Uma Família Ingleza/XXXII
OS CONVIVAS DE MR. RICHARD
Na mesma manhã, em que se realisaram os acontecimentos narrados nos ultimos capitulos, Mr. Whitestone, depois de muito lidar no jardim e na estufa, transplantando, mondando, alporcando, semeiando, regando as varias plantas da sua collecção, com não pequeno detrimento de muitas, recolhera-se emfim ao gabinete, e por curiosidade abrira o volume da Vida e Opiniões de Tristram Shandy, mina inesgotavel de prazer e de instrucção para o bem disposto gentleman. De cada vez que o lia—e raro era o periodo de vinte e quatro horas que passava sem o fazer—descobria no livro cousas novas, sérias, jocosas, philosophicas, de profundeza especulativa, de utilidade prática, tudo emfim. Mr. Richard mostrava-se intimamente convencido da opinião expressa por o proprio Sterne, a respeito d'esta obra singular e de difficil classificação: «O verdadeiro Shandeismo dilata os pulmões e o coração (diz elle algures), e á maneira de todas as affecções que participam d'esta propriedade, faz com que o sangue e os outros guias vitaes do corpo corram livremente em seus canaes e que gire livre e desimpedida a roda da vida.»
Ora effectivamente meia hora de leitura de uma pagina humoristica de Sterne era em Mr. Richard remedio efficaz contra melancolias e contrariedades na vida.
Abrira Mr. Richard o livro ao acaso, e lia agora a pagina, em que se diz como o pae de Tristram, ao saber da morte de um dos filhos, encontrára lenitivo, em lhe ser este acontecimento pretexto para considerações philosophicas a respeito da morte.—«Um bem que encadeiasse a lingua de meu pae (diz Tristram), e um infortunio que a soltasse, eram quasi iguaes para elle, e ás vezes era o infortunio o mais apreciado dos dois.»
Estas palavras deram que pensar a Mr. Richard; elle imitava estes apreciadores de vinho que conservam muito tempo no paladar cada gole que sorvem, e olham com indignação para os grosseiros bebedores, que despejam de um trago tão preciosa bebida.
—E é assim;—reflectia elle, pousando o livro e saboreando a consideração que lera—ou mais ou menos succede o mesmo com toda a gente. Se fosse possivel fazer correr o mundo tanto á vontade dos que d'elle murmuram constantemente, que se lhes tirasse todo o pretexto de murmurar, causar-se-lhes-hia não pequena mortificação.
Estes pensamentos foram interrompidos por o criado, que entrou para annunciar:
—Mr. Morlays.
—Verbi gratia—disse para si Mr. Richard, depois de ter dado ordem de mandar entrar o annunciado.
Effectivamente o inglez, que chegava, era um d'estes pessimistas, para quem o universo inteiro se apresenta tingido das mais escuras côres; era uma victima, ao mesmo tempo lastimavel e insupportavel, do mau humor, que o douto Feuchtersleben chama—prosa vulgar da vida, irmão do tédio e da preguiça e envenenador que lentamente traz comsigo a morte.
Mr. Whitestone, homem laborioso e contente do mundo, estava em constante opposição ao seu compatriota e amigo, que era d'estes que teem feito adquirir aos nevoeiros de Londres a immerecida fama de fomentadores do splen—fama, contra a qual principiam, com muito criterio, a protestar os homens pensadores, descobrindo antes na ociosidade, favorecida por as fabulosas riquezas de alguns lords, a causa d'aquelle mal de suicidas.
O aspecto de Mr. Morlays denuncial-o-hia á medicina antiga como uma victima d'esse mysterioso humor negro, que ella chamou atrabilis. Era a variedade do inglez, que póde denominar-se escura; e a escuridade, que lhe estava no rosto, projectava-se-lhe tambem nas disposições moraes.
O gabinete, em que se reuniam os dois inglezes, era um compendio do quanto póde tornar o curso da vida facil e suave; tudo alli respirava conforto; tudo favorecia aquelle doce repousar de fadigas melhor do que por ninguem saboreado pelos Her magesty's subjects, residentes nos nossos climas meridionaes.
Cadeiras de varias fórmas e mecanismos, nas quaes se esmerára o genio inventivo em multiplicar e variar as molas, em distribuir as articulações, em combinar os movimentos, em contornar os angulos e saliencias até accommodal-as, o mais possivel, a todas as posturas, por mais caprichosas e extravagantes, que o instincto do repouso as podesse suggerir; tapetes, onde os pés se profundavam como na relva dos campos; cortinas a temperarem a intensidade da luz, e finalmente o fogo, companheiro inseparavel d'estas organisacões do norte, ainda n'aquelle mez quasi de estio, a crepitar e a lamber com a lingua inflammada as grades do fogão. Mr. Whitestone pensava como S. Francisco de Salles, a quem attribuem a opinião de que o fogo é bom durante doze mezes no anno.
Mr. Morlays encontrou em tudo isto motivos para observações de critica atrabiliaria.
—Maus habitos, Mr. Richard, maus habitos! Estes costumes elanguescedores são os que tem operado a visivel degeneração da raça humana. As escrofulas...
—Misericordia, Mr. Morlays! Que feia palavra para antes de jantar!—exclamou Mr. Richard, rindo.
—São os males da civilisação. Depois do assucar, o peior inimigo do nosso organismo é o fogão.
—Então o assucar tambem?
—O assucar! Eu tenho para mim que a mais lastimosa descoberta da industria do homem foi a d'esse pó insidioso, que traiçoeiramente nos tem envenenado o corpo todo, misturando-se ao sangue...
—É celebre! Eu tinha ideia de que Mr. Morlays era até apaixonado pelo doce!
—E que prova isso? A nossa natureza é feita assim. Adquirido o habito do mal, até o mal, até a dor, lhe é indispensavel.
Mr. Richard ficou algum tempo calado, como a meditar sobre a lei do habito enunciada pelo seu amigo.
Depois perguntou:
—Não haverá meia hora na vida, durante a qual Mr. Morlays veja este mundo com bons olhos?
—O defeito não está nos meus olhos, creia; mas no que a elles se apresenta de contínuo. Este é o peior dos mundos, acredite.
—Tristram Shandy—disse Mr. Richard, sorrindo—lamenta tambem não ter nascido na lua ou em outro qualquer planeta, excepto Jupiter e Saturno, por causa de serem muito frios; por isso que, diz elle, em outro qualquer não lhe podiam ter corrido as cousas peior do que n'este, o qual elle julga ter sido feito com os acrescimos e as aparas dos outros... Eh! eh! eh!... Mr. Morlays não hesitaria em dizer o mesmo; estou vendo.
—E por que havia de hesitar?
O criado, entrando outra vez, annunciou Mr. Brains.
—Oh! oh!—disse Mr. Richard—ahi vem o antidoto contra a sua influencia pessimista.
—Este vê tudo azul-celeste!—notou Mr. Morlays, com sorriso de commiseração.
Ouviu-se no corredor uma voz cantando jovialmente:
God save Victoria!
Long live Victoria!
God save the Queen!
E Mr. Brains, inglez que reagia pertinazmente contra a sisuda etiqueta nacional, entrou com grande exhibição de cumprimentos e mesuras para a direita e para a esquerda, simulando atravessar por entre filas de personagens, que o saudavam, e ia dizendo:
—Mylords! myladies! gentleman! sem incommodo! sem incommodo!—e chegando perto de Mr. Richard:—Bons dias, lord Whitestone, bons dias; folgo muito de vos ver tão bem disposto. Oh! nosso leal subdito, lord Morlays!—como vae o diabo preto, que vos acompanha para toda a parte?
—Não tão bem disposto como o diabo côr de rosa de Mr. Brains.
—Nem por isso, nem por isso. Descuidou-se hoje, deixando-me varrer todas as ostras do mercado, sem me reservar nenhuma! Cheguei a acreditar que Mr. Morlays tinha razão; o mundo tem provações! Eh! eh!...
—Ria, ria. Eu confesso que me seria difficil imaginar outro mundo peior.
—Oh! Para isso basta supprimir as ostras da creação. Perde logo cincoenta por cento do valor que tem. Eh! eh! eh! Uma comida leve, que não compromette o estomago! antes o predispõe a mais substancial refeição.
Não acompanharemos, através das diversas transições, o longo e substancioso dialogo mantido entre os tres inglezes.
As questões mais graves, que agitavam então as intelligencias e pejavam de papeis os gabinetes diplomaticos da Europa, o destino das nações, a futura sorte dos povos, tudo, n'aquella manhã, foi tratado por elles e decidido em termos categoricos e com tanta consciencia e infallibilidade, como só a dá e permitte o fôro de subdito inglez, cujos privilegios, debaixo d'este ponto de vista, parece não terem limites. Monarcas, generaes, ministros, diplomatas, publicistas, todos passaram em comprida procissão aos olhos d'este triumvirato, que os julgou e sentenciou com a impavidez e precisão proprias do espirito britannico.
A guerra da Crimeia historiaram-a elles a seu modo: com grande exaltação da Inglaterra, e acerba critica da França, a cujo exercito nada mais concediam senão uma fanfarronice, ás vezes feliz.
Escusado será dizer que tudo isto era condimentado com reflexões lugubres de Mr. Morlays e com ditos joviaes de Mr. Brains. O primeiro, para deprimir a França, inventava exemplos de crueldade, e quasi de canibalismo, commettidos pelo soldado francez: o segundo, com o mesmo patriotico fim, contava anecdotas comicas, nas quaes se demonstrava o quixotismo dos alliados da velha Inglaterra. Mr. Whitestone aceitava tudo de boa vontade.
A illacão, que dos seus arrazoados tirava Mr. Morlays, era quasi sempre esta:
—Este mundo é um covil de feras!
A de Mr. Brains formulava-se de ordinario assim:
—Este mundo é um grande theatro.
Pouco a pouco, ascendeu a conferencia a mais sublimados assumptos. A questão politica abriu campo a mais vasta questão social, onde os dois inglezes continuaram a conservar cada um a sua provada individualidade ao serviço da causa da patria commum.
Mr. Brains, o optimista, abraçava-se com entranhado affecto ás utopias. N'este momento, estendendo a vista através dos seculos futuros, estava percebendo ao longe a tão almejada unidade dos povos, realisada por uma só nação, por uma legislação unica, por uma lingua commum; a suppressão da palavra «guerra» d'esse vocabulario universal, em consequencia de não ter objecto a que se applicar; e depois a materia, subjugada pela intelligencia, obrigada a trabalhar, e o espirito, livre da attenção as impertinentes exigencias da vida positiva, a entrar em especulações de ordem superior, em concepções metaphysicas.
—Então é que se realisará o ultimo fim do homem na terra! Que não viva eu, Mr. Whitestone, para saudar esse grande dia! Que não possa dizer, na lingua universal de então, o meu «bom dia» ao sol que romper!
Mr. Richard, sorrindo com ares de quem não tinha fé muito ardente em tão dourado futuro, perguntou:
—E que lingua será essa, Mr. Brains? alguma das existentes hoje, que se generalisará; ou outra nova, que terá de se formar ainda?
—Quem o póde dizer, Mr. Richard? Isso é segredo do futuro. Mas não ha duvida que existem grandes plausibilidades a favor da ingleza.
—Ah! sim?
—Por certo. Primeiro que tudo, é a Inglaterra a primeira nação colonial. Em todas as cinco partes do mundo é já familiar o inglez. A joven America, nos seus elementos mais vigorosos, nos que hão de vencer os outros, é de origem ingleza tambem. E depois, meu caro Mr. Richard, a França tem em si inoculado o principio destruidor, que ha de sacrifical-a; a França é papista, o que vem a ser o mesmo que estar condemnada á morte. Demais, o caracter philosophico da lingua ingleza...
Não o seguiremos agora na dissertação philologica, cujo corollario foi que, com o andar dos seculos, toda a humanidade fallaria inglez—lei que, se se realisasse, talvez concorresse a produzir grave desafinação na celebrada harmonia dos orbes, pelo lado da humanidade.
Mr. Morlays tomou a palavra para ir á mão ao compatriota.
Como era de prever, não tinham tanto de lisongeiras as vistas de Mr. Morlays sobre os destinos sociaes. A humanidade, principalmente a que não era ingleza, não devia, pensava elle, bater as palmas ao futuro, que se lhe antolhava.
Sempre que meditava n'estas cousas, Mr. Morlays, em vez de sorrir a utopias, sonhava catastrophes. Foi por isso que ponderou em tom lugubre:
—Não creio, Mr. Brains, não creio que seja possivel realisar-se d'essa maneira e por o successivo progresso dos povos essa nacionalidade univesal. Segundo o que eu tenho lido, o mundo, em que pousamos os pés, é essencialmente sujeito a convulsões; encerra um nucleo inflammado, que, a cada momento, lhe está alterando a superficie. Grandes cataclismos tem já presenciado a humanidade, e quem sabe quantos presenciará ainda? Parte dos continentes que habitamos, segundo se lê nos livros dos naturalistas, foram outr'ora todos cobertos de aguas; sendo de crer que nações de outros tempos estejam sepultadas hoje nos abysmos do mar. Ora, se no futuro se operarem ainda d'essas revoluções, como é plausivel acreditar, a parte continental do globo será submergida e do seio das aguas surgirão superficies não povoadas. O que é possivel é que, em virtude das especiaes condições geographicas da Inglaterra e da sua natureza insular, ella não participe da sorte dos grandes continentes, dos quaes está desligada; que prevaleça e sobreviva á ruina e submersão d'elles, vendo até acrescerem ao seu territorio as novas terras, que o cataclismo arrancar do fundo dos mares. Então talvez, e só assim, se poderá realisar o futuro, que Mr. Brains imagina, sendo os inglezes os unicos possuidores do globo.
Depois, como se receiasse que esta tão extravagante como patriotica theoria geologica não tivesse sido comprehendida, acrescentou:
—Porque... reparem. Vejam este chapéo—e tomou para exemplo o chapéo de panno, que servia a Mr. Richard durante as suas operações horticolas.—Supponhamos esta copa o mundo; sendo as saliencias das dobras os continentes, e as cavidades os mares; aquella pequena saliencia do meio, que fica isolada das outras, seja a Inglaterra. Carregando eu nas saliencias exteriores, até as desfazer, as cavidades elevam-se e vão augmentar a saliencia do meio. Vêem?
E, como para não perder a feição pessimista ainda n'esta concepção, concluiu:
—Talvez fosse uma felicidade que todas as saliencias se desfizessem de vez!
Já vêem os leitores que, embora por processos differentes, os dois compatriotas de Peel aguardam com fé viva o mesmo phenomeno na historia do futuro:—O soberano predominio da nação ingleza sobre o mundo inteiro.
Esta é de facto a crença de todo o verdadeiro inglez, diversificando apenas, como os dois grandes exemplares que o leitor tem á vista, na maneira de concebel-a realisada.
Mr. Richard sorriu á theoria historico-geologica do amigo.
—Será bom que, por cautela, nos vamos passando para a ilha, Mr. Morlays. O fundo dos mares não é grande clima para viver, e o consul de sua magestade não nos isentará de sermos engulidos como simples portuguezes.
Mr. Brains applaudiu cordialmente a observação do amigo Richard.
Á medida que se adiantava a manhã e que os odoriferos vapores da cozinha, atravessando as salas, chegavam ás pituitarias, britannicamente apuradas, dos convivas, a conversa principiou a baixar das alturas, por onde pairara, para assumptos mais terrenos e comesinhos.
Ás tres horas, sentindo o instincto a impellil-os para a mesa do jantar, abandonaram os tres inglezes o gabinete de Mr. Richard e passaram para a sala de recepção, onde Jenny e Cecilia, sentadas uma junto da outra, conversavam intimamente.