Uma Família Ingleza/XXVI

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INEFFICAZ MEDIAÇÃO DE JENNY

Jenny foi encontrar o irmão apparentemente entretido a torcer as longas orelhas do terra nova; mas não era necessario ser muito versado em physiognomia, para perceber que lhe não estavam n'aquillo as attenções.

—Que foi isto, Charles?—disse Jenny, com a voz ainda turvada de commoção—Por amor de Deus, isto que é?

Carlos levantou a cabeça, e respondeu, fingindo sorrir:

—Não te assustes, Jenny. Eu e o pae representamos hoje uma peça do antigo repertorio, do repertorio da infancia. Elle lembrou-se de me ralhar, como a uma creança; eu fiz como as creanças costumam, amuei. Ora, aos dez e doze annos, scenas d'estas tinham para mim uma feição de tragedia; aos vinte, predomina n'ellas o caracter de perfeita comedia...

—Mas... o que se passou entre vós, que désse logar a isto?

—Nada ou quasi nada. Interpretaram mal uma acção minha. Eu podia, mas não devia, explical-a; afiancei porém, sob minha palavra de honra, que não era exacta a interpretação que lhe davam; e meu pae, que acabava de se apregoar respeitador e mantenedor da boa fama do nome Whitestone, foi o primeiro a manchal-o, duvidando de uma palavra de honra firmada com elle.

—Jesus, Charles!... Que has de sempre ter d'essas susceptibilidades com uma pessoa de quem não deves suspeitar que possa nunca fazer do teu caracter conceito algum desfavoravel!

—Mas se m'o assegurou!

—Pobre pae! E imaginas que era friamente que elle te reprehendia? Eu não sei ainda o motivo que deu origem a essa scena, que disseste, mas...

—Um motivo insignificante. Esta manhã precisei de dinheiro; era urgente a necessidade e a somma avultada. Não gósto de recorrer a outra pessoa, quando posso recorrer a mim. Demais, estava só em casa. Commigo só tinha um objecto, que promptamente me podia valer a quantia de que precisava. Era o relogio e a corrente, que recebi do pae quando...

—E foste?... Ó Charles!—disse Jenny, olhando com desapprovação para o irmão.

—Tirei da corrente este pequeno sinete de agatha, a parte menos valiosa do presente, para conservar uma memoria d'elle. Sabes que não é pelo preço dos objectos, que me offerecem, que eu os aprecio. Vendi o mais; confesso que vendi. Passadas horas o acaso fez-me o favor de conduzir meu pae pela mão justamente até á loja do ourives, onde relogio e corrente estavam já expostos á venda. Reconheceu-os, comprou-os de novo, e trouxe-m'os, dizendo-me por essa occasião algumas palavras que... que só a elle poderia, e deveria, ter a paciencia de ouvir.

—Mas... que má cabeça a tua! Para que foste vender aquelle relogio, que elle, coitado, com tanto gosto mandára vir para ti?

—Porque se tratava de alguma cousa mais importante e mais grave do que os arrufos de um pae, por mais respeitaveis que elles possam ser.

Jenny fez involuntariamente um gesto de duvida.

—Acredita-me, Jenny. Não duvides tu, como elle duvidou. Affirmo-te, tomando os mais sagrados testimunhos, que, se ainda se désse o motivo que se deu, não hesitaria, apesar do que houve, em vender outra vez este mesmo relogio e esta mesma corrente.

—Então que forte motivo foi esse?

—Não posso dizer-t'o.

—Já me não contas, como d'antes, os teus segredos, Charles?

—Este não é meu.

Jenny calou-se.

Carlos olhou por algum tempo para a irmã; depois veio pegar-lhe nas mãos, dizendo:

—Olha bem para mim, Jenny. Tu estás a duvidar tambem da minha palavra.

—Não... Charles... não duvido.

—Dize: pódes acreditar que teu irmão, com todos os seus estouvamentos, commetta uma vileza?

—Ó Charles! Que pergunta!

—Pódes acreditar que elle se esqueça por um momento do muito respeito e amor que te deve, Jenny? e da veneração que sempre teve pela memoria da mãe, que mal chegou a conhecer?

—Não, Charles, não. Para que me perguntas isso? Ninguem, melhor do que eu, te conhece o coração e te avalia os sentimentos; bem o sabes. Ninguem te faz mais justiça—respondeu Jenny, sensibilisada com a manifesta commoção, que se conhecia na voz de Carlos, quando lhe fallára assim.

—Pois de tudo isto me accusaram ha pouco... E foi meu pae!

—E julgas que o pensava, ainda quando t'o dizìa... se o disse?

—Se o não pensasse, calar-se-hia ao ver o mal que me causavam aquellas accusações e a maneira por que eu as repelli... mas insistiu.

—Perdôa-lhe tu tambem isso. Vamos; comquanto eu não faca a injustiça de te suppôr capaz de acções, tão carregadamente más, como essas que dizias, acredito tambem que não seja de tudo um justo este incorrigivel irmão que tenho, e creio que precisará um pouco da indulgencia, que recusa ter para com os outros. Tudo isso passou já. Olha, meu Charles, tu deves fazer como os lagos e como os prados, que não conservam vestigios das nuvens que os assombraram, ao passarem por diante do sol. Se visses como o pae ficou, assim que te retiraste da mesa! Coitado! Se foi injusto comtigo, está pagando bem cara a injustiça! Acredita que a sente mais do que tu. Eu estava a reconhecer n'elle o desejo de te pedir desculpa por alguma cousa, de que se arrependia já. Mas, que queres? estas passagens não se podem fazer assim depressa, ainda que haja a melhor vontade. E tu não lhe déste tempo. Serias um anjo, Charles, se fosses bom e generoso a ponto de...—E olha que era uma vingança tambem.—Se fosses bom e generoso a ponto de voltares para a sala e vires fazer companhia ao pae esta tarde...

—Tu, que me conheces, Jenny, como pódes lembrar-te d'essa proposta? Não sabes como eu sou? Percebeste alguma vez em mim a aptidão para dissimular, de que precisaria, se quizesse fazer o que me indicas? Os meus resentimentos são curtos, é verdade; mas, emquanto duram, não sei disfarçal-os. Ámanhã já nada terei na memoria talvez de tudo isto; mas hoje, mas agora, aggravaria o mal, se me apresentasse tão cêdo diante do pae.

Jenny não insistiu, porque reconheceu a verdade d'esta reflexão do irmão. D'ahi a pouco, disse-lhe:

—Dou duas horas de vida ao teu resentimento, e já é suppôl-o muito vividouro. Ao anoitecer, nem sombras haverá d'elle. Acompanhar-nos-has então a casa de Mr. Smithfield, o que será o maior prazer que pódes causar ao pae; e o dia de ámanhã virá sem nuvens.

—Não, Jenny, não vos posso acompanhar esta noite.

—Não digas que não, Charles. Então és assim reservado?

—Não; mas... tenho destino para esta noite já.

—E de tanta urgencia, que não possas...

—Não posso faltar, não.

—Ó Charles, não ouviste o que o pae disse?—«Mr. Smithfield é um homem que tem feito serviços á casa...»

—Hoje não posso; amanhã visitarei esse senhor.

—Ámanhã partem elles para o Minho.

—Tanto peior. Vêl-o-hei na volta.

—Vaes desafiar uma tempestade, recusando-te a tão pequeno sacrificio.

—Que querem? Digam a esse homem, que eu tenho mau caracter, que sou desagradecido, intratavel, grosseiro, egoista; e que por isso não deve estranhar a minha pouca pressa em ir dar-lhe os emboras pela sua feliz viagem.

Carlos disse tudo isto com impaciencia, que sobresaltou a irmã.

Foi com ligeiro tremor de voz, que ella lhe respondeu:

—Tu bem sabes que não é isso que eu posso dizer de ti, Charles, nem deixar que os outros, na minha presença, digam.

Carlos abrandou inimediatamente, ao ouvir estas palavras.

—Pobre Jenny! És a unica pessoa que me conhece devéras.

—E tu a que te conheces menos—respondeu a irmã, com doçura, e depois acrescentou:—Vens?

—Não posso.

— Charles!

—Mas se eu prometti!... Olha, Jenny, se és minha amiga, não insistas mais a este respeito; que não seja o dia de hoje tão aziago para mim, que esteja destinado a receber durante elle desgostos das pessoas a quem mais estimo.

As lagrimas assomaram d'esta vez aos olhos de Jenny.

—Era para t'os evitar, que eu insistia, Charles... Perdôa-me se...

E a commoção não a deixou continuar.

Carlos apoderou-se-lhe das mãos, que cobriu de beijos.

—Minha boa Jenny! minha generosa irmã! perdôa-me tu, perdôa a este estouvado, que nem sabe o que diz. De joelhos te devia implorar, filha, eu, que te pago em lagrimas os sorrisos que me dás. Tu a pedir-me perdão! Eu a perdoar-te, Jenny! O quê?... O conforto que me tens dado sempre?... Esta serenidade, que me fazes durar na vida, anjo? As caricias e cuidados de mãe que me ensinaste a conhecer? pobre mãe, só dois annos mais velha do que este mau filho, que não sabe senão affligil-a! É isto que tenho a perdoar-te? Dize. Não repares para as loucuras d'esta minha cabeça. E agora escuta-me. Eu desejava fazer-te a vontade, mas... hontem... o... Manoel Quentino mostrou-me desejos de celebrar na minha companhia o ultimo dia de reclusão, a que a doença o tem obrigado. Ámanhã já elle sáe. É uma pequena e suave festa de familia, e na qual sómente servem de galas os affectos e as flores. Esta manhã não pude ir visital-o, como elle me pediu... Era agora, á noite, que eu tencionava ir... Queres que eu deixe de satisfazer o desejo do pobre homem?

Jenny, depois de fitar por algum tempo o irmão, suspirou, baixando os olhos.

—Responde, Jenny—repetiu Carlos—e se julgares que, no meu logar, poderias fazel-o, sem que um pequeno remorso t'o estorvasse, eu obedeço-te e... não irei.

Jenny permanecia calada.

—Então?—repetiu Carlos.

—Que queres que te responda, Charles? Seria sem hesitação que eu te diria «vae», se estivesse convencida de que é esse sentimento de generosidade o que te chama lá.

—Então duvidas do que eu disse?

—Não. Mas duvido, e ha muito, do conhecimento que tens de ti proprio. Ensinaste-me a ler em ti, Charles, n'aquelles tempos, em que me communicavas todos os teus pensamentos; habituei-me então, e leio ainda agora, que evitas essas longas conferencias de outras épocas...

—Que evito! Pois imaginas?...

—Não imagino, sei. Cuidas tu, Charles, que tenho perdido de vista o irmão, que tão longe d'ella tem procurado andar? Ai, não tenho, não.

—E que tens visto a essa distancia?—perguntou Carlos, gracejando.

—O bastante para me affligir; o bastante para pedir a Deus que me inspire um dia, em que talvez seja mais carregada do que nunca a nuvem que venha ameaçar-nos.

—Visionaria!

—Oh! se o fosse!

—Não me dirás tu, Jenny, como te deu para seres tão apprehensiva d'esta vez! Logo d'esta, em que não é um capricho o que se apoderou do coração de teu irmão!

—Não é?

—Não, digo-t'o afoutamente, não é. É um sentimento novo para mim aquelle, a que ando sujeito... Ahi volto eu ás velhas confidencias de outros tempos; não reparas?

—D'esta vez, Charles, ha duas pessoas, que ambas me são caras, empenhadas n'isto; eis uma causa da minha inquietação. D'esta vez, se de um dos lados sómente houver sinceridade...—e será do teu lado, a havel-a sómente de um?—recaírá sobre o outro todo o peso de irremediavel infortunio; outra causa que me faz estremecer. E quando sejam sinceros ambos, não haverá tantas luctas a travar? tantos obstaculos a vencer? É de tudo isto que vem as minhas apprehensões.

—Socega, Jenny; eu tenho mais confiança no futuro do que tu.

N'este ponto, entrou um criado com recado de Mr. Richard a Jenny, de que eram horas de preparar-se para a visita a Mr. Smithfield.

—Então, Charles... Vens?—disse ella ainda uma vez para o irmão.

—Por quem és, Jenny, não insistas mais. Basta que te diga que não sei de motivo tão forte que me podesse obrigar hoje a faltar á minha promessa. O mais que fazes é perturbar-me o socego de espirito para toda a noite, com o remorso de não ter condescendido comtigo.

Jenny curvou a cabeça e saíu do quarto.

Carlos correu a retel-a á porta, para dizer-lhe ainda uma vez:

—Perdôa-me, Jenny.

Ella só pôde responder-lhe, commovida:

—Vae.

Passados minutos, vieram da parte de Mr. Richard perguntar a Carlos, se elle o acompanharia á visita ao compatriota Smithfield. Carlos respondeu que lhe era impossivel fazel-o aquella noite.

Recebendo esta resposta do filho, Mr. Richard pôz-se a esfolhar com impaciencia uma rosa que tinha na mão.