Uma loureira/II

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Como ia dizendo, grande era a agitação em casa do comendador Nunes em certa noite de abril de 1860.

A causa desta agitação era nada menos que a apresentação de um rapaz, recentemente chegado do Norte, parente remoto dos Nunes e indigitado noivo da menina Luísa.

Chamava-se Alberto o rapaz, e tinha seus 27 anos feitos. A natureza o dotara de uma excelente figura e de um bom coração. Não escrevi à toa estes qualificativos; o coração de Alberto era bom, mas a figura era muito melhor.

O pai do candidato escrevera dois meses antes ao comendador Nunes uma carta em que lhe anunciava a vinda do filho, aludia às conversas que tiveram ambos os velhos acerca do enlace matrimonial dos pequenos.

O comendador recebeu esta carta logo depois do jantar, e não a leu, porque era regra sua não ler nada depois do jantar, sob pretexto de que lhe perturbaria a digestão.

Pedrinho, que tinha tanto juízo como o irmão bacharel, achou a carta em cima da mesa, fê-la em pedaços para arranjar canoas de papel e armar assim uma esquadra dentro de uma bacia. Quando deram por esta travessura três quartas partes da carta já estavam em nada, porque o pequeno vendo que alguns navios não navegavam bem, de todo os destruiu.

Os pedaços que ficaram eram apenas palavras soltas, e com algum sentido... mas que sentido! Só restavam palavras vagas e terríveis: teus... amores... Luísa... ele... flor em botão... lembras-te?

Quando a senhora D. Feliciana leu essas perguntas misteriosas sentiu que o sangue lhe subia todo ao coração, e depois à cabeça; estava iminente um ataque apoplético. Acalmou-se felizmente, mas ninguém pôde estancar-lhe as lágrimas.

Durante o longo tempo de casado nunca a senhora D. Feliciana duvidara uma vez sequer do marido, que aliás foi sempre o mais refinado hipócrita que o diabo mandou a este mundo. Aquele golpe, no fim de tantos anos, foi tremendo. Debalde o comendador Nunes alegava que de fragmentos nenhum sentido se poderia tirar, a esposa ofendida persistia nas recriminações e repetia as palavras soltas da carta.

— Queridinha, disse o comendador, esperemos outra carta, e tu verás a minha inocência mais pura que a de uma criança de berço.

— Ingrato!

— Feliciana!

— Vai-te, monstro!

— Mas, minha filha...

Flor em botão!

— É uma frase vaga.

Teus amores!...

— Duas palavras soltas; pode ser que ele quisesse dizer. " Já vês...

Lembras-te?

— Que tem isso? Que há nessa palavra que possa encerrar um crime?

Ele!

E nisto passaram longas horas e longos dias.

Afinal, Feliciana se foi acalmando com o tempo, e ao cabo de um mês veio nova carta do pai de Alberto dizendo que impreterivelmente o rapaz estava aqui daí a um mês.

Por felicidade do comendador Nunes, o pai do noivo não tinha a musa fértil, e a segunda carta era mais ou menos do mesmo teor da primeira, e a senhora D. Feliciana, já convencida, esqueceu completamente os rigores do marido.

Comunicada a notícia ao objeto dela, que era a menina Luísa, nenhuma objeção fez esta ao casamento, e disse que estaria por tudo o que o pai quisesse.

— Isso não, disse o comendador, eu não te obrigo a casar com ele. Se gostares do rapaz, serás sua esposa; no caso contrário, fá-lo-ei voltar com as mãos abanando.

— Hei de gostar, respondeu Luísa.

— Tens algum namoro? perguntou Nunes com alguma hesitação.

— Nenhum.

Suspeitando que podia haver alguma coisa, que a menina não ousaria confiar-lhe, Nunes incumbiu a mulher de sondar o coração da pequena.

Revestiu-se a senhora D. Feliciana daquela meiga severidade, que tanto quadrava com o seu caráter, e interrogou francamente a filha.

— Luísa, disse ela, eu fui feliz no meu casamento porque amei muito teu pai. Só há uma coisa que faça uma noiva feliz, é o amor. O que é amor, Luísa?

— Não sei, mamãe.

Feliciana suspirou.

— Não sabes? disse ela.

— Não sei

— É incrível!

— É verdade.

— E serei eu com os meus quarenta e seis anos, que te ensine o que é o amor? Estás zombando comigo. Nunca sentiste nada por algum rapaz?

Luísa hesitou.

— Ah! disse a mãe, vejo que sentiste já

— Senti uma vez palpitar-me o coração, disse Luísa, ao ver um rapaz, que logo no dia seguinte me escreveu uma carta...

— E tu respondeste?

— Respondi.

— Desgraçada! Nunca se respondem a estas cartas sem ter certeza das intenções do autor delas. Teu pai... Mas deixemos isto. Respondeste só uma vez?...

— Respondi vinte e cinco vezes.

— Jesus!

— Mas ele casou com outra, segundo soube depois...

— Aí está. Vê que imprudência...

— Mas nós trocamos as cartas.

— Foi só esse, não?

— Depois veio outro...

D. Feliciana pôs as mãos na cabeça.

— A esse escrevi só quinze.

— Só quinze! E veio mais outro?

— Foi o último.

— Quantas?

— Trinta e sete.

— Santo Nome de Jesus!

D. Feliciana estava louca de surpresa. Luísa, a muito custo conseguiu acalmá-la.

— Mas em suma, disse a boa mãe, ao menos agora não amas nenhum?

— Agora nenhum.

D. Feliciana respirou, e foi tranqüilizar o marido acerca do coração da filha. Luísa contemplou a mãe com verdadeiro amor, e foi para o quarto responder à quinta carta do alferes Coutinho, amigo íntimo do bacharel Nunes.