Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Ardentias/Canção

Wikisource, a biblioteca livre
CANÇÃO

Quando passas, bem amada,
— Clarão, perfume, harmonia —
Raia o sol e rompe o dia
Na minh’alma deslumbrada.

E, vendo-te, ó meu suplicio,
Tenho a vertigem imensa
De uma criança suspensa
Na borda de um precipicio.

Como um sonambulo errante
Que vae pela noute fóra
Vendo ao luar hesitante
Vagos prenuncios de aurora,

No olhar com que nem me fitas,
Noute, noute sempre escura
— Cheio de ilusõis bemditas,
Sonho auroras de ternura.

Quando acaso me acontece
Ouvir-te a fala suave,
Enlevado, me parece
Que a vida é um gorjeio de ave.

Nesta tristeza em que eu ando
Tua voz canta em minha alma
Como um rouxinol cantando
Dentro de uma noute calma.

Passas, e eu vejo-te; falas
E ouço-te a voz: e esse pouco
Enche de esplendidas galas
Toda a minh’alma de louco.

Mas vais-te — e vai-se comtigo
Tudo quanto, num momento,
A minh’alma, esse mendigo
Sonhou num sono ao relento...

Sómes-te como se apaga
O sol envolto na bruma,
Ou como o floco de espuma
Que nasce e morre com a vaga;

E eu, estatico e tristonho,
Embebo o olhar no teu rastro...
O’ tu que vens como um astro,
O’ tu que vais como um sonho!