Urupês (5ª edição)/O estigma

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O estigma



UI um dia a Itaóca levado pelas simples indicações do sujeito que me alugou a cavalgadura: — Não tem errada. É ir andando. Em caso de duvida, pegue a trilha. dos carros, que vae certo.

Assim fiz, e lá cheguei sem novidade.

No dia da volta, porém, choveu á noite como só chove por aquelles sertões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado. Como me apagára o enxurro todos sulcos da carraria, alli fiquei um pedaço, feito o asno de Buridan, á espera d’algum passante que me abrisse os olhos. Não appareceu viva’lma, e a minha impaciencia empurrou-me ao acaso por uma das pernas do V embaraçador. Caminhei cerca de hora na duvida e, por fim, a vista d’uma fazenda desconhecida deu-me a certeza do transvio. Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o "ó de casa". Abre-m’o um negro velho occupado em abanar feijão no terreiro.

— O patrãosinho é lá em cima, na casa grande.

Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavallo, e subo pela escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial. Um grupo de crianças brincava por ali, em torno d’una fogueirinha de gravetos muito fumarenta.

— Fumaça para lá, santinha para cá.

Ao avistarem-me calaram-se, e fugiram, com excepção da mais taluda que permaneceu no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.

— Papae está?

Estava e ia chamal-o, respondeu, esgueirando-se pela casa a dentro. As outras, com o dedinho na bocca, vi-as a me espiarem da porta, onde logo assomou esbelta menina ahi entre 14 e 16 annos, d'avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.

— Faça o favor de entrar, — disse-me com linda voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam d'alto a baixo, num relance, — sente-se, e espere um bocadinho.

Sentei-me, gozando o delicioso frescor da sala e puxei conversa.

— A menina é filha do...

— Não senhor. Prima. Mas moro aqui des'que me morreram os paes.

— Tão nova e já orphan!...

— De pae e mãe. Tinha seis annos quando os perdi na febre amarella de Campinas. O primo trouxe-me de lá, e...

Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nella o dono da casa. Reconhecemo-nos incontinente, com igual espanto.

— Bruno! berrou elle. Que milagre!

— E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado!

Abraços, explicações, perguntas atropeladas. Fausto não cessava de admirar a coincidencia.

— Ha quantos annos não nos vemos? Dez pelo menos...

— Desd'a opa da collação. Como passa o tempo!...

— Pois meu caro, prendo-te por cá. Já não vaes sem conheceres o meu seio de Abrahão e matar bem matadas as saudades.

Durante estas expansõcs a micnina do avental não arredou pé da sala, e eu, volta e meia, regalava meus olhos na linda creatura que ella era.

Fausto, percebendo-o, apresentou-m'a:

— Laurita, nossa prima.

— Já nos conhecemos, disse eu.

— D'onde? exclamou surpreso.

— D'aqui mesmo, e de ha cinco minutos.

— Farcista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam um café.

A menina ao retirar-se poz no andar esse requebro que o instincto aconselha ás moças na presença de um moço casadoiro.

— Galantinha, hein? disse Fausto mal se fechou a porta.

— Linda! exclamei carregando com furia no i. Que frescura! Que corado!

— O corado corre á conta do forno. Estão lá todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Familia Leme, da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis mezes de roça com outros tantos de capital.

— Excellente vida. E' o sonho de toda a gente.

— Não me queixo, nem quero outra.

— Colheste, então, o pomo da felicidade?

Fausto não respondeu, e como o café entrasse no momento a conversa mudou de rumo. Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.

— D. Laurita, estou adivinhando que este foi enrolado pelas suas mãos, lamechei eu tomando um delles.

— Qual? acudiu a menina, esse que tem marca de carretilha?

— Sim.

Ella desferiu a mais argentina das risadinhas.

— Justamente os que têm marca são da Lucrecia...

— Ora você, cascalhou Fausto, a confundir as artes da prima com as da preta!

— Os meus são estes, disse Laura, apontando os não carretilhados.

Provei um, e :

— Realmente! exclamei, a differença é grande.

Novo "pizzicato" da menina.

—Pois a massa é a mesma, e tudo tempero da preta.

Fausto poz fim aos meus desazos convidando-me a sair.

— Estás muito chucro no galanteio. Vem d'ahi ver a criação, que é o melhor.

Sahimos e corremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins, as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a machina de café, todas essas coisas communs a todas as fazendas e que, no entanto, examinamos sempre com tamanho prazer.

Fausto era um fazendeiro amador. Tudo ali denunciava largo dispendio de dinheiro sem a preoccupação da renda proporcional ; trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para viver.

Ao jantar apresentou-me sua mulher. Não condisse com o molde que cá tenho da boa mulher a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar d'ave de rapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente má. Comprehendi o caso do meu Fausto: casára rico : a fazenda viera-lhe ás mãos por intermedio da esposa. Fausto, na presença della mudava de tom. De natural brincalhão, embezerrava-se n'uma sisudez que me desconcertou ; e isto me disse que casaram os bens, os corpos, mas não as almas. Tambem Laurita se cohibia, e as creanças mostravam um odioso "bom comportamento" de metter dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar duro e máu de senhora absoluta.

Foi um allivio o erguermo-nos da mesa. Fausto lembrára um gyro pelos cafesaes, e como já estivessem arreadas as cavalgaduras partimos. Logo depois voltou o meu amigo á expansibilidade anterior, com a alegre despreoccupação dos annos escolares. A conversa correu por mil veredas e por fim embicou para o thema casamento.

— Aquelle nosso horror á colleira matrimonial ! Como esbanjavamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado pelo escrivão... Lembras-te?

— E estamos ambos a pagar a lingua. E' sempre isto a vida : a liberrima theoria por cima e a trama férrea das injuncções por baixo. Somos, os homens, uma cadeia de contradicções. O casamento !... Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que não ha casamento, ha casamentos ; cada caso é um caso especial.

— Tendo aliás de commum, disse eu, um mesmo traço : restricção da personalidade.

— Sim. E' mistér que o homem ceda cincoenta por cento da sua, e a mulher outros tantos, para que haja o equilibrio razoavel a que chamamos felicidade conjugal.

— "Felicidade conjugal" dizes bem, restringindo com o adjectivo a amplidão do substantivo.

A vista do cafesal interrompeu-nos as confidencias. Era Setembro, e o aspecto das arvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremol-o em parte, gozando o "prazer paulista" de ver ondular por espigões e grotas a onda verde escura dos cafeeiros alinhados.

— No teu caso, perguntei, foste feliz ?

Fausto retardou a resposta, mastigando-a.

— Não sei. Cedi os cincoenta, e espero que minha mulher imite a minha abnegação. Ella porém, mais tenaz, embirra em não chegar a tanto. Procuramos o equilibrio, ainda...

— E Laura? perguntei estouvadamente.

Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em revelar-me o fundo de sua alma. Depois, como atravessassemos um sombrio pedaço de caminho com, barraneo acima, avencas viçosas, samambaias e begonias agrestes, disse, apontando para aquillo:

— Sabes o que é uma face noruega? Cá a tens. Não bate o sol, muita folha, muito viço, verdes carregados, mas nada de flores ou fructos. Sempre esta frialdade humida. Laura… é como um raio de sol matutino que folga e ri na face noruega da minha vida.

Calou-se, e até á casa não mais pronunciou palavra.

Comprehendi a situação do meu querido Fausto, e não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.


Deixei o Paraiso, que assim chamavam á fazenda, com tres impressões n'alma; deliciosa a da menina dos bolinhos, no seu avental azul, corada como as romãs; penosa a da megéra entrevista na creatura feia e má, rica o sufficiente para adquirir marido como quem adquire na feira um animal de luxo. A terceira não a define ahi qualquer adjectivo espipado, complexa, subtil em demasia para caber em moldes vulgares. Era o vago presentir de uma equação sentimental cujos termos — o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto, — vagamente perambulavam dentro da minha imaginativa, ás cabriolas.


Nunca tornei áquellas paragens, nem me fez encontradiço o acaso com nenhum dos tres personagens.

Este mundo, entretanto, é uma bola. Volvidos vinte annos estava eu parado ante um mostruario, no Rio, quando alguem me cotucou as costellas.

— Tu, Fausto !

— Eu, Bruno.

Envelhecera Fausto quarenta annos naquelles vinte de desencontro, e o tempo, ou o que quer que era, murchára-lhe a expansibilidade folgazan. Emquanto palestravamos, uma a uma subiam á tona da memoria as scenas e pessoas do Paraizo, a fascinante Laurinha á frente. Perguntei por ella, em primeiro.

— Morta, foi a resposta secca e torva.

Como nas horas claras do verão, nuvem erradia, tapando ás subitas o sol, põe na paizagem soalheira manchas mormacentas de sombra, assim aquella palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.

— E tua mulher? os filhos?

— Morta, a mulher. Os filhos por ahi, casados uns, o ultimo inda commigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo na vida, e principalmente não é para-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro á rua tal, apparece lá á noite que te contarei a minha historia — e gaba-te disso, pois serás a unica pessoa no mundo a quem revelarei o inferno que me saiu do Paraiso.


Eis o que ouvi:

"Quando a febre amarella de Campinas orphanou Laurita, eu, como o parente melhor condicionado, trouxe-a para a minha companhia. Tinha ella cinco annos, e já prenunciava nas graças infantis a cncantadora menina que seria.

Eu estava casado de fresco. Minha mulher — não o suspeitaste naquelle jantar? — era uma crealura visceralmente má. O "má" na mulher diz tudo : dispensa maior gasto de expressões. Quando ouvires de uma mulher, que é má. não peças por mais : foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos circulos que lá poz o Dante, e em lugar delles mettia, de guarda aos precitos, uma duzia de megéras. Haviam ellas de ver que paraiso eram, em comparação, os circulos...

Confésso que me não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo das promotorias, e a victoria rapida do casamento rico. Optei pela victoria rapida. descurioso de sondar por onde me levaria a aurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer o sacrificio. Errei. Com a experiencia de hoje, agarrava a mais mediocre das sinecuras. O viver que levamos não o desejo como castigo ao peior scelerado.

— A face noruega!...

— Era exacta a comparação, gelida como nos corria a vida conjugal no periodo em que, illudidos, contemporisavamos, tentando um equilibrio impossivel. Depois, tornou-se-me infernal.

Laura, á proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de corpo, alma e espirito um poeta concebe em sonhos para metter em poemas. Conluiava-se nella a belleza do diabo, propria da idade, com a belleza de Deus, permanente, e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria Siberia matrimomial, coração virgem de amor, não teve mão de si, succumbiu. No peito que suppunha calcinado, viçou o perigosissimo amor dos trinta annos. O vel-a deslisando pela casa como a fada mimosa da triste mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando em roda de si felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos annos adolescentes borbulharam no meu seio. Comprehendi a minha desgraça : eraum cego a quem se restituiam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um carcere, através de reixas encruzadas, a aurora, a luz, a vida — tudo inaccessivel... Victimava-me a peior casta d'amor — o amor secreto...

Correram mezes. Ao cabo, ou porque me trahisse o fogo interno, ou porque o ciume désse á minha mulher uma visão de lynce, tudo leu ella dentro de mim, como se o coração me pulsasse num corpo de crystal.

Conheci, então. um lugubre pedaço da alma humana, a caverna onde moram os dragões do ciume e do odio.

O que escabujou contra os "amasios" !

A caninana envolvia no mesmo insulto a innocencia ignorante e a nobreza d'um sentinento purissimo recalcado no fundo do meu ser.

Intimou-me a expulsal-a incontinente.

Resisti. Afastaria Laura. mas não com a ruteza exigida, de modo a me trahir perante ella e todo mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheu de assombro á "senhora". Tenho cá na visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a bocca, e tenho n'alma as cicatrizes das ascuas que espirraram aquelles olhos.

Apanhei a luva.

Estas guerras conjugaes de portas a dentro!... Não ha'hi lucta civil que se lhes compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira causa da perseguição.

Durou pouco isso. Escrevi a parentes, e concertava com elles a arrumação de Laura, quando... Não te recordas do bosque de pinheiros plantado em seguimento ao pomar?

— O pinhal d'Azambuja!

— Foi o nome que lhe puz, como andassem uns lagartões, seus freguezes, a me pilharem as capoeiras. Este pinhal era o passeio favorito de Laura. Emboscava-se alli com um livro, ou a costura, e dess'arte socegava um momento da inferneira domestica.

Um dia em que sahi á caça, menos pela caçada do que para retemperar-me da guerra caseira na paz das mattas, ao montar a cavallo via-a dirigir-se para lá com o cestinho do bordado. Demorei-me mais que o usual e em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora, feita, inda me lembro, de papo acima, sob a fronde duma guabirobeira.

Na volta as creanças esperavam-me na escada, assustadinhas.

— Papae não viu Laura?

Estranhei a pergunta, e mais vendo approximar-se a velha Lucrecia, que disse:

— Patrão, não vá ter acontecido alguma para nha Laurinha. Sahiu cedo, antes do café, já é quasi noite e até agora nada.

— A senhora... comecei eu a perguntar não sabia ainda o quê.

— Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, e depois se trancou por dentro, não quer enxergar ninguem, parece que comeu a caninana.

O coração palpitou-me violento e sahi em procura de Laurinha. Na colonia ninguem a vira. Lembrei-me do pinhal e organisei uma alvoroçada batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão reinante. Nada. Eu desanimava já de encontral-a por ali quando um capataz, desgarrado na frente, gritou:

— Está aqui o cestinho !

Corremos todos. Estava a cestinha, e mais adiante... o corpo frio da menina. Morta, a bala ! A blusa entreaberta mostrava no entre-seio a ferida mortal: um pequeno furo negro donde fluia para as costellas uma estria de sangue. Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver. Suicidára-se...

Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniencias, tudo, e beijei-a longamente, entre arquejos e sacões de angustia.

Trouxeram-n'a a braços. Em casa, minha mulher, então gravida, recusou-se a ver o cadaver com o pretexto do estado, e Laura desceu á cova sem que ella por um só momento deixasse a clausura. Note você isto: "minha mulher não viu o cadaver da menina".

Dias depois, humanisou-se. Deixou a cella, voltando á vida costumeira, muito mudada de genio, entretanto. Cessára a exaltação ciumosa do odio, vindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquissimas palavras lhe ouvi d'ahi por diante.

A mim o suicidio de Laura. sobre abalar-me o organismo como o peior dos terremotos, preoccupava-me como um enigma. Não comprehendia aquillo. Suas ultimas palavras na casa, seus ultimos actos, nada induzia o horrivel desenlace. Porque se mataria Laura? Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha mulher sabido ? Uma inspecção nos seus guardados não me esclareceu melhor ; nenhuma carta, ou escripto indicioso. Mysterio!

Mas correram os mezes e, por fim, minha mulher deu a luz um menino.

Que dia! doe-me a cabeça ao recordal-o...

A velha Lucrecia, auxiliar da parteira, veiu á sala com a noticia do bom successo.

— Desta vez foi um meninão, mas nasceu marcado.

— Marcado?

— Tem uma marca no peito, uma cobrinha coral de cabeça preta.

Impressionado com a exquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da creança e desfiz as faixas o necessario para examinar-lhe o peitinho. E vi... um estigma que reproduzia fielmente o ferimento de Laurinha: um nucleo negro. imitante ao furo da bala, e a "cobrinha", uma estria enviezada pelas costellas abaixo.

Um raio de luz inundou-me o espirito. Comprehendi tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a unica testemunha do crime e, mal nascido. denunciava-o com esmagadora evidencia.

— Ella já viu isto? perguntei á parteira.

— Não. Nem é bom que veja antes de sarada.

Não me contive.

Escancarei as janellas, derramei sol no quarto, despi a criança e pul-a nu'a ante os olhos da mãe, dizendo com frieza de juiz:

— Olha, mulher, quem te denuncia!

A parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as madeixas soltas, e cravou os olhos no estigma. Esbogalhou-os, como louca, á medida que lhe comprehendia a significação. Ergueu-os para mim, e aquelles olhos duros pela vez primeira se turvaram ante a fixidez inexoravel dos meus. Em seguida molleou o corpo, descahindo para os travesseiros, vencida.

Sobreveiu-lhe uma crise á noite. Acudiram medicos. Era febre puerperal sob fórma gravissima. Minha mulher recusou obstinadamente toda medicação, e morreu sem uma palavra, afóra as inconscientes, escapas nos momentos de delirio.


Mal concluira Fausto a confidencia daquelles horrores, abriu-se a porta e entrou na sala um rapaz imberbe.

— Meu filho, disse o pae, mostra ao Bruno a tua cobrinha.

A illusão era perfeita: lá estava a imagem do orificio aberto pelo projectil, e do fio de sangue escorrido.

— Veja você, concluiu o meu triste amigo, os caprichos da Natureza...

— Caprichos de Némesis... ia eu dizendo, mas o olhar do pae cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que fora elle proprio o eloquente delator.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.