Urupês (5ª edição)/Supplicio moderno
Supplicio moderno
ODAS as crueldades de que foi useira a Santa Inquisição para reduzir hereticos, as torturas requintadas da "questão" medieval, o empalamento ottomano, o supplicio dos mil pedaços, o chumbo em fusão metlido a funil gorgomilos a dentro, toda a velha sciencia de martyrisar subsiste ainda hoje encapotada sob habeis disfarces. A humanidade pe sempre a mesma cruel chacinadora de si propria, numerem-se os seculos anterior ou posteriormente ao Christo. Mudam de fórma as cousas; a essencia nunca varia.
Como prova denuncia-se aqui o avatar moderno das antigas torturas. o estafetamento.
Este supplicio vale o torniquete, a fogueira. o garrote, a polé, o touro de bronze, a empalação, o bacalháu, o tronco. a roda hydraulica de surrar. A differença é que estas engenharias matavam com relativa rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por annos a agonia do padecente.
Estafeta-se um homem da seguinte maneira: o governo, por malevola indicação d'um chefe regional, hodierno succedaneo do “familiar" do Santo Officio, nomeia a um cidadão estafeta dos correios entre duas cidades convisinhas, não servidas de via ferrea.
O ingenua vê no caso honraria e negocio; é honra penetrar na phalange gorda dos carrapatos orçamentivoros que pacientemente digerem o paiz; é negocio perceber ao termo de cada mez um ordenado fixo tendo a rutilar no futuro a cama fôfa da aposentadoria.
Aqui nota-se a differença entre os ominosos tempos medievos e os sobreexcellentes da democracia de hoje.
O absolutismo agarrava ás brutas a victima, e sem tir-te nem "habeas-corpus", trucidava-a a democracia opera com manhas de Tartufo, arma arapucas, mette dentro rodelas de laranja e espera aleivosamente que "sponte sua" caia no laço o passarinho faminto. Quer victimas ao acaso, não escolhe. Chama-se a isto arte pela arte.
Nomeado que é o homem, a principio não percebe o palvoeirão a sua desgraça. E' de ordinario ao cabo de um mez, ou dois, que entra a desconfiar; desconfiança que por gráos se vae fazendo certeza, certeza horrivel de que o empalaram no lombilho duro do peior matungo das redondezas, com, pela frente. cinco, seis, sete leguas de tortura a engulir por dia, de mala á garupa. Eis as pu'as do apparelho de tormento, estas leguas! Para o commum dos mortaes, uma legua é uma legua; é a medida duma distancia que principia aqui e acaba lá. Quem viaja, feito o percurso, chega, e é feliz. As leguas do estafeta mal acabam voltam "da capo", como nas musicas. Vencidas as seis (supponhamos um caso em que sejam sómente seis) renascem ellas na sua frente, de volta. E' fazel-as e desfazel-as. Teia de Penelope, rochedo de Sysipho, ha de permeio entre o ir e vir a má digestão do jantar requentado e a noite mal dormida e assim um mez, um anno, dois, tres, cinco, emquanto lhe restarem a elle nadegas. e ao sendeiro lombo.
Quando cruza um viandante a jornadear, morde-o a inveja: aquelle breve "chegará", ao passo que para o estafeta tal verbo é uma irrisão ironica. Mal apeia, derreado, com o coranchim em fogo, ao fim dos trinta e seis mil metros da caminheira, comido o máo feijão, dormida a má somneca, a aurora do dia seguinte estira-lhe á frente, á guiza de "bons dias" os mesmos maldictos trinta e seis mil metros da vespera, agora espichados ao contrario...
Breve, o animal pisado dá de si, fraqueia. Já os topes galga o cavalleiro a pé. Não possue meios de adquirir outra montada. O ordenado vae-se-lhe em milho e "rapador" para a ali-maria, agua de sal para os semicupios e mais remedios ás pizaduras de ambos, cavalgante e cavalgado. Não sobeja sequer para roupa.
Dá-lhe o Estado — o mesmo que custeia enxundiosas tatoranas burocraticas a conto, e baitacas parlamentares a cem mil réis por dia — dá-lhe o generoso e nababesco Estado... cem mil réis mensaes. Quer dizer "um real" por cada nove braças de tormento. Com um vintem paga-lhe 330 metros de supplicio. Vem a sair um kilometro de martyrio por 60 réis. Dôr mais barata é impossivel.
O estafetado entra a definhar de canceira e fome. Vão-se-lhe as carnes, as bochechas encovam, as pernas viram parenthesis dentro dos quaes móra o ventre do rocim desventurado.
Além das calamidades physiologicas, economicas e sociaes, chovem-lhe em cima as meteorologicas.
O tempo inclemente não lhe poupa judiarias. No verão não se dóe o sol de assal-o como se assam pinhões ao forno; se chove, de nenhuma gotta se livra; pelos fins de maio, á entrada do frio, é entanguido, como um subdito do Tzar na Siberia, que devora as leguas infernaes. No dia de S. Bartholomeu, agarrado de unhas á crina da escanzellada egua, é por milagre que não os despeja a ambos, perambeiras abaixo, o endemoninhado vento.
O patrão-governo presuppõe que elle é de ferro e suas nadegas de aço chromatado; que as estradas são umas ruas d'asphalto forradas de pellucia; que o tempo é um permanente céu azul com brisas fagueiras occupadas em soprar sobre os caminhantes os olores suaves da “balsamina em flor”. .
Presuppõe ainda que os cem mil réis do salario são uma paga real de lamber as unhas. E nestas angelicaes presupposições, quando ha crise financeira e lhe lembram economias, corta seus cinco, seus dez mil réis no pingue ardenado para que haja sobras permittidoras d'ir á Europa um cunhado bacharel, em commissão de estudos sobre “a influencia zygomalica do perihelio solar no regimen zarathrustico das democracias latinas”.
E assim o exercito dos estafetas, dia a dia mais escanifrado, encalacrado de dividas, enchagado de pisaduras, ao sol de Dezembro ou á garôa entanguente de Junho, trota, trota sem cessar, morro acima, morro abaixo, por atoleiros e areaes, caldeirões e escorregadoiros, sacudido pela miseranda cavalgadura que, de tanto padecer, coitada, já nem geito de cavallo tem. O lombo della é todo uma chaga viva; as costellas um ripado. Caricaturas contristadoras do nobre "Equus", um dia rebentam exhaustas, de fome, a meio da viagem.
O estafeta toma nas costas os arreios, a mala, e conclue a caminheira a pé. Como, porém, nesse dia chega fóra de horas, o agente do correio officia ao centro sobre a "irregularidade". O centro move-se; faz correr um papelorio alravez de varias salas onde, commodamente espapaçada em poltronas caras. a burocracia gorda palestra sobre espiões allemães. Depois de demorada viagem o papelorio chega ao gabinete onde impa á secretaria de embuia, fumegando um charuto "apprehendido", um sujeito de boas carnes e optimas cores.
Este vence 800.000 réis por mez, é filho d'algo, é cunhado, sogro ou genro d'algo, entra ás 11 e sáe ás 3 com uma folga de permeio para o chocolate no café da esquina. O canastrão corre os olhos mortiços de lombeira por sobre o papel e grunhe:
— Estes estafetas! Que malandros!
E assigna a demissão d'aquelle a bem do serviço publico.
Quando não acontece isso acontece peior. Certa vez o agente do correio d'uma cidadesinha paulista officiou ao centro queixando-se do estafeta. O centro respondeu autorisando-o a punir com severidade o faltoso. O nosso agente medita longamente sobre o caso: depois, mostrando o officio ao desgraçado. e com muita dor de coração, férra-lhe, em nome do Governo. a maior sóva de chicote de que ha memoria no lugar. Em seguida officia ao centro dando conta do cabal desempenho da missão e declarando que o serviço ficaria interrompido por uns quinze dias, visto o paciente estar de cama, a curar-se com salmoura. Mas casos destes são raros. O vulgar é a demissão.
O suppliciado, posto d'est'arte no olho da rua, sem saude, sem cavallo, sem nadegas, coberto de dividas, com o figado e mais visceras fóra do lugar, por via do muito que "chacoalharam". vê-se logo rodeado pela chusma dos credores avidos como urubu's de saladeiro. Como está nu, mais nu que Job, não póde pagar a nenhum. Ganha fama de caloleiro.
— Parecia um homem sério e no entanto roubou-me cinco alqueires de milho, diz o da venda, calabrez gordo, enricado no passamento de notas falsas.
— Tomou-me emprestados cem mil réis para um cavallo, a jurinho d'amigo (3 o|o ao mez) já lá vão cinco annos, e por muito favor me pagou o premiosinho e deu os arreios por conta. Que ladrão! — diz o onzeneiro, socio do outro na moeda falsa.
A loja de fazendas chóra umas calças de algodão mineiro que lhe fiou em tempo. A pharmacia um kilo de sal-amargo falsificado. E o martyr, abeberado d'insultos, só vê uma sahida: fincar o pé na estrada e fugir... fugir para uma terra qualquer onde o desconheçam e o deixem morrer em paz.
De modo que o moderno supplicio do estafetamento, além de xarquear as carnes duma creatura humana limpa de crimes, dá-lhe, de lambujem, uma bella mortesinha moral.
Tudo isto afim de que não falte aos soletradores e taes e taes bibocas desservidas de trem de ferro o pabulo diario da graxa preta em fundo branco, por meio da qual se estampam em lingua bunda as facadas que deu o Pé Espalhado no Camisa Preta, o queijo que furtou o Bahianinho ao Manoel da Venda, o "habeas-corpus" ao Caetano, o romance traduzido do Jorge Ohnet, os salvamento de patria da alta volataria nacional, o palavriado gordo das ligas d'isto e d'aquillo, a descoberta de espiões onde nada ha que espiar, a polycultura. o zebu', o analphabetismo, o alliadismo, o germanismo, as polocas da Havas. e quanla papalvice gréla por massapés e ferras roxas neste paiz das arabias.
A politica do coronel Evandro, em Itaóca. deu com o rabo na cerca. des'que em tal pleito o competidor Fidencio. tambem coronel, guindou a colação dos votos de gravata a quinhentos mil réis o os de pé no chão a dois parelhos de roupa, mais um chapéo. O primeiro acto do vencedor foi correr a rasoura do Olho da Rua em tudo quanto era olhodarruavel em materia de funccionalismo publico. Entre os roçados estava a gente do correio, inclusive o estafeta, para cuja substituição se inculcou ao governo o Izé Biriba.
Era este Biriba um caranguejo humano, lerdo de maneiras e atolambado d'ideas, com dois precalços tremendos na vida, a politica e o topete. O topete era um palmo de grenha teimosa em lhe cahir sobre a testa, e tão insistente nisto que gastava elle metade do dia erguendo a mão esquerda á altura da fronte para, n'um movimento machinal, botar p'r'arriba a crina rebelde. A politica escusa dizer o que é.
Colligados, topete e politica, comiam-lhe ambos o tempo inteiro de geito a não sobrar a Biriba folga nenhuma para o amanho do sitio que, afinal, roido pelo cupim da hypotheca, lá foi parar ás mãos d'um calabroz velhaco.
Montou em seguida botequim, mas falliu. Emquanto arrumava o topete os freguezes surrupiavam-lhe os mata-bichos; e nas cavaqueiras politicas os correligionarios, de passo que expelliam diatribes contra os Zés de cima, sorviam capilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe á conta da victoria futura.
Além do topete tinha Biriba o sestro do "sim senhor" alçado ás funcções de virgula, ponto e virgula, dois pontos e ponto final de todas as parvoiçadas emittidas pelo parceiro: e ás vezes, pelo habito, quando o freguez parando de falar entrava a comer, continuava Biriba escandindo a "sim senhores" a mastigação do bolinho filado.
Ao tempo da quéda do outro e subida da sua gente, andava reduzido á conspicua posição de phosphoro eleitoral.
No pleito trabalhou como nenhum; deram-lhe os chefes as peiores missões, — acuar eleitores tabareus embibocados nos socavões das serras, negociar-lhes a consciencia, debater preço de votos, barganhal-os com eguas lazarentas, e provar aos desconfiados, com argumentos de cochicho ao ouvido, que "o governo estava com elles".
Após a victoria sentiu Biriba, pela primeira vez na vida, um gozo integral de coração, cabeça e estomago.
Vencer! Oh nectar! Oh ambrosia!
Biriba regalou as visceras com o petisco dos deuses. Até que emfim os negrores de sua vida miseravel alvorejavam em aurora. Comer á farta, serrar de cima... Delicias da vida!
Que lhe daria o chefe?
No antegozo da pepineira imminente, viveu a rebolar-se em camas de rosas, até que rebentou a sua nomeação para o cargo de estafeta. Sem quéda para aquillo, quiz reluctar, pedir mais; entretanto, na conferencia que teve com o chefe, as objecções que lhe chegavam á bocca transmutavam-se no habitual "sim senhor", de modo a convencer o coronel de que realisava elle um ideal.
— Vê você, Biriba, quanto vale a fidelidade. Pilhas um empregão! Vae o Regino para agente e você para estafeta.
O mais que pôde allegar foi que não tinha cavalgadura.
— Arranja-se, resolveu de prompto o curonel, tenho lá uma egua moira, passo picado, legitima, que vale duzentos mil réis; por ser para você, dou-a por metade. O dinheiro? E' o de menos. Tomas emprestado ao Leandrinho. Arranja-se tudo.
O arranjo foi adquirir Biriba a egua trotona pelo dobro do valor, com dinheiro tomado a tres por cento ao mez ao tal Leandro, que outra cousa não era senão o tesla de ferro do proprio Fidencio. Dess'arte, carambolando, o matreiro chefe punha a juros o peior sendeiro da fazenda, além de conservar pelo cabresto da gratidão ao idiota estafetado.
Iniciou Biriba o serviço: seis leguas diarias a fazer hoje e a desfazer amanhã, sem outra folga além dos dias trinta e um dos mezes impares.
Inda bem se fôra devorar as leguas na só companhia da chupada mala postal. Mas não lhe saiu serena assim a empreza. Como Itaóca não passasse de mesquinho logarejo, empoleirado no espinhaço da serra e desprovido de tudo, não transcorria vez sem que amigos politicos o não procurassem com encommendas a aviar na cidade. A' hora de partir surgiam aproveitadores com listinhas na mão, de miudezas, ou recados, por pretinhos.
— Sinhá disse assim p'rá suncê comprar tres carreteis de linha cincoenta, um papel de agulhas, uma peça de cadarço branco, cinco maços de grampo miudo e, se sobejar um tostão, p'ra trazer uma bala de apito p'r'o seu Juquinha.
Muitas vezes todos aquelles artigos existiam em Itaóca, um tantinho mais caros, porém; o encommendal-os fóra visava apenas a economia do tostão da bala de apito.
— Sim senhor, sim senhor.
Não lhe escapava da bocca outra palavra, embora o exasperasse a continuada repetição do abuso. Além das pequenas encommendas, pouco trabalhosas, surgiam outras de vulto, como levar um cavallo arreado ao sr. Fulano que vinha em tal dia, acompanhar a mulher de Etcetrano, e que taes. A Tiburcia, cosinheira preta do collector, cada vez que ia de ferias descançar á cidade, era o Biriba o indicado para conduzil-a.
Foi como o conheci, guardando costas ás amazonas. De viagem para Itaóca, a meio caminho, topo um homem encavalgado na mais avariada egua que jámais viram meus olhos. A' garupa iam malas do correio e varios picuás; no sant'antonio mais picuás, além d'uma vassoura nova, enfiada na perneira, com a palha para cima. Estava parado, em attitude idiotisada, segurando pelo cabresto um cavallinho de silhão. Abordei-o, pedindo fogo. Acceso o cigarro, indaguei de quem montava a cavalgadura vasia.
— Não vê que estou acompanhando a Dona Engracia, que é parteira em Itaóca; ella apeou um bocadinho e...
Ouvi rumor atraz: sahia do matto uma mulheraça rubida, de saias tufadas de gomma, tendo na cabeça um toucadinho coevo de S. M. Fidelissima.. Para não vexal-a, puz-me a caminho, não sem, voltando a cara de soslaio, regalar-me com os apuros do estafeta para entalar sobre as andilhas as sete arrobas da parteira alliviada.
E descomposturas...
— Seu Biriba, não foi linha 40 que eu encommendei. O senhor parece bôbo!
Quando a fazenda era má:
— Não viu que a chita desbotava? Que moda!
Doia-lle, sobretudo, carretear para a execravel gente da opposição. O coronel contrario não se pejava de, por intromissão de terceiro, neutro on opposicionista encapotado, abusar da boa fé do martyr.
Lembrava-se Biriba, com dôr d'alma, d'um bóde de raça que lhe déra grandes trabalhos pelo caminho e varias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificou que vinha o caprino destinado ao inimigo. Toda a gente gozou do caso entre espirros de riso e galhofa.
— E' um "pax-vobis" este Biriba! Trazer o bóde da opposição! quiá! quiá! quiá!
Estas e outras foram-lhe azedando os figados e visceras circumvisinhas. Emmagreceu, amarellou.
A egua, coitada, perdeu a feição cavallar. Seu lombo sellára em meia lua, de modo que por um nadinha não raspavam o chão os pés do cavalleiro. Montado, Biriba afundava. Sua cabeça cahia quasi ao mesmo nivel duma linha tirada da anca ás orelhas. Horrendamente pisada, a miseranda bicha trazia nos olhos permanentes lagrimas de dôr; mas em vez de tanta mazella mover ao dó o coração duro dos itaóquenses, regalava-o, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acerca do "Estafeta da Triste Figura mais a sua Bucephala”; como os baptisou um engraçado local.
Lazarento como elles só o Cunegundes. Era este Cunegundes um cachorro sem dono, coberto de sarna, que perambulava atôa pela cidade a fugir das moscas e dos pontapés. Pois não mudaram o nome de Cunegundes para Biribinha? Cachorrada!
Não tardou viesse o governo dar sua vollinha ao torniquete, cortando dez mil réis no ordenado dos estafetas, para salvar-se em certa occasião de apuros financeiros. E salvou-se, esta é que é.
Roupa no fio. A' entrada das chuvas uma alma caridosa presenteou Biriba com uma velha capa de borracha; mas no primeiro aguaceiro verificou o presenteado que a tal capa vasava como peneira, de modo a peiorar a sua situação com a sobrecarga d'um pannejamento absorvedor le varios litros d'agua.
Biriba, perdida a paciencia, murmurou:
Ai! Soube-o logo o chefe, e chamou-o a contas.
— Então é certo que o senhor me anda arrenegando do emprego que lhe demos? Queria acaso ser eleito senador ou vice-presidente? Um pedaço de porcalhão que andava ahi lambendo embira, morre não morre de fome, passa, por generosidade nossa, a occupar um cargo federal, com direito a aposentadoria, ordenado relativamente bom... (aqui Biriba tossiu um "sim senhor")... encontra todas as facilidades, recebe um bom animal, e ainda se queixa? Que quer, então, Vossa Excellencia?
Biriba entumeceu-se de coragem e declarou querer uma coisa só: a demissão. Estava doente, surradissimo, ameaçado de perder a egua e as adegas de um momento para outro. Queria mudar de vida .
Muda-se, então, de vida assim, do pé para a mão? Quer abandonar os amigos? E a disciplina partidaria onde fica, meu caro palerma?
Não convinha a ninguem a sahida de Biriba.
Quem mais serviçal? Lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos de trazer um papel d'agulhas fosse para quem fosse. Não sahiria. Itaóca impunha-lhe o sacrificio.
Mas a tortura do diario chocalhar por sete leguas das visceras do Biriba acabou por desconjuntar nelle o cimento da lealdade politica. O martyr abriu os olhos. Lembrou-se com saudades dos ominosos tempos do coronel Evandro, das delicias do botequim e até do calamitoso periodo de degradação phosphorica. Peiorára após a victoria, não havia duvida.
Este livre exame de consciencia — crêde-me — foi o inicio da quéda do coronel Fidencio. Biriba, o firme esteio, apodrecia pelo nabo. Viria abaixo, e, com elle, a cumieira do pardieiro politico. Na sua alma vascolejada a vibora da trahição armou o ninho.
Como o novo pleito estava ás portas, nova victoria seria para o estafeta novo triennio de martyrio. Biriba ponderou de si para sua egua que a salvação de ambos estava na derrota. Demittiam-n'o e elle, veterano e martyr do fidencismo, continuaria com jus ao apoio do partido sem padecer pela via coccygeana o contacto odioso das sete horas diarias de socado.
Deliberou trahir.
Na vespera da eleição incumbiu-o Fidencio de trazer da cidade um papel importantissimo para o tribofe das urnas. Sei lá o que era. Um "papel". A palavra "papel", dita assim em tom de mysterio, traz no bojo "coisas"!
Não pesco de eleições. Não sei positivamente se um "papel", que não o mikado, terá força para decidir dessas almorreimas sociaes. Sei, porém, que tudo dependia do "papel", e tanto, que a missão do Biriba era secreta. Fidencio frisou a gravidade da incumbencia, a maior prova de confiança jamais dada por elle a um cabo eleitoral.
— Veja lá! A nossa sorte está nas suas mãos. Isto é que é confiança, hein?
Partiu Biriba; recebeu na cidade o "papel" e rodou para traz. A meio caminho tomou certa errada, foi ter á biboca d'um negro velho, soltou a egua e pegou de prosa com o gorilha. Cahiu a noite e Biriba deixou-se ficar. Alvoreceu o dia seguinte, e Biriba quieto. Dez dias se passaram assim. Ao cabo, arreou a egua, montou e botou-se para Itaóca como se nada houvéra acontecido.
Foi um assombro a sua apparição. Baldadas as tentativas para apanhal-o no dia do pleito e nos posteriores, deram-n'o todos como papado pelas onças, elle, egua, mala postal e "papel". Vel-o agora surgir sãosinho e socegado, foi um abrir de bocca e um pasmar á villa inteira. Que foi? Que não foi?
Biriba a todas as perguntas armava na cara a suprema expressão da idiotia. Nada explicava. Não sabia de nada. Somno cataleptico? Feitiço? Não comprehendia o succedido. Afigurava-se-lhe ter partido na vespera e estar de volta no dia emprazado.
Ficaram todos maravilhados, com asnissimas caras. Fidencio delirava na cama com febre cerebral. Perdera a eleição redondamente. "Derrota fedida", arrotavam os do Evandro, atuchando foguetes d'assobio.
Em consequencia do inexplicavel eclypse do estafeta senhoreou-se do rebenque o exominoso Evandro. Começou a derrubado. O olho da rua recebeu em seu seio tudo quanto cheirava a fidencismo. A vassoura da demissão, porém, poupou a... Biriba. O novo cacique approximou-se delle e disse:
— Demitti toda a canalha, Biriba, menos a você. Você é a unica cousa que se salva da quadrilha do Fidencio. Fique socegado que do seu lugarsinho ninguem o arranca, nem que o céu chova torquezes!
Biriba pela derradeira vez em Itaóca balbuciou o "sim senhor". A' noite deu um beijo no focinho da egua e sahiu de casa pé ante pé. Ganhou a estrada e sumiu. E nunca mais ninguem lhe pôz a vista em cima...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.