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Uma Campanha Alegre/II/XVI

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XVI

Fevereiro 1872.

É verdade que os jornais parisienses contaram que no banquete que o Sr. Adolfo

Thiers, (presidente certo de uma república incerta) deu ao Imperador do Brasil — Sua

Majestade a cada momento cortava a conversação literária e céptica que faiscava em redor da mesa, para gritar com a sua imperial boca cheia: «que precioso peixe! que sublime galinhola!»

No entanto, esta circunstância de estupefacta gula, narrada com ironia pelos jornais de Paris — não oferece autenticidade: é um reclamo, uma adulação política à cozinha do dito Adolfo! As gazetas republicanas como não encontram nada a exa ltar nas ideias políticas de Adolfo — querem ao menos glorificar-lhe as iniciativas culinárias.

E já que não podem dizer: «que organização ele dá à França!» gritam: «que jantares ele dá aos Reis!» A verdade incontestável é que Sua Majestade o Imperador é um sóbrio.

Há, porém, um só petisco, acerca do qual Sua Majestade revela uma gula excepcional. Sua Majestade desdenha demagogicamente, desde a trufa até ao

Johannisberg, todos os delicados mimos da fornalha ou da adega. Uma só coisa neste planeta lhe aguça a língua. Para uma só coisa tem uma sofreguidão incansável e sorvedoura: — para o idioma hebraico!

Sua Majestade é um guloso de hebraico. No hebraico — rapa os pratos e lambe os dedos. E, por uma inexplicável imprevidência, Sua Majestade não traz consigo nem um homem de raça hebreia, nem sequer um cristão hebraizante, nem mesmo um professor de hebraico! De tal sorte que nos longos dias preguiçosos de paquete, nas horas fastidiosas de vagão — Sua Majestade passa cruéis privações de hebraico. Por isso chega sempre esfaimado de hebraico: e mal entra as portas festivas dos hotéis, ainda com a mala na mão, rompe logo a pedir nos corredores, com ganidos de gula, quase com assomos de cólera — o seu hebraico!

Quando Sua Majestade Imperial chegou a Londres, o Príncipe de Gales enviou-lhe um dos seus ajudantes de campo — um daqueles belos capitães de Horse-gards, que põem à noite um jasmim do Cabo na jaqueta escarlate e oiro. Este dândi marcial perguntou a Sua Majestade o que desejava, naquele momento em que punha o seu pé de além-mar nas plagas verdes de Álbion. Esperavam todos que Sua Majestade pedisse chá

— ou um banho.

Sua Majestade respondeu avidamente: — «hebraico!»

Os oficiais olharam-se consternados. E o Imperador, com os lábios secos, as mãos nervosas, o apetite enristado, repetia famintamente: — «hebraico! só hebraico!» — Então, por um rasgo genial, os ajudantes do Príncipe de Gales levaram, a toda a brida fogosa de um landau, o Imperador do Brasil — à Sinagoga! Sua Majestade precipitou-se entre os hebreus. Os sábios rabis, que são doutores da lei, cercaram o homem augusto, e, vorazmente, a grandes bocados, com guinchos de gozo, o Imperador do Brasil consumiu incalculáveis porções de hebraico. Depois de se fartar, olhou em redor — e pediu mais!

Certos donos de hotéis, em cidades da Europa, ficavam apavorados e confusos quando Sua Majestade assomava aos limiares das portas, pedindo hebraico a fortes brados. Alguns arriscavam timidamente:

— Se Vossa Majestade quisesse antes um caldo...

Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vasto império. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da corte nos paços da Tijuca.

— Hebraico!...

— Se Vossa Majestade quisesse antes um monumento...

— Hebraico!

Foi assim em Lisboa, no Lazareto. Sua Majestade, já ao descer as escadas do paquete, vinha resmungando: «salta o meu hebraicozinho!» E daí a minutos expedia gritos famintos. Que consternação! Tudo estava preparado: a canja, a orelheira, a broa, o capilé, o caldo de unto, todos os artifícios do génio português. Mas ninguém se lembrara do hebraico! E Sua Majestade estrebuchava!

Partiram então exploradores em todas as direcções — e por fim voltaram trazendo, estonteado e surpreendido, o Sr. Salomão Saragga, que lê e fala o hebraico.

Sua Majestade esperava ansiosamente, debruçado na janela. Não houve cumprimentos, nem se pôs toalha. Serviram-lhe o Sr. Saragga, assim mesmo — cru! Sua

Majestade deixou-lhe uns restos!