Uma vingança/II

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Que existencia a do desprezado Mario Campos!

Pareceu-lhe aquillo, a principio, um sonho, um pesadello, esse tremendo e inopinado capricho de loureira a perturbar-lhe todos os planos e calculos e a exasperar-lhe a paixão por modo inacreditavel.

Fez ainda algumas tentativas, procurou encontros, entrevistas; mas achou todas as portas fechadas, as vasas cortadas, esbarrando com uma resolução tão valente e decidida como a sua. Empenhava-se Sofia em mostrar-se de posse do maior sangue-frio; e a sociedade, curiosa e attenta, observava aquella especie de duello travado repentinamente entre dous entes, que, pouco antes, tanto lhe dera que fallar em sentido bem diverso.

Cahiu depois o moço em profundo abatimento. Tudo se lhe afigurou perdido, a mesma natureza em vesperas de definitiva destruição, apezar dos rutilantes esplendores dos mais formosos e festivos dias. Encerrado em casa semanas e semanas, n’essa casa cheia de conforto e luxo em que não soubera dar o devido apreço á suave affeição da perdida esposa, reconcentrava-se num desespero medonho, tétrico; a sós com os mais negros pensamentos. Não lograva um momento de socego, e, para conciliar uma ou duas horas de acabrunhado torpor, tinha que recorrer, após noutes de absoluta insomnia, a elevadas doses de morphina.

Ahi emergiu-lhe das mais fundas entranhas odio immenso, áquella mulher, e com elle sêde ardente incontentavel, de estripitosa vindicta. Ah! sim, queria, precisava por força vingar-se, mas de modo único, nunca visto, inexcedivel, nem sequer imaginado. E tornou-se-lhe prazer exclusivo procurar que desforço seria esse, capaz, só em ideal-o, de lhe applacar um pouco tamanhas ancias, fogo tão devorador e indomavel.

Matal-a-ia sem vacillar; oh, sim! mas como fazel-a soffrer mil mortes, n’uma agonia intérmina, á maneira d’essas aves de rapina, cruentissimos açôres, que, por instincto infernal, dilaceram as victimas membro a membro, pedaço por pedaço, lenta e quasi scientificamente, poupando com cautela os orgãos essenciaes á vida, afim de se saciarem, dia a dia, de carne sempre sangrenta e palpitante?

Mataria, oh, sim! aquelle homem... Tudo isso, porém, não fôra tão banal? Que valia esse rival de occasião? Eliminado da scena, outro o substituiria sem demora. Por tão pouco não se abate nem recúa a perfidia da mulher. Para que, aliás, essa suppressão de vida? Em muitos casos não é um favor a morte? Não representa a cessação da dôr, do soffrimento, da vergonha? Por ella não suspirava elle, como supremo bem? Sim, tambem tinha que morrer. No perpassar de todas as odientas combinações, intoleravel se lhe afigurava continuar a existir. Reservava essa tortura para Sofia; mas como transmudar tamanha concessão em martyrio constante, em angustias sem nome, em indizivel supplicio, calcando para sempre nos pés o seu orgulho, conspurcando-a perante a sociedade toda, arrastando-a com eterno labéo, imprimindo-lhe na fronte signal de inapagavel ferrete? Como?

Comparava os tempos anteriores ao amaldiçoado amor com tudo quanto ocorrera, uma vez ateada a criminosa e já tão flagiciada paixão. E a lembrança da esposa, tão boa em sua disccreta feição, o enchia de pavor. Fugia de aprofundar comsigo mesmo o incerto mysterio... aquella jenella aberta por noite frigidissima, em Buenos-Ayres, ella a dormir fraca dos pulmões, presa então de perigosa bronchite... depois a pneumonia dupla... as vascas de terrivel agonia num estreito quarto de hotel... Que momentos agora tão claros á sua memoria...Parecia os estar vendo; bastava fechar os olhos. A pobresinha, resignada, quasi a sorrir, enquanto as lagrimas lhe rolavam silenciosas pelas faces, apertando a mão assassina, implorando protecção contra a morte que chegava... elle, com o pensamento fixo no Rio de Janeiro, ardendo de impaciencia, brutalisando-a, doudo por vêr tudo acabado, concluso, findo, espreitando, espiando o ultimo estertor, o derradeiro suspiro, a convulsão suprema, que ia desatar as cadeias do abominado captiveiro... Que indigna contraposição! De um lado tanta pureza e resignação; do outro tamanha maldade, tão satanica e baixa ferocidade. E para que o monstruoso attentado? D’elle agora emergiam obrigatoriamente outros crimes, novas infamias.

Sentia-se condemnado. Justiça inteira havia de ser feita e pela propria mão. Era ponto decidido, indiscutivel já no seu espirito. Ficaria, porém, impune a causa de tantos males? Impossivel! Para beneficio de todos, cumpria esmagar ente tão pernicioso, inutilisar de vez encantos tão perigosos e lethaes.

E parafusava, sem se lhe deparar nada qu apaziguasse um tanto as iras exasperadas, em fremente ebullição. Depois... serenou. Mostrou-se por toda a parte altivo, calmo e indifferente. Tornou a frequentar theatros e logares, fallando no proximo enlace de Sofia com desembaraço e naturalidade, appaludindo-o até. Declarou-se curado de mal entendidas e pueris velleidades. Chegou a cumprimentar a moça e, uma feita que se encontrou cara a cara com ella apertou-lhe a mão sem nenhum constrangimento ou perturbação.

A varios amigos falou em proxima partida para terras longinquas, e ás rodas habituaes levou um todo, senão risonho, pelo manos de tranquila e digna compostura.

Publicaram-se então os primeiros proclamas do casamento de Lucio Barroso com Sofia Dias, a qual se suppunha afinal livre de qualquer complicação, toda radiante de alegria e felicidade, cada vez mais formosa, faceira e seductora, nos labios sempre rósco sorriso sobre nacarados dentes, bocca humida e appetitosa de tentar um santo.

Numa bella manhã, sobresaltou-se a cidade em peso. Acabá-ra de suicidar-se com um tiro de revolver Mario Campos.

Sem declarar o motivo d’esse acto, recommendava que dessem immediata publicidade e prompta execução ao testamento por elle depositado, dias antes, no cartorio do tabellião Matheus.

N’esse documento, feito de acordo com as mais restrictas formalidades, distribuia varios donativos a institutos de caridade e legava alguns bens a parentes de sua mulher. Terminava, porém, pelas seguintes e terriveis palavras, que causaram escandalo enorme, ecoando por todos os cantos da capital:

“Eternamente grato a não poucas provas de affeição e condescendencia, deixo os remanescentes, que calculo em 200 contos de réis, á minha amante D. Sofia Dias, devendo esse legado transmitir-se em qualquer tempo á successão ligitma ou illegitima, verificada em regra a filiação. Caso não seja a quantia reclamada logo, entregar-se-hão annualmente os juros á Misericordia.”

Dentro, duas cartas da imprudente moça, que se prestavam a muitas interpretações.

No meio da indignação geral, do profundo abalo de uns, revoltado pasmo de outros, da pungente ironia dos maldizentes e da compungida piedade dos bondosos, rompeu Lucio Barroso com estrondo o casamento; e a malaventurada Sofia, salteada de febre cerebral, por largas semanas esteve entre a vida e a morte.

Rumorejou-se as possibilidades de melindrosa justificação perante os tribunaes; mas, afinal, a familia toda, mãe e duas filhas menores, depois de mezes e mezes de sumiço, partiu para a Europa. Nunca mais se ouviu fallar, se não vagamente, em Sofia Dias; parece que por lá se casára.

Ainda não foi até hoje levantada a ominosa herança... Quem nos diz, que será sempre repellido o maldito e infamante legado?

Assim seja!