Uma Tragédia no Amazonas/VI
Em todo este procedimento gastaram-se algumas semanas, durante as quais, apesar de não inquietados, estiveram os moradores da povoação ansiosos pela chegada de novos guardas.
Em um belo dia houve desusado movimento nela. Todos os seus habitantes corriam a assistir ao desembarque de sete soldados.
Espíritos singelos! O que em centros de civilização passa desapercebido, em lugares como S. João do Príncipe é um fato digno de ser visto e apreciado!
Não se ria o leitor, pois que não se ri quando uma criança diz admirável o que mais não é que muito natural.
Esses rústicos são as crianças da civilização, os neófitos do progresso!
Em lugares como esse, onde o clarão vivificante do adiantamento não chegou ainda, tudo quase que é selvagem.
Se há virtude, ela se eleva fulgurante de corações limpos de afetação, se crime, chamejante ele se ergue, rodeado dos vícios em toda a sua hedionda naturalidade.
Prossigamos.
Desembarcadas as praças, apresentaram-se ao subdelegado que tomando cinco para sua casa, como ponto mais ameaçado, deixou duas no povoado.
Foram dispensados, então, os paraenses, e os policiais entraram a render-se em quartos de ronda diurna e noturna, na residência de Eustáquio. Escusado é dizer que os atentados cessaram.
Meses passados, recebeu o marido de Branca a demissão de seu cargo. Não trataremos dela, notaremos unicamente que o novo subdelegado, de incapacidade reconhecida, sabendo do que se passara em S. João do Príncipe, afastou-se, indo algures buscar morada.
Continuavam contudo os soldados em casa de Eustáquio, por quem já sentiam profunda amizade.
Corria o tempo. Um ano, dois anos abismaram-se nos escuros do passado e aurora feliz despontava para a família de Branca.
Os perseguidores não davam provas de existência.
Voltara o sossego.
Nenhum fato mencionável se dera nesses dois anos, se não considerarmos a partida de cinco soldados para Manaus e a entrada em S. João do Príncipe de seis espanhóis, que haviam transposto a fronteira da república do Equador.
No fim de poucos dias estes se ausentaram, sendo totalmente esquecidos.
Onze anos contava Rosalina, ostentando já incomparável beleza.
A beleza da orfãzinha, moldurada de uma graça inefável, que só dá a inocência, realizava o ide al do "anjo".
Sorrindo a todo instante cercava-se o rosto da menina de uma atmosfera de prazer que arredava para longe a tristeza.
Suas risadas e seus ditos infantis ecoavam pela casa e pelo roseiral, transpirando regozijo eterno.
É essa beleza angélica que certas mulheres afetadas pretendem possuir.
Símplices! levianas! Só conseguem conquistar do vulgo o título de "delambidas".
É também a que todo o poeta empresta ao seu objeto idolatrado.
Mas os poetas!... Cantam a lua antes de vê-la através das lentes telescópicas.
Como o astrônomo deixa escapar um riso de mofa, ao ler uma poesia à lua de algum enlevado cantor, o conhecedor profundo desse bando, denominado pelos homens das nuvens, "belo sexo", e mais prosaicamente mulher, não pode reter o escárnio, contemplando um hino em que um amante em delírio exalta os grandes dotes da sua bela.
Não devemos enfastiar o leitor com digressões desta ordem.
Reentremos na narração.
Tudo florescia nas margens do afluente do Amazonas. As plantações do ex-subdelegado renasciam virentes, coroavam-se as roseiras de purpúreas flores e do curral partiam balidos de ovelhas, intercalando o mugir majestoso e cheio das luzidas vacas, que olvidavam as míseras companheiras desumanamente esfaqueadas dois anos atrás.
Para melhor e em menos palavras traduzir a prosperidade que reinava, basta dizer que Eustáquio, o qual já nutrira fortes desejos de deixar a província do Amazonas, se resolvera a permanecer em sua residência.
Resolução funesta.
As belas noites sucediam-se aos dias deliciosos, embora a temperatura, elevada exigisse freqüentes banhos no líquido refrigerante do Iapurá.
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Pusera-se a lua, escondendo segredos além das colinas, depois de oferecer ao olhos do mundo um arco delgado de luz.
Densas trevas envolveram os bosques em que se aninha S. João do Príncipe, realçando as estrelas que rutilavam no céu.
Flutuando na massa aquosa do Iapurá, poderia ver um objeto pouco alongado quem então passasse pela picada.
O objeto vogava mansamente.
Era uma canoa.
Seguiu até os terrenos do protetor de Rosalina e movendo-se parecia querer se ocultar sob as muralhas de rocha da margem.
Logo que parou, uma sombra de baixa estatura, saltou em terra, deu alguns passos, entrou no roseiral de Eustáquio, prestou ouvidos à porta e debaixo das janelas e assentada sobre a cerca levou tranqüilamente escutando uma hora inteira.
— Nada há de novo, disse enfim.
Levantou-se, e entrando na canoa voltou para o povoado.
Quem era essa sombra em breve saberá o leitor.