Uma Tragédia no Amazonas/VII
O sossego voltando fizera o novo subdelegado murmurar, contra, dizia ele, o abuso que cometia Eustáquio conservando inutilmente dois guardas, em detrimento do interesse público.
Menos que isso era suficiente para dirigir o comportamento do esposo de Branca, que apenas ouviu o que se tornara já voz geral deu ordem aos policiais para se retirarem.
A necessidade de vigilância não se fez sentir imediatamente e quinze dias se foram sem a menor quebra de tranqüilidade.
Branca e sua pequena companheira, confiadas no desaparecimento absoluto dos temíveis celerados, começaram a dar, sozinhas, demorados passeios pela estrada e pela campina, sobre cujas ondas de verde-claro adejavam lindas borboletas.
Pela manhã e à tardinha tinham sempre lugar estes passeios, que foram enfim bruscamente interrompidos por um gravíssimo risco e que milagrosamente escaparam as passeantes.
Um dia ao romper d'alva a moça e a menina, depois de deliciosos tragos de café, seguiram vagarosamente e distraídas para S. João do Príncipe.
Aspiravam com prazer as fragrâncias matinais exaladas das moutas de baunilha e da relva delicada, ao passo que caminhavam.
Finalmente, meio fatigadas assentaram-se sobre um tronco carcomido e tombado junto à estrada.
Os primeiros raios do dia rompiam indiscretamente a folhagem, projetando no chão avermelhado inextrincáveis claros e escuros que faziam os ramos.
Esqueciam-se elas das horas e sorriam internamente ouvindo as melodias tremuladas pelas aves.
Tinham-se levantado e por entre os troncos das seringueiras acompanharam os movimentos de um enorme jacaré, vendo-o mergulhar ao longe, no meio do rio.
Nesse instante perceberam, atrás de si, um barulho nos espessos matagais que encobrem as possantes raízes dos gigantes da floresta.
O seu primeiro sentimento foi de curiosidade, mas logo tremeram de terror.
Acabava de saltar para a picada uma figura... Mas que figura!
Um negro horrendo, cujas feições angulosas e agudas emprestaria ao demônio a mais tenebrosa imaginação de pintor.
Empunhava medonho facão áspero de ferrugem e nu da cintura para cima, vestia umas sórdidas calças que, rasgadas pelo uso, entremostravam nervudos joelhos.
— Olé! rugiu prolongadamente a fera, tão cedo por aqui!
Seguiu as palavras de um riso satânico capaz de estremecer de pavor o mais corajoso sertanejo.
Rosalina sentiu o medo invadir-lhe a alma, Branca tremia de terror. Quiseram gritar, pedir socorro mas o susto o impediu.
As pobres só esperavam a morte, encarando o algoz que lhes sorria cruel.
Nos olhares das vítimas lia-se uma súplica, nos do algoz um escárnio.
O negro como o tigre não quis sacrificar imediatamente a presa quis gozar das suas antecipadas torturas.
A crueldade encontra, não sabemos que hediondo prazer nas angústias do paciente.
O bruto, com o alfange já erguido, dirigiu-se vagaroso para Branca, e sua pequena companheira. Parou um pouco, contemplou-as com ar de mofa e avançou definitivamente.
O arvoredo copado estremeceu no alto, de indignação talvez, no momento em que o agressor suspendia a arma assassina.
O facão desceu, mas antes de tocar o alvo novo tremor abalou os ramos e uma lâmina, cintilando aos raios matutinos do sol, desprendeu-se das folhas, vindo se encravar no crânio do perverso negro e estirou-o de bruços.
Branca e Rosalina estavam salvas!
Apenas viram cair o negro a moça e a menina, sem pensar na procura do seu salvador, fugiram para casa voando que não correndo.
Já alto estava o sol e um dia esplêndido iluminava as matas do Amazonas.
— Que houve?! exclamou Eustáquio, avistando sua mulher e Rosalina, que corriam para ele, pálidas e exprimindo terror nos semblantes alterados.
— Que tem você, Branca?
— E tu Rosalina?
A jovem profundamente impressionada, não pôde responder e caiu em uma cadeira, meio desmaiada, mas a orfãzinha, ao mesmo tempo que acudia as necessidades da sua protetora, abatida pelo susto, narrou circunstanciadamente a Eustáquio o seu perigo e a imprevista salvação.
— Realmente é ameaçador o aspecto que tomam de novo as cousas, disse ele.
"Vejo agora que a tranqüilidade dos nossos últimos tempos foi uma aparência enganadora e um laço que nos armaram que se desvela hoje.
"Venham os miseráveis que não nos encontrarão de braços cruzados!
"Somos perseguidos porém o que é notável é que possuímos um defensor."
— Quem, tão a propósito, estaria colocado nos ramos para vos salvar, a ti e a Branca? E...
— Rosalina, não percebeste cousa alguma nos galhos?
— Não, senhor, nada vi senão reluzir a faca que prostou o malvado, cujo cadáver deve jazer na estrada.
— Houve um salvador intencionado, é certo, acrescentou o ex-subdelegado, mas não consigo adivinhar quem seja o amigo que vela sobre nós.
Ditas estas palavras, Eustáquio calou-se, fixou a vista sobre um ponto do soalho e levou um momento como que inquirindo a memória.
— Que homem, dizia ele, terá interesse em defender-me com sacrifício próprio? Será o padre Jorge? Isto é tolice... um pobre velho.
"É verdade que não deixo de ser estimado na povoação porém não vejo quem, a não ser o meu excelente padre, leve essa estima até a dedicação..."
Na cozinha trabalhava Ruperto, esfregando umas facas, e de sobre o fogão subiam filetes de odorífero fumo deixado escapar pelas janelas mal fechadas, onde fervia ruidosamente o almoço.
O escravo, ao chegar o senhor, levantou a cabeça, continuando diligentemente o trabalho.
— Vem daí, disse-lhe Eustáquio, e segue para S. João do Príncipe. Lá dirás ao padre Jorge que me envie os paraenses que já aqui estiveram, há talvez dois anos. Convém que tomes o cavalo para maior segurança e presteza.
Logo em seguida um robusto animal relinchou no roseiral e, montado pelo escravo, internou-se pela picada em trote rápido.
Depois de sepultado o cadáver do que sucumbira ao golpe de um anjo tutelar, os engajados reentraram em casa do protetor de Rosalina, e este, observando que os atentados iam tendo já lugar em pleno dia deu começo à construção de uma sólida muralha de madeira que devia limitar as suas terras, não só do lado do campo e da montanha como do da mata e do Iapurá.
Dentro de três dias os valentes filhos do Pará, de machado em punho, abateram troncos, fincaram-nos circularmente, levantando em volta da casa uma trincheira de seis pés de altura erriçada de pontas agudas, previamente aparadas nos postes, que podia desafiar um bando de malfeitores.
— Creio, disse o seu esposo a Branca, que, metidos neste baluarte, estamos perfeitamente a salvo.
— Não o creio eu, replicou com ar incrédulo a moça, e só me acharei segura quando longe daqui. Tanto, que sinto muito não estar neste momento em Manaus ou em Belém.
— Se é do seu desejo, Branca, falou tristemente Eustáquio, como quem está contrariado na sua vontade, podemos desde hoje nos preparar para a retirada, mas ou me engano inteiramente, ou não corremos mais risco algum.
— Enfim..., disse Branca, cortando o diálogo. Esse "enfim" exprimia muita cousa. Era a resignação passiva da jovem à persistência do marido e ao mesmo tempo a passagem da responsabilidade de qualquer desgraça para cima deEustáquio.