Uma Tragédia no Amazonas/XIII
A manhã estava triste. O sol empanado subia do nascente, clareando a paisagem com uns raios tímidos atirados de vez em quando por entre as nuvens que voavam, ora rasgadas em estreitas fitas, ora distendidas em amplos lençóis. Por sobre os píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio. Somente depois de longos intervalos ouvia-se o gemer da floresta açoutada por um golpe passageiro de vento, ou grito repetido de alguma ave perdida no mato.
Triste como a manhã, muda como a paisagem estava a morada de Eustáquio. Por cima dela pairava alguma cousa de sinistro.
Em torno da habitação, Ruperto e os engajados permaneciam firmes nos seus postos. Os espanhóis disfarçados trocavam de tempos a tempos gestos suspeitos, que aos seus companheiros incautos passavam desapercebidos.
Na sala principal via-se o esposo de Branca. Dormitava sobre um sofá. As fadigas da véspera haviam-no acabrunhado. Ao seu lado via-se o padre Jorge. Recostado, com a cabeça pendida para trás, o sacerdote fitava um ponto do teto, onde via redemoinhando o turbilhão das sombras criadas pelo seu meditar. Na alcova do fundo achavam-se Branca e Rosalina. A jovem, debruçada sobre a cabeceira do berço do filhinho, contemplava com amor a criança adormecida, cujo bafejo tépido vinha-lhe até o rosto. Rosalina, com a cabeça descansada sobre o ombro de Branca, olhava distraidamente para as roseiras. Através da vidraça, os arbustos mostravam-lhe algumas belas flores, que um último chuveiro deixara aljofaradas de diamantinas gotas...
As horas corriam, cousa alguma, porém, indicava aproximação de inimigos...
Eustáquio foi o primeiro que se moveu. Ergueu-se do lugar que ocupava e aproximou-se de uma janela. Olhou por cima da paliçada para a montanha e depois, voltando-se para o padre Jorge, disse:
— Parece-me que os meus inimigos adivinharam que me preparei para recebê-los... Estão se demorando tanto... Teriam eles mudado de resolução?
O padre não deu resposta, mas, fazendo um movimento como quem é bruscamente despertado, endireitou-se e por sua vez falou:
— Eustáquio, nunca me disseste quem são os indivíduos que te perseguem há tanto tempo... Porventura não os conheces?
— É verdade... porque não os conhecia, agora porém...
— Ouvi-me.
"Como bem vos lembrais, quando eu ainda era subdelegado, uma escrava trouxe ao meu conhecimento a notícia de um crime horroroso... aqueles assassinatos..."
O padre Jorge abaixou a cabeça mostrando que sabia a que fato se referira o amigo.
— Os criminosos eram sete negros, prosseguiu Eustáquio. Eu os prendi, porém os tratantes se evadiram.
"Então teve princípio uma cruel perseguição contra mim, e Branca, que pouco sabia das minhas ocupações de subdelegado, mostrou-se receosa de uma correria de índios. Eu, porém, lembrei-me logo dos negros evadidos; contudo, não acreditando que os quilombolas tivessem motivos para me odiar, embora eu houvesse usado de violência para prendê-los, participei dos receios de Branca. O tempo veio mostrar que eram infundadas as nossas apreensões, e ficamos crentes de que éramos perseguidos por algum desses velhacos que não amam muito a polícia zelosa.
"Estava eu, pois, quase convencido de que os negros fugidos não eram os meus perseguidores, quando, depois do assassinato de um dos policiais que me serviam, deparei com um cadáver que pareceu-me ser de um dos tais negros. As minhas primitivas suspeitas renasceram; mas, eu, incerto ainda, guardei-as comigo... Depois daqueles doas anos...
— Sim, completou o padre Jorge, daqueles dous anos de sossego.
— Os meus inimigos, prosseguiu o marido de Branca, se manifestaram de novo. Há menos de três semanas, Branca e Rosalina... e ante-ontem esta menina pela segunda vez...
— Eu sei...
— Bem, com os meus inimigos apareceu ultimamente um devotado defensor da minha causa e esse defensor, quando, na picada, salvou a Branca e a Rosalina, matou um negro, que eu não vi..., mas quem era possível que ele fosse?... Mais um fato a justificar as minhas desconfianças. Entretanto... ante-ontem o golpe do meu protetor não abateu um negro... mas um branco.
"Fiquei nadando em um mar de dúvidas. Senti o meu espírito se revoltar. Que culpa pretendiam fazer-me expiar? Quem eram os infames que me perseguiam? Tive a idéia de ir procurá-los. O aviso, de que vos falei hoje, me decidiu... eu partir e... tenho agora a solução da questão.
"Vós me perguntastes se eu não os conhecia. Conheço-os, são aqueles perversos que escaparam das mãos da polícia, há pouco mais de dous anos, e outros que a eles se uniram pelo interesse único que pode ligar dous bandos de salteadores... São uns miseráveis! Uns miseráveis, que, vós o sabeis, têm intenção de roubar-me, assassinar-nos a mim e a Branca e de..."
O padre Jorge, tapando com os dedos a boca do amigo, não o deixou acabar. Rosalina estava perto.
Alguns segundos de silêncio seguiram-se às últimas palavras de Eustáquio. Depois o padre Jorge, inclinando a cabeça para o peito, recaiu nas suas meditações.
— Tudo, tudo, disse então Eustáquio, suspirando, tudo se esclarece, exceto o mistério que encobre o meu protetor!...
O padre Jorge, com a cabeça caída, olhou para o amigo por dos óculos, e um sorriso expressivo correu-lhe pelo rosto.
Eustáquio, que não arredara os olhos do sacerdote, exclamou:
— Padre Jorge, vós conheceis!... Dizei-me quem é por favor!... Quem é esse ente misterioso que me tem protegido com tanto desinteresse. Debalde procuro na minha memória alguma cousa... Uma boa ação, que me houvesse granjeado o merecimento de uma dedicação como a que ele tem testemunhado...
Nessa ocasião Branca e Rosalina saíam da alcova abraçadas.
O padre Jorge, indicando a menina, disse:
— Estás vendo aquela criança?... Deus não esquece os atos de caridade.
— Explicai-vos, disse Eustáquio. Rosalina... A que aludis?... Eu amparei-a, mas...
— Deus o viu... É por ela que alguém te protege.
— Padre Jorge, não sei quem...
Branca e Rosalina se tinham aproximado. Eustáquio atraiu a si a menina, passou-lhe carinhosamente a mão pelos lindos cabelos negros e beijou-lhe a fronte. Rosalina sorrindo voltou o rosto com ademanes de pombinho. Depois, ouvindo Eustáquio falar, ergueu para ele os olhos redondos que lhe brilhavam no moreno fugitivo do semblante.
— Por ventura, dizia ele, seu pai...
— Meu pai?! gritou ela de repente. Está vivo! oh!... então tenho dous pais para amar!...
— Coitadinha murmurou o padre Jorge, vendo a alegria que se apossara de Rosalina.
— Eustáquio, continuou ele, tu desejas saber quem 6 que te tem defendido... vou dizer-to; porém hás de prometer-me uma cousa: não procurar o teu defensor e esperar paciente que ele de modo próprio se apresente.
— Prometo!
— Tenho a tua palavra... Vou falar...
Eustáquio, Branca e Rosalina chegaram-se para o padre e esperaram com ansiosa curiosidade que ele falasse.
— Na noute de 13 deste mês, começou ele, o calor que fazia não me deixava conciliar o sono. Eu levantei-me pelas onze horas e saí da casa. em busca de ar fresco. Pus-me a vagar pelas vizinhanças da minha morada. Alguns minutos depois ouvi um rumor estranho. Àquela hora a noute estrelada ainda carecia de lua, mas não estava escura. Eu vi um vulto passar correndo a alguns passos de distância do lugar onde eu estava. Quem seria? Acabava ele de entrar na povoação, ou ia sair dela?
"Com a curiosidade despertada, eu encaminhei-me rápido para a viela onde vira o vulto desaparecer. Avistei-o ainda andando depressa e voltando repetidas vezes a cabeça. Ele deu com a minha presença, pois que, afrouxando os passos, saudou-me:
"- Boa noute, senhor padre.
"Eu conheci-lhe a voz.
"- Boa noute, meu filho, respondi.
"E, admirado de ver o menino a tais horas fora de casa, continuei:
— Está passeando... Não é?
— Estou, como o senhor, disse-me ele.
"A explicação dada não era muito aceitável. Eu porém não pedi-lhe outras e, depois de vê-lo entrar na sua habitação, voltei para a minha...
"Disse que o tal vulto era um menino. Era-o de fato... Um rapazinho louro, que está em S. João do Príncipe pouco mais há de dous anos... O filho de um naturalista francês, que lá o deixou quando passou pela povoação e que agora percorre o norte desta província, à cata de plantas desconhecidas ou raras, dando expansão ao seu gênio, que ele mesmo chama aventuroso."
— Otávio Dugarbon! gritaram uníssonos Eustáquio. sua mulher e Rosalina.
— Sim, Otávio Dugarbon, confirmou o padre Jorge. Era ele.
"No dia seguinte, pelas seis horas da manhã, eu o vi de novo. Chamei-o. Ele veio à minha casa. Beijou-me respeitosamente a mão e me interrogou com os olhos.
— Você quer saber, disse-lhe eu, depois que nos assentamos, porque o chamei. Não é?" - Sim senhor, respondeu ele.
— Eu tenho desejo de saber o que fazia você, ontem à noute, fora de casa... Diga a verdade... Eu não creio na tal história de passeio com que me quis iludir ontem.
"Otávio abaixou o rosto, que lhe enrubescera e ficou calado, olhando para as mãos.
"Julguei que o houvesse ofendido.
"- Está zangado comigo? perguntei-lhe, suavizando mais a voz. Não está ....... Então fale...
"O menino encarou-me com os olhos úmidos e, extremamente perturbado, murmurou:
"- Não posso...
"É fácil imaginar quão grande era o meu interesse em descobrir o segredo do menino. Não sei que voz íntima me dizia que esse segredo estava por qualquer forma relacionado com os fatos que têm sucedido nesta casa... Aquela obstinação de Otávio em calar-se vinha sobretudo me aguilhoar de modo insuportável a curiosidade. Devo ainda lembrar que o filho do francês, fazendo-se meu amigo logo após a sua chegada em S. João do Príncipe, juntara a essa amizade uma veneração e uma confiança que me enterneciam. Só um motivo fortíssimo o poderia coagir a ocultar-me qualquer cousa.
— Vamos, meu filho. Pedi-lhe. Fale... Porque não me faz este favor.
Otávio fez então um movimento de resolução e falou:
"- Senhor padre, eu não devo ter segredos para com o ....... mas um receio me tem impedido de ser inteiramente franco nas conversas...
— O que é que receia, Otávio?
— Senhor padre, eu fiz um juramento, cujo o cumprimento aliás não implica más ações, contudo...
— Receia que eu não o deixe cumprir?!
Otávio guardou silêncio. Neste silêncio adivinhei uma resposta afirmativa e acrescentei:
"- Otávio, os juramentos proferidos em um momento de irreflexão e cujo cumprimento está acima das nossas forcas não obrigam..."
"- Mas o meu juramento... eu posso cumpri-lo!... E, até, já o tenho cumprido em parte."
"- Então o que receia?... De modo nenhum me oporei aos seus atos... pelo contrário! eu os facilitarei como puder..."
"'- Muito lho agradeço, disse-me ele. Vou revelar-lhe tudo..."
O padre Jorge repetiu então o que lhe referira Otávio, isto é, aquilo que os seus ouvintes mais ansiavam por conhecer, para que se certificassem de que não era inexata uma suposição que as palavras do sacerdote já lhes haviam inspirado...
Quando Henrique Dugarbou ao retirar-se de S. João do Príncipe se despedia do filho, viu na mão do menino um pequeno objeto. Era o brinco de coral com que a protegida do Eustáquio mimoseara o seu amiguinho de uma tarde.
— Onde achaste isto, Otávio? perguntou o viajante com estranha vivacidade.
Otávio, não tendo mostrado a seu pai o presente que recebera e acreditando que ia ser censurado, respondeu timidamente:
— Foi a filhinha do subdelegado.
Estas palavras foram trocadas à porta da habitação de um amigo de Henrique Dugarbon, onde tinha de ficar Otávio.
À resposta do menino, a fisionomia do viajante deixou transparecer inexplicável alegria.
Henrique Dugarbon, ficando à sua espera os quatro homens que o deviam acompanhar nas suas viagens, entrou de novo na habitação, puxando Otávio pelo pulso.
Então, achando-se apenas com o menino e o dono da casa, pediu a Otávio o objeto que lhe dera Rosalina. Examinou-o por momentos e depois, possuindo-se de uma tristeza, mais inexplicável do que a alegria que a precedera, falou gravemente a Otávio, que o observava admirado:
— Meu filho, a menina de cujas mãos recebeste este objetozinho não é filha do subdelegado, como disseste... É a filha de um pobre homem que morreu para salvar-me a vida.
— Oh! meu pai...
— É verdade, Otávio... Tens certamente na memória o fato a que me refiro.
"Um dia, íamos atravessando o Amazonas..."
— Oh! bem me lembro!... Uma horrível borrasca se desencadeara... Fomos abalroados por um tronco de árvore que sobrenadava... Caíste fora da embarcação... Era impossível lutar com as ondas... íeis morrer... o mísero lançou-se ao rio!... agarrou-vos... conseguiu repor-vos sobre a embarcação... salvou-vos!... Mas as águas revoltas o envolveram... eu vi uma mão agitar-se por instantes fora d'água... era o adeus supremo do infeliz!... Ele sumiu-se...
Otávio enxugou com as costas da mão uma lágrima que lhe pendia dos cílios.
— Exatamente, meu filho. Pois esse homem dedicado consagrava-me verdadeiro afeto, e, seis dias antes do fatal desastre que findou a sua existência, ele, adivinhando talvez que tinha de morrer em breve, quis dar-me uma lembrança da sua amizade.
"Sr. Henrique, me disse ele, peço-lhe que aceite este objeto, a que eu dou um apreço imenso, e por isso vô-lo ofereço"...
Henrique Dugarbon meteu dois dedos em um bolso, tirou uma mãozinha de coral inteiramente igual à que lhe entregara Otávio e, apresentando-a ao menino, disse:
— Aqui está o que ele me deu... O bom homem amava este objeto porque lhe recordava uma filha que tinha em S. João do Príncipe, com sua mulher. Essa menina chamava-se Rosalina e a inicial do seu nome estava riscada sobre o fragmento de coral querido do seu pai, que lhe dera um brinco semelhante, tendo também riscado a inicial do nome dele.
Estas cousas me foram referidas pelo meu pobre amigo ao fazer-me entrega desta mãozinha de coral. Agora, vê...
Ele chamava-se Antônio... eis aqui a letra A riscada no objeto que te deram. A sua filhinha chamava-se Rosalina... R é a letra que tem a lembrança que me deu o dedicado Antônio... Rosalina é também o nome da criança que vimos em casa do subdelegado!
— Sim, meu pai! Ela disse-me que se chamava Rosalina!
— Otávio, aquela criança é tua irmã!... Eu sou seu pai ante a minha consciência! O pobre Antônio, sacrificando-se por mim, confiou-ma sem o declarar. Eu devo ser agora seu pai.
Quando acabou de falar, Henrique Dugarbon, bastante comovido, pareceu refletir por um momento e, voltando-se para o amigo, que de parte assistira, sem entender, o diálogo dos dons estrangeiros, travado em francês, pediu-lhe em português, que desse informações acerca da mãe da protegida do subdelegado.
Soube que, havia bastante tempo, uma espécie de mendiga exalara o derradeiro suspiro nos braços da miséria, deixando ao desamparo uma filhinha, que Eustáquio de... acolhera. Contou então ao seu informante a história do fim trágico que levara o pai da orfãzinha.
— Se não fosse o Sr. Eustáquio, observou Otávio, a pobre menina estaria tão abandonada, coitadinha!...
Esta observação de Otávio atraiu o pensamento do viajante francês para as condições em que se achava Rosalina. Henrique estava pronto para consagrar àquela criança uma dedicação toda paternal... Rosalina encontrara generosos protetores, mas . . quem sabe se não careceria ela alguma vez de proteção mais forte?... Os benfeitores da menina tinham um inimigo talvez terrível... Cumpria pois que ele, Henrique Dugarbon por amor de Rosalina se armasse para defendê-los. Ocorreu-lhe a idéia de suspender por algum tempo as suas excursões e entregar-se a essa defesa; a vida sedentária, porém, não convinha à sua natureza. Depois de haver obtido do amigo em cuja casa ia deixar o seu filho Otávio a promessa de que empregaria todos os meios ao seu alcance para afastar os perigos que ameaçassem a família do subdelegado Eustáquio. ele terminou as suas despedidas e. reunindo-se aos seus quatro camaradas, partiu para o norte.
No momento em que Henrique Dugarbon estreitava consigo a Otávio. o menino. elevando-se à altura de um homem, proferiu no íntimo d'alma um juramento solene.
Quem tivesse o dom de ouvir os pensamentos, teria percebido o seguinte:
"Juro-vos, meu Deus, pelo vosso nome e pela alma do desditoso sertanejo que morreu por meu pai, que a segurança de Rosalina será garantida!"
Tais foram os fatos referidos por Otávio na revelação que fez ao padre Jorge. Tais foram os fatos cuja narração o padre repetiu a Eustáquio, Branca e Rosalina.
As impressões que cada frase do sacerdote causara nos seus ouvintes não se descreve. A princípio uma curiosidade indomável, em seguida uma comoção que se traduzia por torrentes de lágrimas. Quando ouviu falar de seu pai afogado no rio Amazonas, Rosalina lançou-se ao colo de Branca, soluçando de modo a cortar o coração. Por várias vezes o padre Jorge, compungido diante da dor da menina, teve desejos de interromper a sua narrativa ela. porém. rogava-lhe que prosseguisse. porque queria saber a quem devia a salvação da sua existência. que duas vezes perigara, e quem velava pela tranqüilidade dos seus benfeitores. Ele continuava. Quando declarou que juramento Otávio fizera. um grito es capou-se dos lábios de Eustáquio...
— Oh! criança de heroísmo!
Branca e Rosalina puderam apenas exclamar.. Oh!
Mas esta exclamativa foi uni verdadeiro hino de admiração. entoado em honra de Otávio. Doces lágrimas de gratidão. desprendendo-se das pálpebras de Rosalina. Vieram minorar-lhe a mágoa causada pela história lúgubre da morte do seu pai...
Uma bonança relativa ganhou o ânimo encapelado dos ouvintes do padre Jorge, que, depois de longa pausa, pode terminar:
— Quando o jovem Otávio repetiu-me o seu juramento, quando contou-me, em seguida, que o amigo do seu pai esquecera a promessa feita e que ele sozinho ficara a braços com o cumprimento do que havia jurado, missão que, como me dissera no princípio, ele já desempenhara em parte, confesso-vos que senti por ele alguma cousa que se assemelhava ao respeito. Não tive ânimo de dar-lhe um só conselho. Com os olhos na Providência, conservei-me calado, apertando-o apenas em meus braços.
"Otávio também se calara. Julgava ter dito tudo, e dissera-o com efeito. A explicação de tudo quanto havia de obscuro e misterioso para mim e também para ti, Eustáquio, se podia facilmente depreender daquilo que ele tinha dito.
"Desprendendo-se dos meus braços, Otávio fitou-me com um sorriso que lhe dava uma fisionomia titânica.
"- Adivinhou já o que eu fazia ontem de noite fora da casa? perguntou-me ele. . . Está então satisfeito?
"- Inteiramente, respondi-lhe.
"O menino retirou-se e foi prosseguir na admirável missão que encetara, havia tão longo tempo, salvando nesse mesmo dia a tua Rosalina e avisando-te depois do ataque que os teus inimigos tencionam dar hoje a esta casa.
"Assim, pois, é o valente Otávio Dugarbon o defensor que tantos serviços te há prestado, graças às suas excursões, em uma das quais eu o surpreendi, na noite de 13, que permitem-lhe conhecer os planos tenebrosos dos teus perseguidores.
"Uma cousa talvez te pareça ainda inexplicável: o incógnito de que o bravo Otávio se queria cercar...
— De modo nenhum, padre Jorge. Eu bem compreendo o procedimento do incomparável menino. Ele receava que, em atenção à sua pouca idade, tivésseis vontade de dissuadi-lo das suas resoluções. Por isso, apenas comunicou-vos o seu segredo depois de obter a promessa de que vós não oporíeis ao cumprimento do seu juramento. Não acreditou que me havíeis de dar a conhecer esse segredo e não vos impôs a condição de fazer o contrário, mas vós, dando-mo a conhecer, alcançastes de mim um compromisso que me imobiliza tanto quanto te imobilizou a palavra que deste ao menino. Nada mais do que vós eu posso fazer relativamente ao meu defensor.
— Nem devemos fazer cousa alguma, Eustáquio. A missão daquele rapazinho não vulgar me parece providencial. Deixemo-lo obrar livremente.
Alguns minutos depois que o padre Jorge calou-se, Eustáquio perguntou a Branca e à sua pequena protegida se desejavam ir para S. João do Príncipe, a fim de que não presenciassem o combate com os malfeitores, o qual não havia tardar. Ambas responderam-lhe simultaneamente que não, porquanto, além de não nutrirem desejo de se apartar dele, não viam perigo algum em permanecer em um lugar tão bem defendido.
Eustáquio concordou com elas. O padre Jorge foi da mesma opinião.
— Deus não permitirá, disse este, que a boa causa sela vencida.