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Uma Tragédia no Amazonas/XII

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Era simples o que se tinha passado. Os presos, logo que perceberam que ninguém os vigiava, trataram da evasão. A solidez das paredes e portas, em que confiara o sub-delegado, havia de zombar de seus esforços, caso quisessem arrombá-las, só o teto de palha oferecia-lhes possível saída. Uma circunstância opunha-se, todavia, à fuga dos negros por esse lugar. O teto era alto. Lembraram-se eles, porém, de fazer de uma escada para alcançarem os outros as vigas em que descansava a palha. Assim fizeram. Sobre os ombros de um negro vigoroso trepou um crioulo. Com uma das mãos segurou-se a uma viga, com a outra afastou a palha, fazendo no teto uma abertura, por onde enfiou a cabeça. Ainda não rompia a madrugada. Os arredores da casa estavam desertos. Era a hora da fuga. O crioulo deixou-se escorregar pela face exterior da parede e saltou no chão. Depois dele os seus seis companheiros saíram também, sendo o que servira de degrau guindado pelos outros. Estavam de novo livres. Com toda precaução arredaram-se do povoado. Passando por um pardieiro abandonado, distinguiram dentro dele um monte de objetos que a escuridão impedia de reconhecer. Apalparam-nos. Eram armas, roupas, mantimentos, isto é, tudo o que fora transportado da fazendola pelo subdelegado.

Feliz achado! Os fugitivos aproveitaram-se dele e bem munidos, embrenharam-se no âmago da mata virgem.

Cada um desses escravos tinha o peito cheio de ódio, de um ódio criado por longos dias de escravidão pesada, de um ódio ardente que só o sangue resfriaria. O de seu desgraçado senhor e o do feitor não lhes bastavam. Queriam mais!... E, por uma evolução efetuada insensivelmente no seu espírito, voltaram toda a sua sanha contra o subdelegado.

Julgando-o apenas culpado de algumas violências, empregadas para prendê-los, condenavam-no contudo os negros a expiar todos os excessos praticados em outros tempos contra eles pelo fazendeiro. Não haviam ainda saciado de todo o seu desejo de vingança!

Procuraram a morada do subdelegado. Acharam-na. Encetaram então uma perseguição atroz, com que feriam essa vítima enquanto esperavam um momento propício para assaltando-lhe a casa, trucidarem quem nela estivesse. Alta noute um grupo confuso de sombras surgia da floresta. Se algum raio de lua caía sobre essas sombras, reluziam ferros. Como uma coorte de serpentes avançavam arrastandose até a habitação do subdelegado. Aí devastavam tudo. Matavam o gado que dormia no curral, roubavam animais, destruíam plantações e retiravam-se depois para os antros tenebrosos dos bosques.

Assim eram as excursões dos negros.

Se o subdelegado, em quem já terá o leitor reconhecido Eustáquio, se Eustáquio, aterrorizado por essa perseguição misteriosa, tomava providências mais sérias, os malfeitores suspendiam-na e se ocultavam. Reapareciam depois mais terríveis e audaciosos. As primeiras perversidades, faziam-nas de noute, passaram a cometer crimes à luz do sol.

Emboscados à beira da picada de comunicação entre S. João do Príncipe e a morada de Eustáquio, viram aproximar-se um escravo deste. Vinha do povoado. Deixaram-no passar, mas esfaquearam-no pelas costas. No mesmo lugar assassinaram pouco tempo depois um pobre soldado de polícia.

Na realização deste último atentado perderam um companheiro. Esse fato fê-los desanimar e voltar sua atenção para empresas de menos perigos e mais proveitosas deixando o subdelegado em paz.

Só dous anos, porém, durou a tranqüilidade para Eustáquio.

Os negros já quase dele se haviam esquecido. Viviam errantes, cometendo pequenos roubos em lugares distantes uns dos outros, para não despertarem desconfiança.

Depois de uma das suas mais ricas colheitas, estavam eles um dia de manhã, reunidos no meio de uma floresta úmida e escura, onde a luz diurna, passando dificilmente a copa do arvoredo, difundia-se em duvidosos clarões.

Assentados em círculo, conversavam.

Ouvi tanto falar em índios, dizia um, e entretanto ainda não vimos nem um só deles.

— É mesmo de pasmar, dizia outro. Há dous anos e tanto que nós vagamos por esses matos sem encontrar essa gente.

— Não falemos em índios, notou depois um terceiro. Contam tantas histórias dos tais sujeitos que eu nem quero pensar neles. Deus nos livre. Se nos agarrassem, nos tomariam tudo e só nos haviam de pagar com uns elogios ao gosto do nosso lombo.

— Eles comem gente. Não é? perguntou ingenuamente um negro velho, por não haver compreendido a frase do companheiro.

— Comem, respondeu esse companheiro, que olhou de repente para trás, como se tivesse ouvido rumor suspeito.

— E, se são índios que aí vêm, podemos já nos preparar, acrescentou ele, para darmos um passeio por suas tripas. Fica bem entendido que não entraremos inteirinhos.

Apesar de estar gracejando, a voz do negro denunciava medo.

— Que cousas está você dizendo? gritaram os outros. Onde viu índios, maluco?

— Escutem, disse ele.

Todos os negros se inclinaram para ouvirem melhor alguma cousa diferente do rumorejar do vento...

— Índios! Índios! bradou aterrado um deles, levantando-se. Os índios! ai estão eles!

Um ruído de folhas secas, pisadas, assinalava claramente a aproximação de homens ou animais.

Os negros se tinham erguido e já se metiam pelo mato fugindo. Apareceram então seis homens, saindo dentre dons matagais.

— Por que fogem, medrosos? gritaram para os fugitivos. Somos amigos!

Os pretos voltaram-se, apenas ouviram essas inesperadas palavras. Viram que os recém-chegados não eram índios. Eram indivíduos de cor branca, mal vestidos mas perfeitamente armados.

— Não tenham medo, continuaram os homens brancos, não somos inimigos de vocês.

Os negros animaram-se a se chegar para eles. Pelo instinto de bandidos, adivinhavam que os tais homens não eram muito melhores do que os assassinos de um pobre fazendeiro. Assentaram-se pois como amigos sobre umas raízes, que se alongavam, estorcendo-se fora da terra, e travaram conversa.

Um dos homens brancos, de barbas incultas, sobrancelhas grossas e de maneiras que indicavam o hábito de mandar, encarregou-se de dizer que espécie de gente eram os seus companheiros e ele. Apesar da incorreção da sua linguagem, uma mistura de espanhol com português, deu a conhecer que eram espanhóis, residentes desde longa data no Equador e que finalmente se haviam passado para o Brasil, onde pretendiam continuar a cometer latrocínios, sua única profissão naquela república. Disse mais que tinham estado durante alguns dias na povoação de S. João do Príncipe e aí ouvido falar-se da existência de uns escravos evadidos, aos quais eram atribuídos vários crimes. Confessou francamente que, depois de saberem do ódio votado por esses escravos a um certo Eustáquio, homem de uma fortuna que, segundo se suspeitava, não era multo pequena, tomaram a resolução de procurá-los para com eles assaltarem a casa do tal ricaço. Terminou dizendo que julgavam estar diante dos amigos em cuja procura andavam, havia mais de vinte dias, e por isso ele, falando por si e pelos seus companheiros, de quem era chefe, propunha que, de então em diante, negros e espanhóis só operassem conjuntamente.

Os escravos responderam declarando que eram eles realmente os criminosos evadidos a que se referiram os informadores dos espanhóis e contaram toda sua história, desde o dia do assassinato do fazendeiro até o momento em que resolveram suspender a perseguição de Eustáquio, porque temiam acabar como o companheiro, que fora morto por um policial do serviço do perseguido.

— Que fracalhões! exclamou então o chefe dos espanhóis. Perdem um companheiro e, longe de o vingarem, fogem como covardes!

— Porque ninguém gosta de morrer, desculpou um negro.

— Ora! Quem é esperto não morre como qualquer tolo. Sejam mais vivos e tratem de vingar o companheiro... Se quiserem tomar vingança desse Eustáquio, que tanto mal lhes fez,... estamos prontos para os auxiliarmos.

— Queremos, queremos! disseram a uma voz os negros.

— Aceitam pois a minha proposta?

— Aceitamos!

— Então, é negócio feito. De hoje em diante nós, brancos, uniremos nossos esforços para facilitarmos a vingança que vocês desejam, e vocês, pretos, unirão os seus para facilitarem a nossa pretensão, isto é a posse do dinheiro do tal Eustáquio.

— É bom lembrar, observou um negro sorrindo, que nós não queremos unicamente nos vingar... alguma cousa mais não destruiria o prazer da vingança.

— Pois bem, gaguejou o chefe dos espanhóis, meio desconcertado e olhando de modo estranho para os patrícios que riam-se, do que encontrarmos vocês terão uma parte.

— Está dito! disseram aos ladrões do Equador os assassinos do Brasil, está dito! Somos companheiros.

Assim celebrou-se a aliança entre as duas quadrilhas.

Exatamente quando nas florestas se tramava a sua perda, o honrado esposo de Branca, julgando-se em segurança, entregava-se as suaves alegrias domésticas.

Os bandidos deixaram passar-se algum tempo antes de tomarem uma resolução definitiva. Esperavam uma ocasião em que pudessem surpreender facilmente, a família de Eustáquio. Entretanto alguns espiões vigiavam-lhe a casa, de dia e de noite.

Um desses espiões apresentou-se uma vez ao chefe dos espanhóis, que pouco a pouco se fizera chefe de todo o bando, e lhe disse:

— Quase sempre, pela manhã eu vejo uma moça e uma menina que saem da casa do nosso amigo e vão passear, ou pela picada, ou pelo campo... Poderei eu dar-lhes algum tiro?

O espião, que era um negro, fez essa pergunta sem mais emoção do que sentiria se estivesse pedindo permissão para matar um pássaro.

— Nada, nada! respondeu-lhe o chefe. Vou dizer-te o que tens a fazer.

"Quando vires essa moça e essa menina, tomarás a tua faca... faca, repara bem... Nada de tiros barulhentos...

"Tomarás a tua faca e darás cabo da moça. Quanto à menina, tu hás de agarrá-la e trazer-ma. Estás ouvindo?"

— Trazer para que? perguntou o negro, encarando de modo singular o seu chefe.

— Para... Não é da tua conta!

— Ora, que esquisitice! Trazer aquele mosquitinho miúdo para o senhor!

— Não faças observações! gritou o chefe. Hás de trazer-ma! Entendes? É o que ordeno.

— Bem, custa pouco. Amanhã mesmo a menina estará aqui.

Apenas o negro acabou de fazer esta promessa, uma risada irônica ressoou por trás de um agrupamento de arbustos.

O espanhol ouviu-a, julgou, porém, que fosse a gargalhada de algum dós seus companheiros, que conversavam a pouca distância dele.

No dia imediato ao desse colóquio Branca e Rosalina foram assaltadas na picada e, como já referimos, salvas por um braço oculto.

Quando deram-lhe a notícia da morte do negro encarregado de arrebatar a protegida de Eustáquio, o chefe da quadrilha fez apenas com os ombros um movimento que dizia:

— Que me importa?

Depois acrescentou:

— Poltrão! Deixou-se matar por uma mulher!

Acreditava que tivesse sido Branca a autora da morte.

O bandido não possuía a virtude de Fábio. Conhecendo porém que o perigo de que Branca e Rosalina haviam escapado devia ter despertado a vigilância de Eustáquio, adiou a luta que pretendia desde logo romper.

Tratou contudo de ativar as disposições para ela.

Mandou mudar o acampamento do seu bando para um lugar menos afastado do alvo dos seus desígnios.

Nesse novo acampamento reconheceram os bandidos que, espiavam a morada de Eustáquio, e eram por seu turno espiados.

Por quem? Esta pergunta faziam eles a si, sem encontrar resposta.

Tinham por vezes descoberto pegadas na lama, e nos galhos sinais patentes de que uma pessoa estivera sobre eles. Tinham até lobrigado ao clarão da lua um vulto fugitivo, que inutilmente perseguiam. Não passava porém disso o conhecimento que tinham de quem os espreitava. Estavam entretanto convencidos de que o espião não era pessoa da família de Eustáquio, pois que, nas noutes em que avistavam a sombra fugitiva, ninguém saíra da casa do perseguido, como afirmavam os negros que a vigiavam constantemente.

Além do que, sempre que os malfeitores iam no encalço de tal sombra, viam-na refugiar-se na povoação.

Passaram-se duas semanas depois da tentativa de que Branca e Rosalina foram vítimas. O chefe dos malfeitores julgava que era já tempo de realizar os crimes que lhe ferviam na imaginação pervertida.

Reuniu, então, os companheiros, não para comunicar-lhes a resolução que tomara de atacar sem mais demora a casa de Eustáquio, porque já o fizera dias antes, mas para dizer-lhes o que cumpria cada um fazer.

O bandido apresentou-se diante dos seus subordinados com ar inquieto. Havia notado que entre eles não estava um espanhol em quem não depositava confiança e que sempre recalcitrara às suas determinações.

A ausência desse homem não lhe era desagradável, supunha porém que o recalcitrante não aparecendo tinha alguma intenção que ele não conhecia. Por essa razão, as primeiras palavras que dirigiu aos malfeitores foram para perguntar se algum deles sabia qual o motivo por que não estava presente o tal espanhol.

À interrogação ninguém respondeu. Três negros porém abaixaram os olhos e não conseguiram mais levantá-los.

O chefe repetiu a pergunta, lançando a esses três negros olhares furibundos.

Os miseráveis tremeram e quase desfaleceram quando nessa ocasião ouviram a voz de um dos outros negros.

— Eu, se o senhor m'o consente, dizia ele com timidez humilde, posso...

Os três bandidos que pareciam réus perante o juiz quiseram prostrar-se aos pés do que falava e rogar-lhe que se calasse, o chefe porém bradou-lhe:

— Não se movam!

— Posso, continuou o que falava, dizer-lhe alguma cousa que explica a ausência do branco.

— Dize! Dize!

— Estes meus três parceiros, principiou ele pausadamente e estendendo a mão para os negros cabisbaixos, me disseram, muito em segredo, que, anteontem à noute, um dos brancos (os espanhóis) pediu-lhes que fossem com ele à casa do nosso rico amigo, porque, desejando pregar uma peça ao senhor, precisava de auxiliares resolutos...

Tais palavras vieram aumentar os temores do chefe, que via com medo os três negros aterrados, como se receassem o castigo de alguma grande culpa.

— Talvez os desgraçados me tenham traído, pensou ele.

— Continua, falou ao denunciante.

— Os meus parceiros anuíram ao pedido e, ontem pela manhã, foram com efeito à tal casa, e com eles o branco. Enquanto este, penetrando no cercado, se aproximava de uma das janelas da habitação, os parceiros, do lado de fora, se preparavam para prestarem-lhe socorro, caso fosse preciso. Na janela estava aquela menina que o senhor quer que se traga para aqui. O branco pretendia matá-la. Tal seria a peça pregada ao senhor, que tem sempre proibido que ofendamos a sua pequenita.

— E matou-a? exclamou o chefe, avançando com os punhos fechados para os três negros culpados de cumplicidade. E matou-a miserável?

— Qual! respondeu o denunciante, deixando um pouco o tom de voz humilde. Qual! Não matou-a não! Ele é que ficou com os miolos furados...

— Que dizes?...

— ... por um tiro. Sim, ele é que foi morto.

— E quem deu o tiro?

— Aí é que há um mistério. Os meus parceiros só ouviram um estrondo que os fez fugir, deixando estirado o branco.

O chefe da quadrilha, cujos receios haviam desaparecido completamente, sentiu grande júbilo sabendo que estava livre daquele incômodo companheiro, contudo ocultou o prazer e voltou-se para os três criminosos de infidelidade, fingindo-se irado.

— Infames, exclamou, o maior culpado já foi punido como merecia, vocês ainda não. Eu devia matá-los agora mesmo, porém quero perdoá-los. Perdôo, mas à primeira falta que cometerem faço-os em migalhas!

O bandido perdoava porque não julgava muito prudente dizimar o seu bando.

Apesar de haver concedido perdão aos três negros, não moderara o seu furor fingido. O astucioso espanhol conhecia que os malfeitores estavam impressionados com a atitude do chefe, e, para tirar partido da impressão que causava, não quis mostrar-se indiferente à falta de lealdade dos três negros.

Preparava a sua gente para receber ordens despóticas com estrondosas repreensões e espantosas ameaças. Espanhóis e negros se curvaram trêmulos diante do chefe.

Este falou:

— Amanhã, como já esta determinado, tentaremos a ação decisiva contra o amigo que, há tanto tempo, nos traz atarefados. É verdade que o meu miserável patrício, que o diabo tenha, necessariamente despertou a vigilância do homem, mas este fato, que devera me fazer adiar o assalto para outra ocasião, vindo contrariar-nos, não vem senão favorecer um plano que concebi. Realmente: o nosso amigo não é tão corajoso que, vendo-se ameaçado, não trate logo de tomar precauções. Dessas precauções uma será por certo o engajamento de defensores, serviço de que deve ser encarregado o padreco da povoação, como já o foi uma ou duas vezes. Pois bem, se vocês...

O chefe indicou os seus compatriotas.

— ... forem, disfarçados em trabalhadores, oferecer serviços ao padre, acredito que ele os engajará para defensores de seu medroso amigo.

"Introduzidos na casa do homem, vocês não farão mais do que esperar pelo meu assobio, que conhecem, para começarem a luta, distraindo o ricaço, enquanto eu e os negros, invadindo a habitação, fizermos a colheita. É esse o meu plano. E, como, sem dúvida, o nosso amigo está assustado por causa da tentativa feita contra a pequenita, julgo que é este o mais acertado e de mais provável bom êxito. Amanhã pois, vocês entrarão de madrugada no povoado para depois se apresentarem ao padre. Se ele os não aceitar, voltarão a ter comigo, no caso contrário, cuidarão somente em representar bem o seu papel. Por conseguinte, se vocês não aparecerem, estarei certo de haver vencido a primeira e única dificuldade."

O espanhol estava convencido de que os seus patrícios tinham interesse em ser guiados por ele e por essa razão, não receando que o traíssem, terminou dizendo apenas:

— É inútil acrescentar que serei desapiedado para com os covardes. Nunca se esqueçam disto:

"Aquele que não cumprir o seu dever... queimá-lo-ei vivo!"

Esta ameaça pavorosa foi abafar a última centelha de liberdade que porventura restava nos ânimos escravos de todos que a ouviram. Esses miseráveis podiam juntos esmagar o infame que os dominava; mas cada um deles, não contando com o apoio dos companheiros, não tinha coragem de ser o primeiro a resistir. Os espanhóis, a quem o chefe confiara a parte mais perigosa da empresa, não ousaram fazer a menor observação às ordens do superior. Os negros só tiveram palavras de aplauso.

O chefe conhecia bem a sua gente.

Quando os bandidos se dispersaram já o crepúsculo ia se mudando em noute.

Depois de engolirem alguma carne mal cozida e ervas quase cruas, enrolaram-se eles em capas e estenderam-se na relva úmida, deixando a postos duas sentinelas. Estas sentinelas eram dons negros, pai e filho, que lançaram fogo a um monte de lenha, algum tanto molhada pela chuva que caíra de dia, e começaram a prestar atenção aos ruídos da noite.

Um vento fresco sibilava através das árvores. Agitando a ramagem fazia cair uma infinidade de pingos d'água que a chuva depositara nas folhas e curvava as chamas que principiavam a abrasar o monte de lenha.

O negro mais velho aproximou-se do fogo e assentou-se. Meio aquecido, pôs-se a dormitar, ao passo que o filho continuava a escutar o barulho da viração noturna.

Passadas duas ou três horas, ouviu este um rumor interrompido... uniforme, como se fora o caminhar receoso de alguma pessoa sobre as folhas molhadas.

Por um momento a sentinela lembrou-se do desconhecido que costumava espiar o acampamento. O barulho, porém, cessou e o negro, nada mais percebendo, acreditou ter ouvido apenas os passos de alguma fera, que a fogueira acabava de afugentar, e esqueceu-se do rumor para se divertir com o cabecear do companheiro que dormia assentado...

Já se avizinhavam as primeiras horas da manhã quando o negro mais moço resolveu acordar seu pai. Seguiu-se então a cena que Eustáquio e os seus homens assistiram do alto da castanheira que nessa ocasião ocupavam.

Como narramos em um dos precedentes capítulos, o estalido da espingarda de um dos paraenses denunciou a presença dos exploradores no acampamento dos bandidos, cujo chefe foi despertado pelo grito da sentinela. Como também ficou narrado, o chefe ordenou que fossem examinadas as circunvizinhanças da clareira e o alto do arvoredo.

Iam os dous negros trepando pelo tronco de uma árvore, mas desceram logo e se precipitaram na clareira, gritando:

— O espião! o espião! Vai fugindo por ali!

Estendiam a mão na direção do povoado de S. João do Príncipe. Tinham ouvido os passos dos exploradores que fugiam.

— Hoje temo-lo seguro! exclamou o chefe.

Em um instante ergueram-se todos os malfeitores, acenderam alguns fachos e com eles lançaram-se na pista do espião assinalado pelas sentinelas, indo a frente o chefe. Conquanto a essa hora a lua em minguante estivesse ainda muito acima do horizonte nenhuma claridade havia na floresta que não fosse a dos últimos tições da fogueira. Logo que as balsas a encobriram, apenas os fachos dos bandidos deixaram-lhes ver o caminho.

A perseguição não durou muito tempo. O chefe conheceu que o suposto espião ia escapar-lhe mais uma vez, refugiando-se na povoação.

— Voltemos, disse ele.

E a quadrilha voltou para o acampamento.

Os quatro espanhóis que estavam incumbidos de oferecer serviços ao padre Jorge receberam do chefe as últimas instruções e, tomando ferramentas de lavoura, partiram apressadamente para o povoado...

Um luar fraco insinuava-se por entre a habitação de S. João do Príncipe e cobria de lívidas tintas o chão das vielas. Os bandidos transpuseram algumas habitações e pararam.

— Ouço vozes, disse então um deles.

— Há gente no largo, afirmou outro.

— Precaução! disse um terceiro.

E prosseguiu, abafando a voz, como haviam feito os seus companheiros:

— Passemos adiante como pacíficos lavradores, que se levantaram cedo e vão ao campo.

Os malfeitores continuaram a atravessar o povoado e chegaram ao largo. Aí viram várias pessoas que caminhavam no mesmo sentido que eles.

No meio delas estava o padre Jorge, que eles conheciam. Os espanhóis o cumprimentaram. Em seguida, reconhecendo Eustáquio no meio do grupo, saudaram-no da mesma forma.

Quando iam sair pelo lado oposto da povoação, o padre Jorge os chamou e disse-lhes:

— Meus amigos, bem vejo que sois homens do campo, mas creio que apesar disso sabeis descarregar uma espingarda. Temos necessidade de companheiros valentes para repelir alguns salteadores. Quereis unir-vos a nós?

Os malfeitores disfarçados ficaram mudos e indecisos.

O amigo de Eustáquio viu-os se olharem entre si.

O acaso, tantas vezes favorável aos malvados, vinha de tal modo simplificar-lhes a missão que eles estavam estupefactos.

— Se é por medo que hesitais, disse o padre Jorge, nada...

Não senhor, interrompeu com vivacidade um dos bandidos, que conheceu que deviam aproveitar o ensejo. Não hesitamos! Ao contrário, aceitamos com prazer a vossa proposta, pois estamos certos de que a remuneração...

— Será generosa, terminou o padre Jorge.

Estas palavras e um rápido ajuste fecharam negócio e os bandidos acompanharam hipocritamente aqueles que em breve deviam ver-lhes as verdadeiras fisionomias.

O padre Jorge havia reparado no sotaque da voz do indivíduo com quem tratara o engajamento; todavia não teve desconfianças. No povoado às vezes apareciam estrangeiros e muitos deles até se demoravam, tomando parte nos trabalhos de extração da borracha que iam depois vender no Pará.

No seu acampamento, o chefe da quadrilha exultava de contentamento, vendo que os seus enviados não voltavam. Para ficar convencido do bom êxito da primeira parte da sua malvada empresa, resolveu deixar o ataque para a tarde.

Ao meio-dia reuniu os cinco pretos e, com a áspera secura que lhe era habitual e o tom feroz de que usava quando queria impor obediência, lhes disse:

— Cumpram cegamente o que eu mandar fazer.

E, dirigindo-se particularmente a um deles, acrescentou:

— José não te esqueças da minha pequenita.

O bandido não repetiu aos negros a promessa que lhe fizera relativamente aos lucros da operação que iam tentar, mas apenas algumas ameaças, e, seguido por eles, encaminhou-se para a habitação de Eustáquio.

Em caminho, aquele a cujos cuidados o chefe confiara a sua pequenita, com repugnante alegria, segredou aos companheiros:

— Até que afinal chegou o dia da vingança!

— De que nos vamos vingar, meu filho? perguntou-lhe um negro já velho.

O filho respondeu-lhe com um arregaçamento desdenhoso dos beiços.

Quando avistaram as paliçadas da habitação que buscavam, os malfeitores se ocultaram no mato e esperaram...