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Viagem ao norte do Brasil/I/XIX

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CAPITULO XIX

Quanto são aptos os selvagens para aprenderem sciencias e virtudes.


Quando regressei das Indias para a França, pelas frequentes e constantes perguntas, feitas pelas pessoas, que me vinham visitar, reconheci quanto é difficil acreditarem os Francezes, que os selvagens sejam aptos para aprenderem sciencia e virtude, e não sei se alguns chegam a ponto de julgar estes povos antes do genero dos macacos, do que dos homens.

Em quanto a mim elles são homens, e provarei, e por tanto capazes de obterem sciencia e virtude.

Seneca na sua epistola 110 disse «Omnibus natura dedit fundamenta semenque virtutum.» A natura deo a todas as creaturas, sem excepção de uma só, as raizes e as sementes das virtudes, palavras mui notaveis: assim como as raizes e as sementes são lançadas na terra e por conseguinte enterradas em suas entranhas, assim tambem Deos lançou naturalmente no espirito do homem as raizes e as sementes da virtude: com taes alicerces pode o homem, ajudado por Deos, edificar um predio, e extrahir da semente uma bella arvore carregada de flores e de fructos, doutrina esta muito bem provada por S. João Chrisostomo, na Homilia 55, ao povo de Antiochia, e na Homilia 15 á respeito da Epistola 1ª á Thimotheo moralisando esta passagem do Genesis: — Germinet terra, herbam virentem, e omne lignum pomiferum, «produsa a terra herva verdejante ou arvore fructifera:» acrescentou ainda — Dic ut producat ipse terra fructum proprium et exibit quicquid facere velis, «dize e ordena á tua propria terra, que produza seo fructo natural, e verás ella produzir logo o que pedires.»

São Bernardo, no Tractado da vida solitaria, disse — virtus vis est quædam ex natura, «a virtude é uma certa força, que sahe da natureza.»

Se assim não fôr, quero provar por muitos exemplos, começando pelas sciencias, para cujo ensino concorrem as tres faculdades da alma — vontade, intelligencia, e memoria: a vontade dá ao homem o desejo de aprender, e por ella vencemos toda a sorte de trabalhos e difficuldades: a intelligencia dá vivacidade para comprehender, e a memoria guarda e conserva o que conheceo e aprendeo.

São mui curiosos os selvagens de saber novidades e para satisfazer tal desejo, os caminhos e a distancia das terras, por maiores, que sejam, lhes parecem curtos, não sentem a fome, porque passam, e os trabalhos como que são descanço para elles: prestam-vos toda a sua attenção, escutam o que disserdes durante o tempo que vos parecer, sem enfado e em silencio, á respeito de Deos, ou de qualquer assumpto, e se tiverdes paciencia, elles vos farão milhares de perguntas.

Lembra-me, que entre as praticas, que eu lhes fazia ordinariamente por intermedio do meo interprete, eu lhes disse que apenas chegassem de França os Padres, elles mandariam edificar casas de pedra ou de madeira, onde seriam recolhidos seos filhos, aos quaes os Padres ensinariam tudo o que sabem os Caraibas.

Responderam-me: oh! quanto são felizes nossos filhos por aprenderem tão bellas coisas, oh! quanto fomos infelizes nós e os nossos antepassados por não haverem Principaes n’esse tempo.

É viva sua intelligencia como reconhecereis pelo seguinte facto.

Não ha estrellas no Ceo, que elles não conheçam e calculam pouco mais ou menos a vinda das chuvas e as outras estações do anno.

Pela phisionomia distinguem um Francez de um Portuguez, um Tapuyo de um Tupinambá, e assim por diante.

Nada fazem antes de pensar, e pezam em seu juiso uma coisa antes de emittir sua opinião. Ficam serios e pensativos, porem não se precipitam em fallar.

Mas, dizeis vós, como é possivel que estas pessoas tenham tal juiso fazendo o que fazem?

Porque elles dão por uma faca cem escudos de ambar gris, ou qualquer outra coisa, que apreciamos, como sejam: ouro, prata e pedras preciosas.

Eu vos direi a opinião que elles fazem de nós, muito contraria n’este ponto: julgam-nos loucos e pouco judiciosos em apreciar mais as coisas, que não servem para o sustento da vida do que aquellas, que nos proporcionam o viver commodamente.

Na verdade, quem deixará de confessar, ser uma faca mais necessaria á vida do homem, do que um diamante de cem mil escudos, comparando um objecto com outro, e pondo de parte, a estima que se lhe dá?

Para provar que não lhes falta juiso afim de avaliar a estima que fazem os Francezes das coisas existentes em sua terra, basta dizer, que elles sabem altear muito o preço das coisas, que julgam ser apreciadas pelos francezes.

Um dia disseram-me alguns, que era preciso haver muita falta de madeira em França, e que experimentassemos muito frio para mandarmos navios de tão longe, a mercê de tantos perigos, carregarem de paus.[NCH 36]

Respondi-lhes que não era para queimar e sim para tingir de cores.

Replicaram-me: porque nos compraes o que cresce em nosso paiz a troco de vestidos vermelhos, amarellos e verde-gaios? Eu os satisfiz dizendo ser necessario misturar outras cores com as do seo paiz para tingir panos.

Si me disserdes, que elles fazem acções inteiramente brutaes, como as de comer seos inimigos, e praticar tudo que os offenda, como seja expol-os em lugares onde ha piolhos, vermes, espinhos, etc., eu vos responderei não provir isto de falta de juiso, porem sim de um erro hereditario, sempre existente entre elles, por pensarem, que sua honra depende de vingança: parece-me, que tambem não é desculpavel o erro dos nossos francezes de se matarem em duello, e comtudo vemos os mais bellos espiritos, e os primeiros da nobreza concordarem com este erro, despresando a Lei de Deos, e arriscando a eternidade de sua salvação.

Quanto a memoria elles a possuem muito feliz, porque lembram-se sempre do que viram e ouviram com todas as circumstancias do lugar, do tempo, das pessoas, quando o caso se disse ou se executou, fazendo uma geographia ou descripção natural com a ponta de seos dedos na areia, do que estão contando.

O que mais me admirou foi vel-os narrar tudo quanto se ha passado desde tempos immemoriaes, somente por tradicção, porque tem por costume os velhos contar diante dos moços quem foram seos avós e antepassados, e o que se passou no tempo d’elles: fazem isto na casa grande, algumas vezes nas suas residencias particulares, acordando muito cedo, e convidando gente para ouvil-os, e o mesmo fazem quando se vesitam, porque abraçando-se com amisade, e chorando, contam um ao outro, palavra por palavra quem foram seos avós e ante-passados, e o que se passou no tempo em que viveram.