Uma Família Ingleza/XXXVI
A DEFEZA DA IRMÃ
Jenny abriu vagarosamente a porta do gabinete de Mr. Richard.
Este andava ainda de um para o outro lado, a passos largos, com a cabeça baixa e as mãos atraz das costas.
Ao ouvir abrir a porta, parou, aguardando quem chegava.
—És tu, Jenny?—disse, ao ver o rosto da filha, e usando de uma affabilidade, que formava completo contraste com a aspereza com que se dirigira a Carlos.
Jenny aproximou-se do pae e, apoderando-se-lhe da mão, beijou-a com affecto.
—Que quer dizer isso, Jenny?—disse Mr. Richard, procurando retiral-a.
—Deixe-me agradecer-lhe, senhor, uma acção generosa, nobre, digna de si, e que me fez sentir, mais do que nunca, o orgulho de ser sua filha.
—Ora essa, Jenny. E foi para isso que vieste?—perguntou Mr. Richard, sorrindo e já sem o menor vestigio de rugas na fronte, momentos antes contrahida.
—E para mais alguma cousa—respondeu Jenny, com a respeitosa familiaridade de filha, a quem diz a consciencia que nada lhe será recusado.
—Então falla.
—Sabe tudo, não é verdade?
—Sei; infelizmente sei.
—E que tenciona fazer? E perdôe-me o querer assim penetrar as suas resoluções; mas tantas vezes voluntariamente m'as confia, que me animo...
—Fazes bem, Jenny, fazes bem—atalhou Mr. Richard, affectuosamente—Eu não me esqueço de que és uma boa conselheira.
—Bem; então d'esta vez?...
—Já reflecti; e tomei algumas providencias. Carlos partirá para Londres no vapor que...
Jenny moveu a cabeça, em signal de desapprovação.
Mr. Whitestone, percebendo o gesto da filha, olhou para ella em silencio alguns momentos.
—Parece que não approvas, Jenny.
Jenny calou-se.
—Responde, falla. Com toda a franqueza dize-me o que pensas d'esta medida.
—Pois bem; direi. Não era isso que eu esperava de meu pae.
—Então?—perguntou Mr. Richard, com levissimo tom de despeito.
—O seu proceder de ha pouco deixou-me esperar outra resolução mais... mais... mais acertada—concluiu, depois de modesta hesitação e corrigindo a força da phrase com a brandura da expressão.
—Que podia eu fazer?
Jenny, em vez de responder directamente, continuou:
—Quer obrigar a partir Charles, quando elle levaria comsigo, no coração, alguma cousa que o não deixaria ser feliz no desterro—porque é um desterro a que o vae condemnar; quer obrigal-o a partir, quando, atraz de si, aqui, deixaria alguem, que sentiria essa ausencia como uma condemnação cruel...
Mr. Richard olhou admirado para a filha, ao ouvil-a fallar assim; depois, com ar mais grave do que até ahi, respondeu, parando defronte d'ella:
—Não, Jenny; quero obrigar a partir Charles para acabar a tempo com um capricho, que podia vir a fazer a infelicidade d'elle e...—depois de hesitar por algum tempo, o velho inglez concluiu:—e d'ella, d'esse alguem de quem tu fallas, supponho eu. Não vês que é uma inclinação de dois dias essa de Carlos?
—Não é, senhor, não é. Eu sinto que não é. D'esta vez bem vejo que é sincera.
Mr. Whitestone encolheu os hombros, sorrindo.
—A Jenny ainda não aprendeu a conhecer seu irmão.
—Tenho seguido passo a passo, desde o principio, esta paixão de Charles. Já desconfiei d'ella tambem; já receei por Cecilia, e tentei dissuadir meu irmão do que imaginei não passar n'elle de um capricho. Depois reconheci que me enganára.
Mr. Richard abanou a cabeça, em signal de duvida.
—Ha quanto tempo te convenceste da sinceridade d'essa paixão em Carlos?...
—Ha muitos dias; desde...
Mr. Richard sorriu...
—E se eu tiver provas de que, ainda ha bem poucos, teu irmão era ainda o mesmo irreflectido e estouvado rapaz de outros tempos?
—Provas?...
—Se eu te mostrasse que elle hoje, ainda como d'antes, não hesita, para satisfazer doudas e pouco delicadas phantasias, em cortar por certas contemplações, respeitaveis para quem possue intactos os sentimentos de familia, ridiculas talvez para elle?
—É injusto... demasiadamente severo para Charles, senhor.
—Pergunta-lhe se foi em homenagem a essa rapariga, por quem o imaginas apaixonado ha tanto tempo, que elle vendeu o relogio, de que no dia de seus annos eu lhe tinha feito presente. Affligiu-me este facto, não por o valor do objecto, mas porque me revelou uma fraqueza na alma de meu filho, uma tibieza nos sentimentos de dignidade, que não esperava encontrar n'elle.
—Charles affirmou-me que fora um motivo poderoso o que o obrigára...
—Mentiu!—disse Mr. Richard com azedume.
—Ó senhor!—exclamou Jenny, como exprobrando-lhe a dureza da expressão.
—O motivo sei eu qual foi...
—Terá provas certas de que o sabe?
Mr. Richard vacillou a esta pergunta, dizendo depois:
—Quasi evidentes.
Jenny sorriu ao repetir:
—Quasi.
Mr. Richard, como excitado por aquelle sorriso, insistiu:
—De certo não foi Cecilia a pessoa que n'esse dia procurou teu irmão e o acompanhou de carruagem até á loja do ourives, onde se effectuou a venda.
Jenny soube pela primeira vez estas particularidades, mas, animada pela confiança que o irmão lhe souhera inspirar, disse sem hesitação:
—E são esses os unicos fundamentos da accusação?
—E julgo que...—e mudando repentinamente de tom, acrescentou:—Mas, deixando isso, a não fazer o que fiz, que querias tu que eu fizesse?
Jenny, desviando os olhos para um periodico de gravuras que estava sobre a mesa, respondeu:
—Não sei que mal haveria em ceder ao impulso d'aquelles dois corações, visto que...
Mr. Richard bateu, algum tempo impacientemente, uma pancada com a mão na secretária, junto da qual tinha parado.
—Julguei que Jenny não conhecia o mundo por o ter visto nas paginas dos romances.
—Não, senhor; não o conheço d'ahi; mas tambem o não conheço por experiencia pessoal. Das lições de meu pae obtive o pouco que d'elle sei; por isso avalio o bom e o mau das nossas acções na vida, á luz do dever e da consciencia. Não foi o que me ensinou?
Mr. Richard aceitou com um sorriso a correcção filial.
—Pois foi á luz do dever e da consciencia que eu procedi.
—Julguei que, depois do acontecido, o dever lhe aconselharia outra cousa.
—Algum absurdo? Loucuras?... Phantasias? És mulher a final, Jenny!
Jenny aproximou-se do pae, que viera sentar-se em uma cadeira junto do fogão; apoiou-se-lhe ao hombro e, a meia voz, disse-lhe como a brincar:
—Desejava agora, por um momento só, deixar de ser sua filha, senhor.
—Para quê?
—Para me atrever a fazer-lhe uma pergunta.
—Auctoriso-te a fazel-a, Jenny—respondeu o inglez, completamente desarmado contra a diplomacia da filha.
—Auctorisa? Eu sei?!
—Exijo até que a faças.
—Sou mulher a final! disse o pae... Póde ser... E como mulher tenho talvez o meu fraco pelo sentimento—preconceitos do coração... Não é isto?... Mas... era a pergunta que eu, se não fosse sua filha, lhe quereria fazer: mas esse seu espirito, recto, esclarecido e forte... julgará sem preconceitos d'esta vez?
—Que preconceitos queres que sejam os meus?—perguntou Mr. Richard, desviando os olhos.
—Quem sabe lá? Cecilia é filha de Manoel Quentino, um homem honrado, mas... subalterno; fiel, mas pobre; um caracter generoso, mas... educado na escola da obediencia; capaz de se sacrificar por nós, mas... vivendo dos ordenados da nossa casa.
—Douda! Então não me fazes a justiça de acreditar que a força da minha razão seria bastante para vencer esses preconceitos de educação... quando os tivesse?—disse Mr. Richard, porém de modo, que estava justificando Jenny.
—Assim o espero; por isso é que...
—Não—interrompeu Mr. Ricnard—não é isso o que me faz hesitar. O motivo é diverso. É porque não creio na duração dos sentimentos de Carlos; é porque lhe conheço o caracter leviano, e hesito por essa razão em fazel-o chefe de uma familia, que elle não saberia guiar e que tornaria desgraçada.
—Não é justo para com seu filho, senhor. Elle herdou os dotes do seu coração. É leal e generoso. E será salval-o, fazel-o entrar pelo coração no caminho do dever.
—Dizes-te amiga de Cecilia, Jenny, e não hesitas em arriscar-lhe assim imprudentemente a felicidade?
Jenny demorou algum tempo sobre o pae um olhar quasi malicioso.
—Eu, pelo menos—disse ella por fim—tenho uma garantia: é o coração de Charles, que está do meu partido; mas ainda ha bem pouco tempo que o pae concebia outra alliança para meu irmão, á qual até este pequeno auspicio faltava. Que fez da confiança, que então depunha em seu filho, ao querer fazel-o chefe de uma familia? Por que não hesitava então, e hesita agora? Ser-lhe-hia indifferente a felicidade de Alice Smithfield, da filha do seu amigo? De certo que não; mas é que sabia que Charles, promettendo fazel-a feliz, havia de ser fiel a essa promessa. E agora...
Mr. Richard não atinou com a resposta que désse a este argumento da filha.
Ergueu-se e voltou a passeiar.
D'ahi a instantes parou, e dirigindo-se a Jenay, disse:
—E demais, se, depois do que succedeu diante de testimunhas, eu fosse seguir o teu conselho, não soffreria a reputação d'essa pequena com isso? O mundo não veria n'este acto, que póde ser... que creio mesmo que seja, muito justo, mas que é preciso confessar tambem que não é natural, não veria n'esse acto a reparação de offensa maior?
Jenny sentiu-se alentada ao ver a nova face, que o pae dava á discussão.
—E a partida repentina e inesperada de Charles, depois dos factos que succederam, não dará logar a vozes menos favoraveis ainda para ella, para elle e... para nós todos?
Mr. Whitestone não respondeu.
—Eu conheço pouco o mundo, é verdade;—proseguiu a filha—mas parece-me que, em todo o caso, elle fallará; o que se tem a fazer é dar ás nossas acções a feição mais natural, para que menos curiosidade lhe excitem. Conduzamol-as de modo a deixar-lhe entrever os motivos, que nos convier que elle supponha; mas sem mostrarmos o proposito de revelar-lh'os, para que não desconfie da intenção e procure então os verdadeiros.
Mr. Richard olhava para a filha com um sorriso, já muito desanuviado.
—Bravo! que machiavelismo! Não te sabia tão diplomata. Vamos á applicação ao caso presente.
Jenny sorria tambem, mas de intima satisfação, porque se presentia victoriosa.
—Trata-se de diminuir pouco a pouco a estranheza do acto, que o faz hesitar; preparar as opiniões para aceital-o como natural.
—E como? Que queres que eu faça?
—O que lhe dictar o coração. Não é a mim que compete aconselhal-o.
Mr. Whitestone baixou a cabeça, com ar de reflexão.
Jenny principiou a dizer, como se fallasse para si propria, mas de maneira que fosse escutada por o pae:
—O mundo é assim. Dá-se-lhe a verdadeira explicação dos factos, raras vezes a acredita. Forja-se outra ás vezes menos natural e plausivel, quasi sempre a prefere. Principalmente se a verdadeira é generosa e nobre, e a falsa interesseira e mesquinha. A alliança de Charles com a filha de Manoel Quentino, tendo por explicação sómente o affecto dos dois, seria estranha e incomprehensivel; mas se Manoel Quentino, em vez de ser guarda-livros, fosse um socio da casa...
Mr. Richard, ouvindo estas palavras, desviou para a filha o olhar. Viu-a distrahida, examinando, com apparencias de attenção, um pesa-papeis de crystal.
Mr. Richard teve uma lembrança.
Aproximou-se da secretária, e, tomando uma folha de papel, escreveu n'ella algumas linhas.
Jenny sorria, como se estivesse de longe lendo tudo o que o pae se pozera a escrever.
No fim o inglez releu com attenção o que havia escripto; dobrou cuidadosamente o papel e entregando-o á filha, disse com rapidez, como se receiasse que a resolução, que abraçára, lhe fugisse ainda:
—Ahi tens. Entrega isso a Manoel Quentino. É uma memoria dos teus vinte e dois annos.
Jenny, que astuciosamente deixára ao pae o prazer e a gloria da boa ideia, cuja insinuação viera d'ella, suspeitou logo qual a natureza do escripto e disse com effusão:
—Agora sim! Torno a reconhecer o seu coração generoso.
—Então já sabes o que isso contém?
—Adivinho-o sem o ler. Attendendo aos antigos serviços prestados por Manoel Quentino á casa Whitestone, meu pae associa-o de hoje em diante ao negocio e á sua firma. Não é verdade?
—Quasi por formaes palavras—respondeu Mr. Richard, passando amigavelmente a mão por as faces da filha.
—Que mais ordena, miss Jenny?—perguntou jovialmente o inglez.
—Peço mais uma cousa.
—Dize.
—Peço para não fazer desde já uso d'este papel.
—Então?
—Este facto, que serve para preparar a opinião publica para o outro... não é verdade?
—Eu não prometti ainda...
—Este facto—continuou Jenny, fingindo que não ouvia a resposta—causaria ainda estranheza, se não fosse preparado tambem com antecedencias.
—Como?
—Recordo-me de que não ha muitos dias o pae me fallou de um negocio commercial, em que esteve para tomar parte a casa Whitestone, o que não fez por instancias de Manoel Quentino, instancias que a salvaram de um abalo, talvez fatal para ella. Não foi assim?
—Foi. O homem mostrou d'essa vez um tino commercial...
—A quantas pessoas fallou já d'esse serviço do seu guarda-livros?
—Que eu saiba a nenhuma. Certas tentativas, por felicidade frustradas, não é muito conveniente revelal-as, pois podem abalar a confiança na prudencia da casa...
—Pois, se me permitte dar-lhe um conselho, deixe que se faça d'esta vez excepção á regra. Durante esta semana, eu se estivesse no seu logar, fallaria a toda a gente n'aquillo. O nome de Manoel Quentino havia de andar, n'estes oito dias, nos ouvidos de todos. Toda a Praça havia de ficar sciente dos seus prestantes serviços... e depois que haveria que estranhar quando se enviasse ao pae de Cecilia este documento, em cujas dobras vae a felicidade de duas pessoas?
—E julgas tu que a gratidão é facto mais natural para o mundo, do que a iniciativa no beneficio? Se subtrahires da explicação o elemento «interesse», o facto será incomprehensivel.
—N'esse caso é deixar ao mesmo tempo suspeitar que Manoel Quentino tem conseguido accumular riquezas, e que da nossa parte...
Mr. Richard sorriu.
—Mais aceitavel será o facto á opinião, ainda que... É uma trabalhosa semana a que me destinas! Não recuso porém a tarefa; veremos o que é possivel fazer. Mas o meu egoismo não me consente ver-te assim desoccupada, emquanto eu trabalho.
—Então em que tenho a occupar-me?
—Na justificação de teu irmão. O meu assentimento aos teus ultimos projectos, Jenny, fica dependente d'essa condição. Emquanto não me convenceres de que foi nobre o motivo que levou Carlos a vender aquelle relogio, não esperes de mim...
—Mas Charles insiste em occultar-m'o.
—Pois fosse a empreza facil, que não a confiaria de ti. Não julgues isto capricho da minha parte. Tu bem deves comprehender a importancia d'essa justificação. A fé não basta; é mister provas. Os teus planos baseiam-se na excessiva confiança em teu irmão; é fraca base para a felicidade da pessoa, de quem advogas a causa.
—Procurarei obter provas.
—Então dentro de oito dias.
—Dentro de oito dias.
E o pae e a filha separaram-se do melhor accôrdo.
Os preconceitos de Mr. Richard não haviam absolutamente serenado; mas Jenny tinha conseguido, por assim dizer, destacal-os do intimo, em que elles viviam dominando, e apresental-os á vista do pae que, envergonhando-se d'elles, os renegou.
Mr. Richard estimaria ainda encontrar outra solução á crise presente; mas por causa alguma consentiria já em se mostrar sob o imperio dos seus preconceitos clandestinos.