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Uma Lágrima de Mulher/III/XIV

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A alcova de Rosalina rescendia a amor. O amor tem o seu perfume especial que se aspira pelo coração; esse perfume, à semelhança dos do Oriente, quando não mata, embriaga, mas sempre encanta.

A bela italiana, perseguida pelo calor da noite, refugiara-se sozinha no seu ninho, como a lebre que foge ao caçador, e arremessando negligentemente as roupas para o chão, envolvera-se nas cambraias do leito, rolando de um para outro lado, como uma serpente.

Extenuada, caíra a moça nessa prostação mofina que precede o sono, e só de vez em quando dava acordo de si para refrigerar-se com um gole de orchata, que à cabeceira do leito estava preparada num copo de cristal. Isto feito, recaía no mesmo entorpecimento, com as pálpebras pesadas e os olhos descerrados pelo calor; mais parecia uma bela produção artística do que uma realidade. Quando quieta, difícil seria de dizer o que mais era, se uma estátua animada, se uma mulher de mármore.

Súbito, assomou na janela uma cabeça, depois um busto, e finalmente um homem, vestido de blusa, pulou na sala com a ligeireza de um gato.

O barulho fez Rosalina voltar-se e soltar um grito que queria dizer:

— Miguel!...

O recém-chegado parou, levando aos lábios o dedo em sinal de silêncio; ela respondeu a esse sinal com um outro que o intimava a aproximar-se.

O artista obedeceu, encaminhando-se sombriamente para o leito.

— És livre agora?!... disse, caindo de joelhos aos pés.

A moça não respondeu e sorriu.

— Fala, meu anjo!... não percamos tempo, dize-me se és já livre os se...

— Ouve! interrompeu Rosalina, fingindo dificuldade no falar. Ouve. Desde que morreu meu pai, uma fraqueza doentia me tem de tal modo perseguido, que me suponho irremediavelmente perdida; posso dizer que tenho vivido neste leito, donde não conto levantar-me com vida.

— Uma viagem te restabelecerá totalmente, disse Miguel inquieto.

— Ah! suspirou Rosalina. Uma viagem!... É porque não sabes, meu bom amigo, que, com a morte de meu pai, ficamos na extrema miséria, que ele, coitado! passou uma vida de opulência, superior ao que possuía, e morreu de tal modo endividado, que não nos será fácil a nós salvar honradamente seu nome, e a mim continuar a viver sem a difamante proteção de algum estranho! Bem fiz por salvar a situação, e confesso que me supunha mais forte e generosa, de que realmente sou!

E Rosalina começou a tossir, oprimindo o peito com as mãos.

— E eu, continuou a suposta doente, com a voz cada vez mais trêmula, fazia-me forte, aceitando a proposta salvadora e tremenda de um velho rico e doente, que se propunha resgatar o nome de meu pai, casando comigo. Era um futuro triste, porém, honesto. Cedi, Miguel, cheia de esperança e resignação, porém depois de medir bem o sacrifício não tive ânimo para arrostá-lo. Urgia contudo tomar uma deliberação qualquer; o tempo passava e o dia do leilão da casa e dos móveis não tarda a anunciar-se. O momento fatal chegou!... Amanhã tenho de entregar tudo, tudo! e serei...

— Então! interrompeu Miguel, em cujo olhar acabava de nascer o contentamento e a esperança, havias te esquecido de mim? Ingrata! Não te quis ao menos parecer que a tua riqueza era um obstáculo sério à minha ventura! Oh! como sou feliz em ver-te novamente pobre! Iremos juntos para Lipari, onde serás minha esposa, e então seremos felizes, muito felizes! Quanto é bom ser pobre! Olha! disse ele chegando-se carinhosamente para ela e sorrindo, com os modos satisfeitos, de quem se preza de saber arranjar bem as coisas. Vendido tudo por cá, todas estas grandezas e todo este luxo, em pouco poderá ficar a dívida; por esse tempo já estarás em Lipari, caso contigo e serei legalmente o único devedor do que não se puder pagar com o resultado da venda; e daí, com o meu trabalho e principalmente com a minha vontade, crê, conseguiremos ir pouco a pouco resgatando o nome de teu pai. Oh! como seremos felizes!... Mas como te houveste tão injusta em não te lembrares de mim!... Em Lipari, levantaremos novamente uma casa, sob as oliveiras que te viram nascer, minha Rosalina, e sozinhos, ao som das brisas que te embalaram em pequenina, e do mar que te ama ainda, e dos cantos dos passarinhos que voltarão ao nosso teto hospitaleiro, viveremos em companhia da boa Ângela, que te estremece como mãe. Sabes mais!... Castor ainda vive!... disse o moço satisfeitíssimo, batendo palmas, ainda vive! achei-o na noite o incêndio e conservo-o comigo; é um bom e generoso companheiro! Oh! ele também virá porque, não sabes? foi ele que primeiro descobriu pelo faro que tu moravas aqui. Coitado! como te cobrirá de festas quando te vir! Oh! mas é preciso que te decidas a partir! Vamos! não é assim? Dize!... Estás pobre?... Tanto melhor! Ninguém se lembrará de te perseguir!... Partamos, meu amor!

E Miguel, satisfeito como uma criança, beijava as mãos, os pés, o cabelo e a fronte de Rosalina. Parecia louco

Ela observava-o com um sorriso de afetada desesperança, que mascarava enorme surpresa; parecia-lhe aquilo um sonho; nunca esperava tanto amor de Miguel; sentia-se conscientemente arrependida de se ter fingido pobre, antes falasse com franqueza, porque a situação perigava progressivamente.

— Diabo! dizia consigo. Ele adora-me apesar de tudo! Que volta darei a esta cena tão difícil e ridícula?

E assim pensando, fingia fartar-se em contemplar silenciosa o amado, enquanto meditava astuciosamente outro meio mais seguro de fugir-lhe; porém, fundo e estranho ressentimento principiava a minguar-lhe o ânimo, em presença daquela vontade de ferro, daquela firmeza de afeto, daquele amor indelével que tudo cometia indiferente, contanto que o deixassem existir pela mulher, que o próprio coração escolheu para ídolo.

Neste estado e maquinando ainda uma engenhosa saída, fitou Rosalina os olhos abrasados e felizes de Miguel, e, apartando deles os próprios, passeava-os, aparentemente enfraquecidos, pelo quarto, à procura da idéia; quando o acaso deparou-lhe o copo de orchata, sobre o velador à cabeceira do leito.

— Ah! fez ela.

— Que tens!... acudiu Miguel.

— Nada, meu amigo, sinto-me mal!...

— Tudo isso, volveu Miguel, beijando-lhe as mãos, desaparecerá com a nossa futura felicidade! Reanima-te e ordena o que queres que te faça! Aqui tens um escravo! vamos, meu amor... fala! como se eu fosse teu pai, minha filhinha!...

— Já não tenho vontade nem desejos... meu bom amigo, respondeu ela, retorcendo os olhos, porque não posso contar com a existência...

— Rosalina!... disse Miguel; não te deixes levar por essas idéias tão más!... Confia em mim e espera de Deus! Não desanimes, que tens muita vida e a nossa ilha tem muitas flores que te esperam... Havemos de correr juntos pela primavera os caminhos sombreados e ervecidos; subiremos de mãos dadas as encostas dos montes e os píncaros dos rochedos; havemos de...

Rosalina parecia já não escutar; torcia-se na cama, a ranger os dentes uns contra os outros, e retorcendo os olhos derivava olhares desencontrados.

— Rosalina! Rosalina!... Que tens!... Meu Deus! Acudam! exclamava Miguel.

— Silêncio! disse ela, tapando-lhe brandamente a boca com os dedos cor-de-rosa. Não faças bulha e ouve, que é necessário falar. Ainda há pouco me vedaste concluir o que te contava; ouve o resto. Dizia-te eu, que era necessário abraçar qualquer partido, porque o tempo urgia e o dia da entrega se aproximava... Pois bem, meu bom Miguel, não tive ânimo de me resolver a casar com o velho rico e...

— E... disse Miguel trêmulo de impaciência.

— Chegou a véspera do dia maldito!... Amanhã os credores tomam conta de tudo!...

— Não importa!

— Mas é... acrescentou chorando Rosalina, que eu não resisti a tamanha provação! Fui covarde!... confesso! mas eu sou mulher, perdoa!...

— Acaba!...

— Vês este copo? continuou ela, torcendo-se toda e indicando a cabeceira do leito.

— Céus!...

— Ainda há pouco estava cheio de... veneno... eu... E reclinando-se nos braços de Miguel acrescentava, espatifando as palavras: Não tenho, Miguel, de vida... mais que alguns... instantes...

Miguel quis levantar-se para chamar alguém.

— Não chames pessoa alguma!... disse ela agarrando-o com força. Isso só alcançaria fazer-me morrer desacreditada. Foi Deus que te mandou para me ajudares a morrer! Foi um bom anjo que te conduziu! Eu já contava contigo! Oh! não morria sem tu chegares! Como Deus é bom! obedece-o depois... retira-te...

Miguel forcejava contudo por erguer-se, mas desfaleciam-lhe as forças; vertigem doida acometeu-lhe de pronto a cabeça. Quis gritar, a língua apegara-se-lhe; quis soluçar, o pranto enovelou-se na garganta ofegante, trêmulo, com os olhos injetados de sangue, ria-se nervosamente e chorava ao mesmo tempo; as pernas negavam-lhe o já apoio, cambaleou; tentou ainda uma vez erguer-se, as pernas vergaram-se de todo e ele caiu regaço de Rosalina; queimava o olhar, fumegava o hálito! a sua respiração era um soprar doido de labaredas!

— Não chames por ninguém! disse-lhe ela com dificuldade, e carinhosamente o tomou entre os braços; depois, inclinando frouxamente a cabeça para trás, fechou devagarinho as pálpebras e murmurou sons inarticulados e trêmulos.

— Rosalina! Rosalina! vozeava o moço arrastando a língua entre soluços.

Rosalina pendeu de todo a cabeça para trás, deixou cair sem ação o braço fora do leito; e um suspiro doloroso partiu-lhe dos lábios. Ficou extática.

Miguel tinha a cabeça no colo da desfalecida e permanecia imóvel como ela; lembrando ambos tão unidos, tão mortos e tão pálidos, Pigmalião e a sua amante de mármore.

Assim decorreu uma hora de pedra: fria, pesada e estúpida.



Rosalina, por fim, impacientou-se e sorrateiramente levantando a cabeça e desembaraçando-se dos abundantes cabelos pretos, disse quase imperceptívelmente:

— Miguel... não partes?...

Miguel não respondeu.

— Não partes? Repetiu Rosalina, levantando um pouco mais a voz.

Ainda o mesmo silêncio.

Então, como a noiva, que vai, entre desejosa e envergonhada, procurar novas carícias do amado, ergueu ela com as mãos diáfanas a cabeça mole que lhe repousara no colo e encarou-a .

Grito de terror e remorso rompeu-lhe inteiriço das entranhas.

Miguel estava morto. Então, uma lágrima cristalina e santa, desprendendo-se do coração, rolou pura pelas faces da mulher. Chorou pela primeira vez!

Aquela lágrima valia o poema inteiro da sua existência! era o transunto do seu arrependimento! era o perdão dos seus crimes! Chorou! Chorou uma lágrima de mulher, e por isso que vinha de Deus!

Rosalina amou pela primeira vez - aquele cadáver.