a roupa branca daqueles que amamos, ao abrigo das instituições!

Ora da Srª D. Eugénia de Montijo achamos que ela é casada com o assassino de 2 de Dezembro, com o deportador para Caiena e para Lambessa, com o destruidor da riqueza da França, com o comedor das substituições militares, com o esmagador de toda a liberdade, com o escravizador de todo o pensamento, com o bandido que, pelas estradas de Sedan, sacudia a cinza do seu cigarrinho histórico sobre o peito dilacerado da Pátria. Tudo isto destinge sobre a Srª condessa, tudo isto impõe à Srª condessa uma cumplicidade moral... Oh! sim, meus senhores, bem sabemos! «É uma infeliz, é uma dama, etc., etc.». Trégua às frases! E vamos direitos aos factos como uma bala justiceira. A pobre Catarina de Médicis era também uma infeliz, e era também uma dama! Lucrécia Bórgia gozava estas qualidades franzinas. M.me de Brinvilliers, feroz devota, não se julgava também feliz, e não era um homem!

A Srª condessa de Teba não se apresenta decerto tão especialmente nociva como estas três espécies: — mas no seu tempo deportavam-se para Caiena, para Lambessa e para a ilha do Fogo, homens cujo único crime era terem servido a república de 48, que

Luís Bonaparte tinha também servido! E esses homens eram mandados aos milhares no porão dos navios, esfomeados, vergastados, cobertos de vérmina, a trabalhar nos presídios! E as famílias ficavam dispersas, os filhos na miséria ou na casa de correcção, as viúvas nas lágrimas perpétuas. E que fazia, no entanto, a Srª condessa de Teba? A Srª condessa de Teba, esposa e mãe, dançava nas salas das Tulherias, entre o esvoaçar dos tules, aos compassos da rabeca de Strauss! Se essa devota Bénoiton, leitora simultânea dos manuscritos eróticos de Merimée e das efusões místicas de M.me Swetchine, crê em

Deus, nunca terá bastante vida para consumir em bastante penitência!

Tais são os méritos que encontramos na senhora D. Eugénia Montijo. Se foi a eles que S. Exª deveu a delicada vantagem de lhe não serem revistadas as suas bagagens, nada temos que estranhar. Somente pedimos que se declare explicitamente por uma portaria: — «que alguns crimes cometidos no estrangeiro isentam a bagagem de revista, quando se entra no reino!»

Assim, estamos todos prevenidos, e não custa nada, quando se chega à barra, matar dois ou três grumetes. Com este documento, o sujeito tem a alta vantagem de não ver amarrotada a goma das suas camisas. Antes de desembarcar, todo aquele que desejar ordem na sua roupa, aproxima-se de um marinheiro ou de outro passageiro, e murmura-lhe com doçura:

— O cavalheiro tenha paciência, mas eu não queria que na Alfândega me desarranjassem as minhas ceroulas, e há-de dar portanto licença que eu lhe crave esta navalha no fígado!

Não havendo esta precaução, é triste realmente que um homem, que não goze a vantagem de ter fuzilado o seu semelhante no boulevard ou de o ter mandado morrer de febres para Caiena, chegue à Alfândega, e por falta de três ou quatro crimes, veja o pudor das suas peúgas exposto à indiscrição pública! XXXI

Setembro 1871.

Os jornaes de Madrid contaram que S. A. R o principe Humberto todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reunem os italianos. Esta familiaridade, inteiramente contemporanea da Internacional, enchia de um jubilo espumante a imprensa monarchica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto — e esperava-se o principe Humberto, se não como um principe, ao menos como um consumidor! S. A. porém chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguem, e se tomou café não teve a inspiração de o tomar no Martinho! (Tanto a etiqueta cohibe os instinctos mais naturaes!)

A população de Lisboa, ficou desconfiada, sem saber se a abstenção de S. A. significava economia, se desdém. No primeiro caso queria propô-lo deputado reformista por Vouzela ou Palhares, ficando assim definitivamente acomodada na pení