Uma Campanha Alegre/II/XXXIII

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XXXIII

Outubro 1872.

Quando, em Paris, Mr. Dubourg foi ultimamente condenado em cinco anos de prisão, por ter assassinado sua mulher às facadas — os srs. jornalistas, arrastando essa desgraça através da sua prosa, envolveram-se, por cima da memória da pobre senhora nervosa e infeliz, numa discussão vibrante acerca do amor, do adultério, do casamento e da morte. Mr. d’Ideville, um bom rapaz, que foi secretário de legação em Itália na missão de Tour d’Auvergne, escrevendo sobre este caso impertinente, teve a ingenuidade de pedir ao Sr. Alexandre Dumas filho — a sua opinião e a sua prosa.

Provocar a pena indiscreta e aparada em bisturi do Sr. Dumas, é acordar o escândalo que dorme. Sobretudo em questões femininas: porque aí o Sr. Dumas supõe-se uma espécie de Santo Padre do amor, julga possuir a plena compreensão da mulher, saber desde as leis até às pantoufles toda a fisiologia do casamento, e ser no tempo presente um S. Tomás de alcova. De sorte que sempre que se trata de um caso sentimental, o Sr. Dumas filho entorna sobre o boulevard, como um barril de lixo, o seu depósito de observações: porque o Sr. Dumas é observador como outros são trapeiros. E de noite, com uma lanterna e um gancho, cosido com os muros conjugais, apanhando e fisgando em segredo tudo o que cai da alcova, cravos, panos revolvidos, cuias velhas, farrapos reveladores — que ele vai coligindo a sua ciência. Sabe pelo que esgaravata no lixo. E doutor — em roupa suja.

Foi assim que o Sr. d’Ideville provocou L’homme femme. L’homme femme tornou-se então um rebate através das alcovas: jornalistas, lorettes, publicistas retirados, tudo correu pelo faro do escândalo. Ganiu-se um grande charivari filosófico — com panfletos, com Livros, com artigos e com vaudevilles. E o amor, o casamento, a virgindade, a maternidade, o pudor, o adultério, a mulher, saias e consciências, tudo foi sacudido, revolvido, remexido, voltado ao sol, e exposto à vil publicidade como um guarda-roupa na tristeza de um leilão.

Ora a conclusão da questão era estranha: tratavase de decidir, a sangue-frio, com argumentos e boa gramática — se os maridos deviam matar suas mulheres. O Sr. Dumas tinha dito com o charuto na boca, folheando a Bíblia — mata-a! Outros, fechando a navalha no bolso, diziam generosamente: não a mates. Alguns vaudevillistas ensinavam entre um bock e uma pilhéria — vai-a matando sempre! E outros acrescentavam, expondo que era necessário estudar mais a questão e consultar dicionários: por ora não a mates!

E no entanto, de faca na mão, os maridos esperam.

Antes de tudo, não os escandaliza esta questão? Laplace, o antigo, o astrónomo, era um homem sereno e recolhido, firme como a ciência e tranquilo como a verdade.

Uma só coisa o fazia irritar e sacudir como uma juba o seu comprido cabelo à

Convenção: era ouvir um peralvilho da mocidade dourada, algum Incrível dos que tinham feito fechar o clube dos jacobinos e traziam a reacção entalada na alta gola do seu fraque à Barrás — falar de astronomia. Então o sereno Laplace rugia. Ora se alguma coisa deve irritar e fazer rugir, é ver os Srs. Dumas, d’Ideville, e outros galantes, falar e decidir, como Evangelistas do macadame, sobre o casamento, esse ângulo tão perigoso da dificuldade social. Não a resolveu, esta questão esmagadora, a Bíblia; não a resolveu,

Uma questão singular tem, há tempos, sobressaltado legitimamente os maridos, as pessoas sensíveis e os fabricantes de armas proibidas. Referimo-nos, como compreendem, à questão do Adultério. com toda a sua grandeza, o velho espírito romano: perturbaram-na e lançaram-na em confusão a teologia e o cristianismo: apenas a revolução, pela ciência de Proudhon, começa a dar-lhe uma solução racional e positiva; — no entanto o Sr. Dumas filho, autor da Lorette e profeta do Ginásio, estende-se molemente à sombra dos castanheiros, ouvindo cantar os pássaros, e faz-nos o obséquio, num momento de bonomia, de resolver no direito e na moral esta dificuldade tenebrosa. Como? — com uma navalha de seis tostões.

Que, devemos confessá-lo, nós dois, nós ambos, julgando inoportuna a estação de banhos para esta leitura, que pede o recolhimento do Inverno e o silêncio do fogão, não lemos ainda nem L’homme femme do Sr. Dumas, nem nenhum dos folhetos que rolaram como um enxurro, através da opinião parisiense.

O que sabemos apenas é que todas estas prosas incitam a mulher, em períodos comoventes, à prática da virtude! Ora observa-se que, se uma mulher tem um amante, poderá suceder que ela leia, pela manhã ao almoço, um artigo magnífico e pomposo com interjeições, lágrimas e flores:

Sobre o adultério e as suas aflitas misérias;

Sobre a fidelidade e os seus claros esplendores.

Mas nem por isso deixará, em vindo a noite, de ir pé ante pé, com todos os ardores do susto e do mimo amoroso, abrir a porta do jardim à impaciência de Artur. E isto porquê?... Porque a retórica não anula o temperamento.

Porque um periódico bem escrito não abafa uma paixão bem movida;

Porque os adjectivos não dirigem os nervos;

E porque, á senhores prosadores, a verdade é esta: entre um folhetim, que condena o adultério, impresso a tinta preta num papel amarelado, e um amante vivo, sensível, forte e amado — nenhuma mulher deixará o amante, que é a realidade, para seguir o folhetim, que é a linguagem;

E não despedirá o homem que lhe dá a sensação — em atenção ao Sr. Bezerra, localista do Rei e Ordem, que lhe dá prosa.

E por isso que estas declamações soluçantes a que se entregam, com os braços erguidos, o jornal e o drama — são pelo menos inúteis. Não evitam o pecado. E também não inspiram o ideal — porque não há felizmente senhoras tão estranhamente desgraçadas — que vão aprender a virtude nas gazetas ou nas rampas dos teatros.

E depois, esta questão do adultério, é equívoca. Porque, ou é tratada num folheto pelo sr. fulano, bom rapaz e empregado público — e então torna-se tão monótona, tão banal, tão recalcada, que nem Robinson Crusoé na sua ilha deserta, com todo o seu tédio, e sendo esse folheto o único folheto e sendo essa distracção a única distracção — a quereria: ou então é tratada por espíritos subtis, analíticos, originais como Dumas, e sucede que, com os detalhes, as anedotas, os quadros, as revelações, o estudo, torna-se uma divulgação de alcova e uma pimenta amorosa! De modo que quando não é uma trivialidade estéril, é uma provocação irritante!

Ou o adultério é um facto fatal da natureza eterna, ou é um facto fatal da moral moderna. No primeiro caso, se ele é a antiga e primitiva lei da promiscuidade animal, que apesar do apuramento nervoso da humanidade, da civilização, do direito, da moral, permanece e impele pela sua fatalidade fisiológica — seria necessário, para o extinguir, mudar a própria constituição natural ou esperar mais vinte séculos.

No segundo, se ele provém da corrupção do matrimónio e da sua decadência e descrédito como instituição social, se nasce da extinção da fé conjugal nos esposos, se deriva da perversão lançada na dignidade matrimonial pelo idealismo amoroso, se tem a sua origem na moral, então é necessário fazer uma revolução nos costumes tão profunda como foi o cristianismo, que nos dê uma outra religião, outra moral, outra família e outro direito.

Ora qualquer destas coisas, tanto uma alteração de constituição fisiológica, como uma transformação na ordem social, acham-se os Srs. Dumas filhos — com forças de a empreender, no quintal, fumando brevas e cosendo prosa?

Mas mais absurdo que tudo é a palavra final da questão: o mata-a ou não a mates! a decisão do destino que o marido desvalido deve dar à esposa revoltada! Para todo o homem, o mais linfático ou o mais endurecido, Sgnarello ou Marneffe, o momento em que sabe o seu desastre é fatalmente um momento de excitação, de ofensa, de vergonha, de despeito, e ele não pode subtrair-se a palpitar com uma pulsação de febre. Ora aconselhar um procedimento fixo para este momento alucinado, é querer impor ao que há de mais desvairado — a paixão, o que há de mais raciocinado — a regra. E dizer de antemão ao pulso — tu baterás deste modo, e aconselhar previamente à cólera — tu rugirás desta forma. Quem vai estudar de antemão ao espelho as atitudes que deve tomar na dor? quem decora no seu quarto a palavra que deve dizer na cólera? A febre não calcula — improvisa.

Depende sobretudo dos temperamentos. Segundo se é sanguíneo, linfático, bilioso, melodramático, bonacheirão ou egoísta — assim se faz sangue, se faz sermão ou se faz negócio. Basta ver quantas soluções diferentes a verdade e a arte têm achado para este momento agudo, para se perceber a inutilidade pedagógica e retórica de marcar de antemão um procedimento. Otelo, que é negro, sanguíneo, batalhador, bárbaro e justo, toma o travesseiro, e mata por asfixia. O general de Campvallon que é gotoso, cheio de achaques, encosta-se, ao surpreender sua mulher, à ombreira da porta e morre de apoplexia. Um negociante holandês fleumático, prático e frio, toma sua mulher pelo braço, põe-na à porta da rua com uma mala e uma nota do banco, aferrolha a porta e volta tranquilamente para o seu escritório. Um fidalgo de Burges, cheio de opiniões feudais, desfecha a carga de um revólver no peito de Artur. Um outro encontra sua mulher anediando uns cabelos de homem que não são os seus, vai ao seu quarto, toma a sua roupa branca e parte para sempre para o Egipto. Um outro, infelizmente bem conhecido, vai ao seu quarto, toma um revólver e parte para a Eternidade. Outro surpreende, fecha-se no quarto com a mulher e quando os criados, assombrados, imaginam que ele a matou, vêem-no sair risonho, trazendo-a pelo braço, rendido e mais amoroso. O general Pallavicini, seguindo a velha tradição dantesca da casa de Rimini, degola com a espada os dois sobre o sofá. Outro espera Artur no fundo da escada, e obriga-o a assinar uma letra. E um outro, tranquilo e risonho, diz durante dois anos a sua mulher, todos os dias de manhã, passeando com ela no jardim, a mesma palavra vil.

Tal temperamento, tal solução. Todos estes infelizes se desesperaram: — mas com a lógica do seu carácter — o bárbaro generoso mata, o civilizado infame faz assinar a letra. Mas a raiva é a mesma. E no entanto o Sr. Dumas entende que o procedimento colérico se pode ensinar como um passo de contradança, e sem querer saber dos temperamentos, dos caracteres, das condições, faz para a infinita diversidade dos desesperos — um catecismo uniforme.

E — riamos! — esse catecismo que conclui pela morte — quando quer o Sr. Dumas filho que os maridos, curiosos dessa matéria, o estudem e tomem apontamentos? Se o

Sr. Dumas faz um tratado e uma lei de morte, com argumentos e exemplos, é para que os maridos o leiam, aprendam a lei, se convençam, se apropriem daquela ideia e decorem aquele procedimento. Mas quando, em que momento preciso do seu casa-mento?

— Não pode ser logo que casem: qual é o marido bastante torpe para ir no dia seguinte ao do noivado, vendo sua mulher apenas saída da virgindade, noiva e pela

Graça quase sagrada, estudar muito tranquilamente no Sr. Dumas o que lhe deve fazer — quando ela for adúltera? — Não pode ser também no momento da revelação, porque seria estranho que um marido surpreendendo sua mulher e Artur — lhe dissesse:

— Srª esposa e sr. amante, eu vou para a minha biblioteca consultar os autores e amanhã lhes darei parte do destino que lhes reservo: tenham a bondade de me passar daí os documentos da infâmia e um dicionário!

Enquanto ao adultério, essência da questão, não queremos privar as curiosidades inteligentes de algumas pequenas notas que não resolvem, mas explicam.

A maior parte da gente imagina que para uma mulher esta ideia e mesmo esta palavra — ter um amante, significa muito simplesmente — ter um homem que amam.

De modo nenhum: só muito raras, as descendentes de Fedra, pensam no homem.

Para a generalidade das mulheres — ter um amante significa — ter uma quantidade de ocupações, de factos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefável. Ter um amante — não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres — escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto; fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando como uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o penteado: é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideais amorosos, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos! etc.

Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de- rosa, que a idealizam — são a sua grande atracção. E o que amam. O homem, amam-no pela quantidade de mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ele dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.

Por aqui se explica uma coisa que surpreendeu Taine. E foi que na sua última viagem a Inglaterra, contava-se então, nas crónicas íntimas, que em toda a vasta aristocracia inglesa que faz a season em Londres, havia apenas um adultério! E todavia que luxo, que idealismo, que vagares, que requintamentos de sensação, que excitações do chique! Taine explica isto por muito finas razões, subtis e profundas temperamento, publicidade, boas saúdes, rectidão de ideias, etc.: esqueceu-lhe uma razão, a mais inglesa. E que a lady romanesca, sensível e fria — o que pretende sobretudo e exclusivamente no amor, são as suas ocupações, é a sua melancolia. A inglesa, com a sua carnação saudável, as suas risadas francas, os seus cabelos espalhados e impertinentes, a sua higiene, as suas corridas a cavalo, a sua virilidade de pensamentos

— conserva todavia, sob o seu movimento excêntrico e resoluto, no fundo do seu peito, como a recolhida flor do segredo, uma ponta, uma semente de melancolia. Alguma coisa de vago, de saído de Ofélia, de ossianesco, de exalado da harpa de Erin, ficou no fundo daquelas naturezas femininas dos países louros. A inglesa não se pode dispensar de ter aquela melancolia de certas horas, azulada e terna — a que ela chama com certos requintes finos — ter o coração sentido. — De sorte que de mil senhoras da aristocracia inglesa, das que têm a mocidade e o espírito do sentimento, uma poderá ter um amante e os seus pecados — mas as outras restantes contentam-se em ter o coração sentido.

De tudo isto uma consequência lógica: — procurando dar uma ocupação ao espírito disponível da mulher, impedir que ela procure as ocupações do amor.

Hoje, justamente, faz-se o contrário.

Hoje a mulher é educada exclusivamente para o amor — ou para o casamento, como realização do amor. E claro que, como Dumas, falamos das classes ricas e improdutivas.

É fácil de ver. Que se lhe ensina desde o momento em que a pequenina mulher de

7 anos, nos bicos dos pés, diante do espelho, com a sua sainha tufada e o seu puff pueril, se enfarinha de pó de arroz, rindo com os seus brancos dentinhos de rato?

Educa-se-lhe primeiro o corpo para a sedução. Não pela ginástica — isso agora apenas começa vagamente, como uma imitação inglesa — mas pela toilette: ensina-se-lhe a vestir, estar, andar, sentar-se, encostar-se com todas as graças para sensibilizar, dominar as atenções, ser espectáculo, vencer o noivo. Ensina-se-lhe a arte sentimental e inútil de bordar flores e pássaros; o bordado é a mais perniciosa excitação da fantasia: sentada, imóvel, curvada, picando delicadamente a talagarça, o voo inquieto das imaginações e dos desejos palpita-lhe em roda, como um enxame de abelhas: e é isto o que perde as rosas, como diz um velho poeta ascético: é porque a rosa não pode fugir, andar, sacudir o enxame, que é ela sempre ferida no cálice.

Depois ensina-se-lhe a música, o piano, o canto, Bellini, Donizetti, todos os amorosos. A música clássica, os velhos minuetes, os motetes, as fugas, as árias simples

— eram uma serenidade para o espírito, um correr de água fresca. Os românticos são como uma chama impaciente. Prepara-se-lhe assim um meio de encantar, de sensibi-lizar, de, adormecer, e dá-se-lhe alguma coisa da habilidade das sereias. — Depois, o seu espírito, como é educado? Pelo romance, que lhe descreve o amor, pelo teatro que lho dialoga, pela ópera que lho suspira, pela opereta que lho assobia.

No mundo, nas soirées, ao gás dos bailes, na intimidade das mulheres, que interesses vai encontrar? os da política? os da ciência? os da arte? os da economia doméstica? os da guerra? Decerto que não: — os do amor.

Que lhe diz o luxo, por meio das sedas sonoras, das caxemiras, das pedrarias, da vitrina das lojas, das rendas loucas, dos saltos à Luís XV, da fofa penumbra dos cupés?

Amor.

Que ideia lhe dá a família, a maternidade? O encanto de um amor legítimo.

Que lhe ensina a mesma religião? o amor. Duvidam? — aqui estão os trechos de um livro de orações aprovado pelo sr. arcebispo de Ruão — traduzido por toda a parte:

«Actos de desejo. — Oh! vem, meu bem-amado, carne adorável, minhas delícias, meu amor, meu tudo, meu alento! Minha alma impaciente enlouquece por ti!

«Acto de amor. — Tenho pois enfim a felicidade de te possuir! Abrasa-me, queima-me, consome-me com o teu amor. Jesus é meu, o bem-amado é meu.»

Que lhes parece? Aprovado por Monsenhor de Ruão, o cardeal Bonnechose, príncipe da Igreja. E um catecismo francês, quase um catecismo universal. Trata-se do amor de Jesus — dirão: pois também seria excessivo que se tratasse de Artur! A Igreja não o faz expressamente — dirão ainda: quem o duvida? Nem um momento desconfiamos da austera intenção da Igreja. Mas é inocentemente e sem intenção, que as mães deixam as crianças ao pé do lume, e quantas vezes a casa arde!

Querem saber agora como falam e pensam as mulheres educadas neste elemento abrasado? Vejam a última peça de Octávio Feuillet, o casto, o pudico, o católico, o que escreve para as virgens aristocráticas e louras do faubourg Saint-Germain. Feuillet põe na boca de uma menina de 15 anos, educada num convento, açucena coberta de rendas,

Pomba, Arminho, Neve, estas palavras:

Adoro os rapazes para valsistas, mas para maridos não! — E na plateia velhos sargentos de cavalaria coram até às dragonas!

Bom Deus! Não somos caturras! Dizemos a verdade. De resto como não temos a responsabilidade da corrupção humana, também não fugimos para o deserto. Quem é que disse que o Inferno era um lugar bem interessante? Foi Brantôme. Pois era um sábio.

Nesta educação da mulher uma só coisa é profundamente boa — a valsa. E é justamente o que mais lhe regateia uma moralidade banal. A valsa é higiénica, moral, depurativa, educadora e positiva.

Um higienista célebre recomendava, a todas as mulheres de 14 anos, para cima duas horas de valsa por dia. Os movimentos rápidos, galopados, fortemente sacudidos, a transpiração igual, outras circunstâncias, tornam a valsa um exercício radicalmente salutar, quase igual à ginástica: desenvolve a firmeza do andar, a solidez das articulações, faz girar abundante e igualmente o sangue, robustece o peito, exercita e excita a facilidade da respiração. E um doce medicamento contra a anemia, a palidez, os suores. E sobretudo uma fadiga. Toda a mulher que se não cansa, idealiza. Dá os bons sonos saudáveis e frescos, o apetite inglês. Dá às raparigas uma boa alegria de ave que voa. E têm-se visto doenças inexplicáveis de mulheres curarem-se com uma valsa. As boas valsas são as de Strauss, ágeis, alegres, radiosas, impelidas, firmemente resvaladas

— que têm alguma coisa de ataque e muito de triunfo.

A valsa é moral e educadora: porque acostuma as mulheres a ter dos homens uma ideia positiva e burguesa. E por isso que os românticos, os netos de Byron e de Dom

João não valsavam: pálidos, encostados à ombreira, com a gravata de cetim negro em nó, o olhar triste e dominante, os dedos errantes em longos bigodes sentimentais, estavam imóveis em todo o encanto do seu mistério, exalando romance. O homem na frescura da sua toilette, a pele macia e seca, a claque debaixo do braço, sereno, fresco, perfeito, intacto, conversa e ri num baile, pode excitar o sentimento: quem nunca o excitará é o valsista — com a pele oleosa, a testa cheia de gotas, a respiração ofegante, um arquejar pesado, o nariz luzidio, a aba da casaca esvoaçando, as pernas pulantes como as de um gafanhoto que vai para os seus negócios, o ar embezerrado, vermelho, soprando, feliz e grotesco. A mulher olha e sorri. Porque ela é que não perde a graça, se a tem, e o arfar dá-lhe a delicadeza, todos os abandonos mimosos da ave que cansa.

Além disso os vestidos compridos, rojados, leves, foram feitos para a valsa e acentuam-na como um palpitar de asa. De sorte que se pode rir, legitimamente, de cima de seu encanto, do pobre homem que a seu lado resfolga, escarlate e esfalfado. E depois, o homem que valsa, como pode ter espírito? O que naturalmente lhe sairia pela boca fora se a abrisse, não seriam as graças — seriam os bofes: é por isso que ele, duro, cerrado, espesso, alagado, guarda dentro em si para seu uso, cuidadosamente — a pilhéria e a víscera.

Na valsa a mulher faz a poesia do movimento — o homem faz-lhe a farsa. O homem, de resto, nunca deve dançar: o seu movimento são as armas, a luta, a marcha, o salto, a ginástica: já Napoleão o dizia. O Oriente, tão profundo e tão subtil, compreendeu isto admiravelmente: aí as mulheres dançam sós entre si; o homem, encostado no divã, contempla e fuma o chibouk.

Valsem! valsem! — e creiam que esta glorificação e desinteressada: o que escreve estas linhas não valsa. Valsou. Valsou um dia. Era de madrugada, ao fim de um baile, dado muito longe daqui, ao Oriente e ao Ocidente. Valsou com um preto. Na sala deserta, luminosa e cintilante como uma visão do sultão Achmed, quatro pessoas assistiam gravemente àquela valsa solitária: um chefe de tribo dos confins da Núbia, imóvel na sua túnica de linho e fio de oiro, lorde C... que morreu agora em Florença, um sábio doutor prussiano, mademoiselle J... des Bouffes e um capitão de artilharia inglesa, que olhava gravemente, a cavalo num criado. E tantas saudades lhe ficaram ao que isto conta, daquela valsa — que assim como o rei de Tule nunca mais bebeu, ele nunca mais valsou.

Ora o que se faz a esta mulher inteiramente, exclusivamente educada para o amor?

Esta mulher, assim formada, casa. O marido vai, decerto, dar a esta natureza, que vem curiosa, impressionável e agitável, uma ocupação que a absorva e que a preencha? —

Não. E nas classes ricas: o marido trata de lhe tirar todo o trabalho, todo o movimento, toda a dificuldade, alarga-lhe a vida em redor, e deixa-a no meio, isolada, fraca e tenra, abandonada à fantasia, ao sonho e à chama interior: a cabeleireira penteia-a, as criadas vestem-na, a governanta trata-lhe da casa, a ama cuida-lhe dos filhos, as moças arrumam-lhe os quartos, o marido ganha-lhe dinheiro, a modista faz-lhe os vestidos — um cupé macio caminha por ela, um jornal de modas pensa por ela. — O que resta a esta infeliz criatura, encolhida no tédio da sua causeuse? Resta-lhe a sua genuína ocupação, a que lhe ensinaram e em que é perfeita — o amor.

Se o marido se conserva um amante — bem. Mas se o marido, naturalmente, como deve ser, se ocupa dos seus negócios, do seu escritório, da sua política, dos seus fundos, do seu clube, dos seus amigos — mal. Ela naturalmente faz como um amanuense que, tendo por profissão escrever, quando tem escrita e cheia a primeira folha de papel, toma outra — para continuar a escrever.

Tal é a verdade.

E querem uma prova? E que as mulheres mais ocupadas são as mais virtuosas. E isto evidente na pequena burguesia, no mundo proletário, nas classes agrícolas. Os adultérios aí, a não ser as excepções de temperamentos, são quase todos originados na necessidade e na pobreza. Outra prova é que Lisboa é uma terra de mulheres virtuosas.

Podem rir-se os incrédulos da cidade, les rieurs de la ville, como dizia Tallemant des

Reaux. A verdade é essa, e a razão é que Lisboa é uma terra pobre; a maior parte das famílias são de empregados públicos, e portanto as mulheres, sem criadas, sem aias, e sem carruagens, têm, de manhã à noite, o rude trabalho de uma casa a dirigir: têm de se vestir, de lavar os filhos, de alinhavar vestidos, de tomar róis, de fazer as suas compras; e fica-lhes um dia cheio e trabalhado.

Uma mulher assim fatigada, cheia de pequenas preocupações, de atenções caseiras, de economias, de chaves, não tem vagares para o sentimento. A sua natureza torna-se excessivamente prática, positiva, doméstica, hostil à fantasia e aos seus cortejos. Além disso, vendo o marido sobrecarregado e sustentando pela firmeza do trabalho aquela nau — toma-se por ele de um grande respeito. O casamento torna-se assim uma associação de trabalho. A mulher adquire uma alta ideia da sua missão.

Vendo-se centro de actividade na casa, e que é necessária a todos, e que a sua presença consola, e que a sua coragem fortifica, e que pelo seu trabalho e pela sua ordem a família está confortada, asseada, farta, alegre — julga-se e tem o orgulho de Providência, reina verdadeiramente, e nem por todos os encantos quereria descer na estima do seu pequeno mundo honrado.

Além disso, mesmo que fosse sentimental, o que é extremamente raro, as condições de existência burguesa defendiam-na como muralhas. As casas são pequenas, o contacto da família é permanente, a todas as horas, nas mesmas salas; torna-se impossível toda a inteligência secreta com o exterior. Não poderia sequer ter por muito tempo um segredo do coração: a família adivinhar-lho-ia na preocupação do rosto, na voz e no silêncio.

Dê-se à mulher um alto interesse doméstico, e dá-se-lhe uma virtude invencível.

Dê-se-lhe uma casa a governar, uma família a dirigir, e ela encontrará no seu coração mais valor para ser virtuosa, do que nós encontramos razões no nosso espírito para sermos honrados. — Ora agora se o marido faz da sua mulher uma amante mignonne e luxuosa, se a torna um pequenino mimo e um gozo de voluptuosidade, se faz dela um ornato de teatro e quase um embelezamento público, se a quer como uma sultana da

Geórgia, que se transporta nos braços — nesse caso esta mal, e então o risonho

Offenbach adianta-se com a sua batuta e o seu couplet garoto, e aconselha-o a que nunca entre em casa — sem prevenir.

Proudhon disse que a mulher só tem um destino — menagère ou courtisane — dona da casa ou mulher de prazer.

Seria longo explicar a alta moral que esta palavra encerra; mas se aos maridos basta um resumo concludente e firme, diremos que cada um — encarregue sua mulher de fazer casa, e a dispense de fazer moda. Quando falamos assim de moda, com irreverência, não queremos dizer que a mulher não cuide da sua beleza. Bem ao contrário. Para a mulher a beleza é o mais alto dos seus direitos e o mais grave dos seus deveres!

Colocar a mulher nas ocupações da família, eis o que achamos de mais genérico para evitar a dissolução do casamento. Se, porém, nos interrogam directamente sobre o adultério e os seus motivos, pedimos que observem o que se passa nos costumes.

O espectáculo é curioso, O adultério é um facto aprovado pela opinião. Querem a prova? No adultério entram — o sedutor, para que lhe dêmos este nome clássico, a mulher e o marido. Vejamos como eles mesmos se consideram a si: consciência própria e consciência pública.

Vejamos o sedutor:

Dizia Napoleão: o adultério que é um tão grande facto no código e na moral, não é na vida real mais que um entretenimento de baile ou uma distracção de teatro. Palavra profunda. O celibatário sentado na sua cadeira, num entreacto, enfastiado, fita uma certa mulher, que o fere pela cor dos cabelos ou pelo feitio da toilette: daí às vezes uma tragédia. No entanto o celibatário, o dândi, o leão, está na sua ocupação habitual. Não é para dissolver a família, provocar os desastres — que ele ali está de luvas gris — é para cumprir a sua elegância. Está nos costumes. Ninguém lho estranha.

O celibatário não é o carrasco oficial da felicidade conjugal. É uru bom rapaz, é um diletante, é um ocioso, é um voluptuoso. A sua distinção honra a civilização e o luxo; a cidade por vezes tem orgulho nele; Alcibíades, crévé, foi uma glória de Atenas, e Plutarco narrou-o. Não é por mal que o celibatário olha: é por obrigação da sua profissão, é por dever de ofício. Não é com intenção fatal que ele faz a sua corte a uma mulher; é porque, se conhece uma mulher, se é recebido em sua casa, tem obrigação de lhe fazer a sua corte. Fazer a sua corte — é necessário que saibam — é uma coisa muito diferente de fazer a corte.

Fazer a corte é olhar de longe, seguir, adivinhar a mulher, procurar falar-lhe, ter a atitude sentimental. Se o celibatário faz a corte é porque não é da intimidade da casa, ou está posto em suspeição pela desconfiança marital. Opera de longe, com largos voos.

Não é perigoso.

Outra coisa, porém, é o celibatário que faz a sua corte. Fazer a sua corte é sentar-se ao pé de uma mulher, fazer-lhe uma conversa interessante, provocar-lhe o espírito, dar-lhe o braço à saída, pôr-lhe o seu burnous com as pontas dos dedos. Diz-se muito legitimamente a um marido: Vou fazer a minha corte à tua mulher. Por coisa alguma se lhe diria, sob pena de bengaladas, vou fazer a corte a tua mulher. O que faz a sua corte

é sempre íntimo de casa: tem o seu talher, ri em segredo com madama, traz-lhe ramos de que tira um botão de rosa para o marido pôr na boutonnière — entra no camarote e diz-lhe: Se queres vai fumar, eu fico a fazer a minha corte a tua mulher.Onde está fulano? perguntam no corredor ao marido que fuma. — Ficou a fazer a sua corte a minha mulher.

O que faz a sua corte vai com ela às lojas, traz-lhe a valsa da véspera e o escândalo do dia, conta-lhe ao ouvido o enredo da ópera, e é ele que — quando o marido o encontra saindo da sala de sua mulher, lhe diz:

— Tenho estado a fazer a minha corte a tua mulher.

— Não queres ficar para jantar?

— Não. Vou fazer ainda a minha corte a fulana.

O celerado! o bom rapaz!

Ora bem: este homem que — para que o digamos desde já — é o amante, como é considerado pelo mundo e pela opinião? Optimamente. Bem recebido, rodeado de braços abertos, tomado como tipo e mestre pelos solteiros, invejado pelos maridos maniatados ao casamento, como uma ave que voa, pode ser invejada por uma couve que está, olhado curiosamente, intencionalmente e medrosamente pelas mulheres — torna-se centro e toma no seu mundo uma atitude vitoriosa.

Assim o ter tido um certo número de amantes, isto é, ter desorganizado um certo número de famílias, é na moral contemporânea um chique. Na moral antiga teria as penas infamantes da mutilação. Hoje é um chique. É mais: é um complemento de educação. Na Princesse Georges, a mãe, a marquesa, diz do príncipe de Birac: — um homem de bem que viajou e teve aquele número de aventuras que fazem parte da educação, mas teve-as no seu mundo.

Esta palavra é um traço fotográfico da opinião moderna. E quem o diz é uma mulher honesta, atenta à devoção. E aí temos pois que ter seduzido algumas mulheres casadas, é, na mocidade de um homem e para garantia do seu destino, tão indispensável como ter aprendido a gramática; e pode dizer-se das perfeições de um gentleman:

Deitou a perder uma mãe de família e sabe os verbos.

O homem que nunca teve uma amante casada e, segundo a apreciação mundana, ligeiramente ridículo, filósofo, caturra; nega-se-lhe a experiência feminina, e passa à situação hirsuta e florestal de bicho do mato: é a opinião dos cafés. E a opinião das salas não lhe é mais favorável: é considerado um inábil e um colegial sem valor; se ele não interessou nem fez palpitar ninguém é porque é sem espírito, sem originalidade, sem beleza, sem toilette e sem descrição, é um inútil, é um seminarista extraviado; atribui-se- lhe falta de coragem e de domínio; dá-se-lhe aquela indiferença que se dá às coisas sem dono. Mas se teve uma amante com publicidade e relevo, ah! é um homem. A sua fisionomia interessa e exala mistério. Se teve três, é leão, torna-se celebridade, tem o sorriso escravo das mulheres e um lugar no Estado. Se tem tido mais, e um marido morto em duelo, é o caso de Cade Rousse, fica numa civilização como tipo perfeito da fina flor dos bravos. E assim a glória cresce, com o número de seduções, até Dom João, que por ter tido três mil, é cantado pelos poetas, escolhido pelos pintores como a expressão do ideal, posto em música pelos maestros divinos, tornado Símbolo, e depois de 400 anos ainda a sua legenda faz suspirar de amor.

E se o leão envelhece, não é abandonado como o de Lafontaine. A protecção feminina segue-o como um amparo providencial. É colocado numa embaixada ou num senado: o Estado encarrega-se dele, como de uma glória pública: e, como Romieu, depois de governar as alcovas, vai governar as províncias — ou, como o duque de

Morny, vai descansar das almofadas de boudoir na cadeira de primeiro-ministro.

E enfim, pormenor fatal, não há mãe que não deseje para sua filha, não há filha que não deseje para si — um homem que tenha já passado as primeiras verduras: isto é, deseja que, para dar garantia de felicidade à sua família, tenha já de antemão gasto a chama impaciente: por onde? Pelas famílias dos outros!

Sendo assim uma alta glória a sedução — é evidente que todos desejam a auréola perfumada e que todo o moço de vinte anos, livre do recrutamento, que se sente um pouco de espírito e de roupa branca, arremessa-se de badine em riste, ao movimento amoroso — o que faz, diria Marivaux — um voo de milhafres sobre as tenras pombas.

Perigo que não temos em Portugal — e que mais acentua a nossa virtude. Aqui há o celibatário, mas não há o leão. E não é difícil à mulher mais fraca resistir ao encanto do

Lovelace nacional: porque o celibatário está nas secretarias ou está nas cavalariças. Os das secretarias são excelentes rapazes, com boa letra, espírito de ordem, boa mão de bilhar, muito entendidos em espanholas, mas estão realmente longe de ter em espírito, em distinção, em petulância, em réplica, em sentimento, em valor, aquela alta superioridade que fazia com que madama Recamier se erguesse, ao cumprimentar, duas linhas acima do seu eterno sofá de damasco amarelo.

Enquanto aos que estão nas cavalariças — são também excelentes, dignos, perfeitos, mas inteiramente dados ao gado.

De modo que por este lado, ó filhas de Maria

Satanás anda longe.