Viagem ao norte do Brasil/Ao Rei (2)
AO REI
Senhor.
A principal razão, que moveo os antigos a collocar entre os Deoses a maior parte dos seos Imperadores, foi o espirito religioso d’elles manifestado durante a vida.
Coisa notavel na historia: ainda que alguns imperadores levantados da infima classe até ao cume do poder, se tenham mostrado crueis e sanguinarios para com seos subditos, comtudo alcançaram, após sua morte, o nome de Deoses, tiveram Templos e altares, sacrificios e sacerdotes, creados e nomeados pelo senado em virtude da piedade e da religião, que conservaram inalteraveis no meio dos seos muitos defeitos.
Estes monarchas, grandes em dominio e pequenos no conhecimento do verdadeiro Deos, tinham innato em seo coração o amor pela Magestade divina, de que são viva imagem todos os monarchas, e por isso lhes pertence estender o reino de Deos como seos Loco-tenentes.
Com esta intenção espalhavam arcos e tropheos, columnas e imagens para o ensino da religião, e á posteridade legavam chapas e laminas de metaes indistructiveis, como sejam o bronze, o ouro, e a prata, onde se viam gravadas as suas imagens, e com ellas alguns vestigios da sua piedade, cuja memoria o tempo não póde destruir.
Antonino, o pio, assim deixou buriladas em bronze e prata, sua caridade e religião representadas na imagem de uma mulher, vestida como Deosa, tendo em frente um altar onde se achava um pouco de fogo ardendo constantemente, e no qual ella derramava á todo o instante, como em sacrificio, oleos odoriferos, mostrando com isto a Piedade e Religião, que consagrava aos Deoses.
Si a inclinação natural, sem o auxilio da graça e da luz sobrenatural, podesse tanto no coração d’estes monarchas, o que podemos dizer e pensar quando Deos inspira o coração dos reis illustrados e ricos da verdadeira religião?
Luiz 4.º, imperador, principe virtuoso e geralmente estimado á todas as suas occupações preferia a Religião, e para animar todos os seos subditos á imital-o, mandou cunhar o dinheiro com a figura de um templo atravessado por uma cruz, e ao redor lia-se a inscripção — Christiana Religio.
O que excedeo, Senhor, a todos os Monarchas do Mundo, em piedade, e religião, foi São Luiz, a honra dos francezes, e de quem herdastes sangue e sceptro, nome e imitação de suas virtudes, porque não só empregou seos thesouros e sua nobresa, mas tambem sua pessoa, atravessando mares, (mares, que, como a morte, não fazem distincção quando querem involver alguem nas suas ondas) afim de erguer a piedade e a religião, abatidas pela crueldade dos infieis, e n’esta tarefa morreu.
Até hoje ainda não houve seculo algum de Rei, tão parecido com o do bom São Luiz, como o vosso, Senhor, e deixando á parte o que não vem a proposito, eu tomarei somente este bello feito, com que imitastes sua piedade e religião, para com esses pobres selvagens, desejosos em extremo de conhecerem a Deos, e de viverem á sombra de vossas luzes, como sejam os habitantes de Maranhão, de Tapuytapera, de Cumã, de Cayté, do Pará, alem dos Tabaiares e os Cabellos-compridos e muitas outras Nações, que muito ambicionavam aproximarem-se dos Padres, como direi adiante.
Tudo isto, Senhor, só vós podeis, porque os indios naturalmente gostam dos francezes e aborrecem os portuguezes: os nossos religiosos apenas podem arriscar suas vidas para convertel-os, porem pouco duraria isto a não ser a vossa real piedade.
Não é empresa tão difficil como se calcula, e nem tão cheia de cuidados e de gostos, como se suppõe: não serão precisos 500 ou 1:000 escudos, pois basta mediocre liberalidade, porem bem administrada para a sustentação do seminario, onde se devem educar os filhos dos selvagens, unica esperança da firmesa da religião n’aquelle paiz.
Si V. M., Senhor, se resolver a fazer isto, asseguro-vos que o vosso exemplo será imitado por muitos Principes e Princezas, Senhores e Damas, que contribuirão com alguma coisa para o augmento da fé n’aquelles logares.
Para que eu não canse a V. M. com desagradavel prolixidade, acabarei com esta historia evangelica da pobre Chananea, reputada como cadella, a qual pedia, para livrar sua filha do poder do Diabo, apenas as migalhas, que cahiam da meza real do Redemptor.
Descende do mesmo Pae de Chananéa esta nação de selvagens, e seos filhos estão no dominio do diabo, como infieis: ella não pede nem vossos thesouros, e nem grande quantia, e sim apenas as migalhas superfluas, que cahem, aqui e ali, da vossa real grandesa.
Por tudo isto, Senhor, eu humildemente vos supplico, que olheis com bons olhos para esta pobre Nação, e que recebaes com animo bem disposto este pequeno Tratado das coisas mais notaveis acontecidas durante a minha residencia entre elles por espaço de dois annos, conforme as ordens da Rainha vossa Mãe, dadas aos nossos Rvds. Padres, que procurei cumprir tanto quanto me foi possivel, como vereis quando lerdes essa minha obra, cujo trabalho, si merecer a vossa approvação, dar-me-hei por muito bem recompensado em quanto viver, e toda a existencia, que por Deos me fôr concedida, eu a empregarei em servir fielmente a V. M., como aquelle que é e sempre será de
V. M.
subdito muito humilde e fiel,
Frei Ivo d’Evreux,
Capuchinho.