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Varias Poesias

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VARIAS

POESIAS

DE

PAVLO

GONÇALVEZ D’ANDRADA


OFFERECIDAS

A FRANCISCO DE FARIA
SEVERIM,
Chantre na See d’Euora, &c.


EM COIMBRA.

Com todas as licenças neceſſarias

Na Officina de Manoel Dias Impreſſor da
Vniuerſidade anno 1658.

Licença do Santo Officio.


POdeſe tornar a imprimir eſte liuro das poeſias de Paulo Gonçauez d’Andrada, & depois de impreſso tornará ao Conſelho para ſe conferir, & ſe dar licença para correr, & ſem ella não correrà Lisboa. 27 de Abril de 1657.

Pacheco. Souſa. Magalhaẽs.
Rocha. Castilho.


POdemſe imprimir viſtas as licenças que moſtra do Santo Officio. Coimbra 9 de Outubro de 1657.

Magalhaẽs.


QVe poſsaõ imprimir eſtes liuros, & não correrão ſem tornarem a meza pera ſe taixarem Lisboa 5. de Dezembro de 1657.

Matos Monteiro. Marchão Velho.

TAxão eſte liuro a cem reis em papel, a 25. d’Abril de 1658.
Mattos. Monteiro. Marchão.

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QVERO dar a minha impreßão o credito mais abonado com a eſtampa do iluſtre nome de V.M. & com as flores da primauera alegre de ſeus annos acrecentar a eſtimação ao florido deſtas poeſias. Aceite V.M. o acerto de minha eleição para teſtemunho certo do agrado, com que catiua as vontades mais alheas. Natureſa, ou imitação ſerà,q V.M. herdou, ou que aprendeu daquelle illustre no ſangue, iminente nas letras, eſclarecido nas obras o ſenhor Manoel Severim de Faria Chantre da Catedral de Euora tio, & anteceßor de V.M. Conhecerà o mundo, que daquellas ſinſas frias com o calor da virtude viua de V.M. renace, como Fenix a memoria de tão inſigni Varão. . Os Authores deſtas obras com taõ luzida ſombra viuirão izentos das ſombras do eſquecimento. Eſta impreßão illuſtrada com o rayo de tanta luz lograrà eterno ſeu luzimento, & eu trocarei a liberdade de meu affecto bem empregado pellos grilhoẽs de hũa obrigação eternizada. O Ceo guarde a peßoa de V.M. por felices annos, para que o mundo todo logre os ricos fruitos, que prometem flores tão luzidas. Coimbra.20 de Março de 1658.

Manoel Dias.

AO LEITOR.
EStudos de menores annos, mal ſe podem liurar de deſacertos; porem, como diſculpallos fora deſconhecellos, me anima a imprimir o meſmo que me pudera deſconfiar; quanto mais que quando nelles ſe arriſque a reputação, que importa perder o que não tenho? Pareceme que satisfaço com tirar a luz a menor parte delles, por que o molesto ſe ſalue no breue: para reprouados, ainda ſaõ muitos & para aplaudidos poucos baſtão. Se iſto lhes não valer, apello para a variedade dos juizos, adonde não ay couſa tão deſalentada, que não ache votos em ſeu fauor. Os que lho derem, antes os quero apetitoſos, que enfastiados, poupandolhes na breuidade deſta, o goſto para a ſegunda parte, & os que lho negarem, em ſua mão està fazer o liuro mais breue, cerrandoo donde lhes parecer.
De Dom Franciſco Rolim de Moura, ſenhor da Caſa d’Azambuja.

TRaslado daquelle intento,
Que temerario ſe atreue
Comprender em termo breue
Quanto alcança hum penſamento,
Seguindo o entendimento
Os longes que diſto alcança
Em voſſa Esfera deſcança;
Donde abſorto em floria tanta
Vè que a fama vos leuanta
Sobre a mayor eſperança.

De Manoel de Faria, & Souſa.

TAõ altamente, ò Paulo engenho, & arte,
No acento teu gentil ſe remontaraõ,
Que nenhum termo grande me deixarão,
Paraque a ti ſem ti poſſa louuarte.

A imitar deſſe pletro a menor parte
Deſejos de aplaudirte me inflamarão,
E de o não conſeguir ſe deſculparaõ
Com que era competirte ou imitarte.

Tu ſó te louua a ti que para tanto
Licenciandote eſtão noſſas enuejas,
Que elogios te hão de ſer mais numeroſos.

Logra por gloria em noſſo mudo eſpanto,
Que quando culpa de enuejoſos ſejas,
Seràs diſculpa vfana de enuejoſos.

Reposta.

EStilo, erudição, engenho, & arte.
Tanto nos verſos teus ſe remontarão,
Que admiraçoẽs ſòmente me deixaraõ,
E ſómente capaces de louuarte.

Mas ſe do altino eſprito a melhor parte,
Que enuejas ſoberanas me inflamaraõ
Em vão ſe atreue; bem na diſculparão
Deſejos impoſſiueis de imitarte.

Offendes com o louuor, pois podes tanto,
Que originando em mi nouas enuejas,
Me confundes com verſos numeroſos.

Feliz offenſa pois, & não me eſpanto
Que quando offenſa do que louuas ſejas,
Ache atè nas offenſas enuejoſos.

Flores amarelas em cabellos negros.
XXXXV.

DItoſas flores, que na altiua esfera,
Donde viue glorioſa a Fermoſura
Pola mão colocadas da ventura,
Logrando, eſtais, eterna primauera,

Neſsa que grauemente reuerbera
Diuina esfera, bellamente eſcura,
Luzes fereis de Amor, com que affigura,
Quem das glorias que buſca deſeſpera.

Gloria ſereis da terra, em que nacidas,
Foſtes em feliz forte, para eſtrellas,
No ceo, donde Amor viue, introduzidas,

E ſe Amor vos elege por mais bellas.
Serão da altiua esfera deſpedidas
Rayos de Amor as flores amarellas.

A hũa dama em trajos de homẽ cõ eſpada.
XXXXVI.

POr ter a monarchia mais figura,
Que ſobolas vontades adquiria,
Fazendo belicoſa a monarchia,
Fez Lizis varonil a fermoſura.

Tanto no trajo alheo ſe affigura,
Que em varonil aſpeito, parecia,
Feroz, a quem por bella obedecia,
Bella a quem por feroz fugir procura.

De diferentes armas adornada,
Em diferentes habitos reparte,
Trofeos aos olhos, & trofeos à eſpada;

Em ſeu fauor, por natureza, & arte
Grato fez o rigor, a graça armada
Armando a Amor, & deſarmando a Marte.

A hum paſſaro que eſtaua com o bico na boca de hũa dama.
XXXXVIII.

PIntada voz, hahitador do vento,
Muſica flor, eſpiritu canoro,
Que exprimes, brando, no volatil coro
Das aues todas o milhor acento,

Ditoſo tu, que do rigor izento,
Que dentro n’alma finto, e n’alma choro,
Colhes da boca de rubi, que adoro.
Cò o bico de criſtal o doce alento.

Se obedecendo a teu ſonoro encanto,
O premio de ofreceo, que me deuia,
Canta meu mal, ou preſtame teu canto:

O canto alcance, o que chorar pedia,
E pois a pena nunqua pode tanto,
Co as armas vencerei da melodia.



Ao ouro.


VII.


I.


LOuro metal, que la do centro eſcuro
Da terra que no centro te eſcondia
Saiſte a ver o dia,
Por mãos do ferro, mais que o ferro duro,
E mais que o ferro artifice de guerra,
Tiraniſando a terra
Soberbo foſte, bradamente forte,
Adquirindo o poder da propria morte.

II.


Indigno foy de nome generoſo
Quem penetrando abòbadas eſcuras,
Vio das entrañas duras,
Da terra, anatomiſta riguroſo.
Os reconcauos intimos, adonde
Puſta, a terra te eſconde,
Pois, crendo que a teu jugo ſe redime,
Entre grilhoens de marmore te oprime.

III.

EM ſeu rigor, piedoſamente eſquiua,
Quanto ao trato comum te dificulta
No centro em que te oculta
Em carceres te poem de penha viua;
Auara conſeruando deſte modo
A paz do mundo todo,
Porque ſoberbo em diligencias tantas,
Com os Imperios do mundo te leuantas.

IIII.


Com preſunção de intrepido & de altino,
A effeito trouxe, de ſeu proprio dano,
Atreuimento humano
Do luminoſo ardor, ardor nociuo;
Porem mais temerario atreuimento,
Por impulſo violento,
Te fou buſcar, em deſtruição do mundo,
Palida furia, ao Baratro profundo.

V.

A Violencia trouxeſte, a fraude impia,
Perturbadoras de ſoſſego humano;
E diſculpando o engano,
Fizeſte ley da propria tirania,
O trato fiel, o inexpugnauel muro
He por ti mal figuro,
Pois figurada em vão, deixa rendida,
Danae a honra, & Polidoro a vida.

VI.


Tu deſte alentos ao primeiro pinho,
Para que, arando o campo nunqua enxuto,
Largaſſe, reſoluto,
Azas aovento de delgado linho;
Tu quebrantaſte a paz ao mar ſagrado;
E enganando o cudado,
Porque eſqueça o perigo com a memoria,
Dêſte ao perigo titulos de gloria.

VII.

TV ſó, por inſolente reſpeitado
Ao vulgo, ſuperior dos metais todos,
Cobras por varios modos
Lugar ſobola ſorte colocado;
E em virtude da propria formoſura,
Andas ſobre a ventura,
Aclamado do mundo não ſómente
Rey dos metais, mas Idolo da gente.

AO ILLVSTRISSIMO

ſenhor Dom Affonſo Furtado de
Mendoça Arcebiſpo de Liſboa,
& gouernador dos Reynos
de Portugal.

(:★:)
Canção VIII.
I.

O Vòs da Luſitana monarchia
(cõ o peſo ſeu caduca, & bacilãte)
Vnica gloria, & ſingular coluna
De cujos ombros o reparo fia,
Contra os irados impitus baſtante,
Tanta vez repetido da fortuna;
Iuſtamente repugna,
Auenturarſe a pena, juſtamente,
Acreditando o proprio deſatino,
Quando ſubir intente
Humana pena a merito diuino,
Porem, calificando o detrimento,
Do perigo fará merecimento,
Quando de tanta luz precipitada,
No deſcredito fique acreditada.

II.

A Admiração que fala mudamente,
Lingua immortal, da verdadeira fama,
Chegue, donde não chega humano alento
E em confuſas rezoens ſẽpre eloquente,
Nas vozes miſterioſas, que derrama,
Sò capazes dum grão merecimento,
Ao mundo todo, atento
A voſsas obras, voſſas obras diga,
Que a atenção, que futil as conſidera,
Poſto que tanto as ſiga,
Tanto de comprehendellas deſeſpera,
Que porque eterno voſso nome fique
O encomenda ao ſilencio, que o publique,
Que rethoricamente, bem que mudo,
Fala o ſilencio, quando cala tudo.

III.

CLaro Mendoça, que do tronco claro
De tanto Heroes, ramo produzido,
Feliz compendio ſois de ſeus valores;
Do tronco digo, que em prodigio raro,
Heroes daua por fruto eſclarecido,
Trofeos por folhas, & valor por flores;
De illuſtres anteriores
Toda a virtude em vos recopilada,
Arrimo ſois, em cuja figurança
A Patria fatigada
De ſobreſaltos tremulos deſcança;
Ià ſobre toda a terra dilatado,
Sois dos limites della reſpeitado,
Tudo cubris de ſombra, & voſsa ſombra
Ampara a Patria, como o mũdo aſsombra.

IV.

AS heroicas virtudes, de que ornando
Obras glorioſas, dais a illuſtre effeito
Nobre reſoluçoens, que o peito cria,
Generoſos indicios eſtão dãdo
Deſse que reuervera em voſso peito
Eſprito claro que vos rege, & guia
Aſſi o autor do dia.
No reſplandor, que prouido reparte,
Nos influxos, que feliz comunica
Igual em toda a parte,
Superior calidade juſtifica;
E aſſi, por ſeus effeitos conhecidos
Argumentado he, não comprehendido,
Na ordem delles, no gouerno dellas,
O grão Motor dos ceos, & das eſtrellas.

V.

DE ſacras letras, de valor ornado,
O claro entendimento, o peito forte
(Diferença que em vòs ſò vejo vnida)
As immortalidades conſagrado,
Duas vezes liure do poder da morte,
Cobrais duas vezes immortal a vida,
Sem que o ſoſsego impida
Os impulſos do peito generoſo,
A hum meſmo tẽpo belico, & prudente,
Prudente, & belicoſo,
Letras, & armas vſando juntamente,
Fizeſtes, por valor, ſe não por arte,
A Apolo valeroſo, & dou to a Marte,
Quanto na alta o caſião, que vos abna,
Veſtio Minerua as armas de Belona.

VI.

VOſſa prudencia juſtamente elegem,
Dos dous Imperios alta inteligencia,
Heſpanha & Roma, cada qual prudente.
E das glorioſas machinas que regem,
Tomando parte em ſi voſſa prudencia,
Deſcança cada qual glorioſamente.
Ao trabalho aſſiſtente
Do Cetro Real, do Paſtoral cajado,
Aos magiſterios ambos vigilante,
Alternando o coidado,
Sois dambas as Esferas nouo Atlante,
E exercitando miſtico o gouerno,
Tanto no temporal, como no eterno,
Do ſacro Peſcador, do grão Monarcha,
Dũ gouernais o Imperio,& doutro a Barca

VII.

ESte imperio, Senhor, que dilatado,
Os berços, & o ſepulcro, vè do dia,
Remotos fins da fabrica do mundo;
A vida deue a quem no campo armado
Vida lhe deu com o ſangue, que vertia,
Primeiro Affonſo, & Marte não ſegundos
Ià com ſaber profundo,
Quãdo cõ ſangue não, nas mãos da morte,
Outro Affonſo lhe dà ſegunda vida,
Quando ao ridor da forte
A calidade intrepida abatida,
O brio natural, de que ſe armaua
A vontade dos fados inclinaua;
D’alto poder effeito conueniente,
Que ſe hũ Affonſo o fũdou, q̇ outro o ſuſtete.

VIII.

IA por voſsos diſcurſos defendida
A Patria nhum ſò muro mais ſigura,
Alentos cobra nouamente agora;
Porque, em diſtintos membros diuidida,
Os horrores do Heſpero figura
E figura os crepuſculos da Aurora;
Que de tudo ſenhora,
Cò o vigor que lhe dais alenta tudo.
E vos para outras obras deſtinado,
Bem que felice eſcudo
Do Reyno ſeis por eleição do fado.
Parece, que vos vejo transformada
A veſte roxa em Purpora ſagrada,
E que vos guardão jà decretos graues
Dos Erarios de Pedro as ſacras Chaues.

IX.

IMmortal ſempre nas memorias ande,
Quanto humedece o mar, o Sol inflama,
Voſſo nome em ſi meſmo colocado,
E vos mayor, que voſſo nome grande,
Dando nouos eſpiritus á fama,
Sede por voſſo nome eterniſado;
E poſto que enuejado,
Para que eterna voſſa gloria ſeja,
Entre os meſmos perigos mais figura,
A admire a propria enueja,
A eſtableça beneuola a ventura,
E ſempre fauſto ireis, & ſempre Auguſto,
Do merito ſubindo ao premio juſto,
Eterniſado contra a morte impia,
Adonde nace, & donde morre o dia.

FIM.

Poſto que n’algũs lugares destas Poeſias, ſe achem hiperboles, perque ſe compare a fermoſura humana a couſas diuinas, vſando muitas vezes de termos encarecidos, como ſão Deoſa, Ceo, Inferno, com os atributos de diuino, eterno ſoberano, & outras ſemelhantes formas Poeticas. Aduerte o Autor, que ſomente uza dellas como adornos da Poeſia ſem tenção de ſe deſuiar em nada dos verdadeiros dogmas de noſsa Sancta Fee, a que ſe ſomete em todos ſeus eſcritos.