Viagem ao norte do Brasil/I/XLIII
CAPITULO XLIII
Ha outra caçada de um verme, tão divertida e agradavel como as precedentes, é a dos ratos domesticos e selvagens.
Não comem os domesticos, ao menos que eu saiba, porem caçam-nos cruelmente; porque si entra um rato em qualquer casa, reunem-se todos os habitantes, uns com arcos, e outros com flechas e paus, e com o auxilio tambem de alguns cães não escapa o pobre rato.
Depois de morto é espetado na ponta de uma vara, fincada no meio da aldeia, para servir de alvo ao exercicio das flexas dos meninos.
As aldeias mais proximas dos portos, onde chegam navios, tem mais ratos, porque apenas sentem a terra, atiram-se as ondas, nadam, trocando assim o seo paiz natal, que é o mar, para ficar n’um paiz mais firme e seguro, que é a terra.
Comem os ratos selvagens, que vivem nos bosques e no dizer d’elles é comida deliciosa.
Caçam-nos assim: cavam um buraco no meio de um certo lugar no matto, fazem varias entradas, similhantes ás coelheiras, ou terreiros de coelhos: reunem-se depois muitos sujeitos, armados de paus, e vão fazer grande alarido ao redor d’esse fosso, como se costuma fazer nas caçadas dos lobos.
Batem as mattas, e d’ellas fazem sahir os ratos, e elles fugindo, e encontrando esses buracos tão proprios para se occultarem, ahi entram, e então aproximando-se os selvagens, toma cada um conta do seo buraco, e entrando outros dentro do fosso, á cacete matam os ratos, dividem-nos igualmente, e regressam para a aldeia trazendo cada um o que lhe tocou.
Assam os ratos ao fumeiro ou sobre carvões, abrem-nos por diante sem lhes tirar a pelle, a qual fazem tostar depois que o animal está cozido por dentro, para não perder a gordura, e depois os guardam dentro de uma porção de farinha.
São estes ratos assim preparados, guardadas as proporções, mais apreciados do que os javalys e os viados, e as vezes trazem os selvagens quantidade incrivel d’elles.
Caçam as formigas em tempo de chuva, por ser a epocha propria d’ellas mudarem de habitação.
As que podem vôar buscam a região do ar, deixando suas casas, feitas e cavadas na terra.
As outras, si por instincto natural desconfiam, que podem as agoas invadir suas grutas, e estragar seos armazens, celleiros, ou dispensa, pegam na bagagem, com ordem digna de ser mencionada, e auxiliadas com a experiencia, como vou contar para servir de modello a todas as outras.
Na nossa casa de S. Francisco, no principio das chuvas um milhar de milhões de formigas sahio de uma caverna, perto d’ahi, e veio tomar posse de um canto do meo quarto, onde cavou camaras, ante-camaras e celleiros.
N’uma bella manhã sahiram todas, e trouxeram um alqueire, talvez, de ovos, indo em diversas estações, isto é, em distancia de 2 passos uma da outra.
Cada acervo trazia suas formigas em ordem, vindo descarregar cada uma o que trazia no montão proximo, e assim iam fazendo os outros acervos ou companhias.
Admirei-me de vêr tantas formigas, e tantos ovos, que deitavam mau cheiro.
Mandei fazer bom fogo, e atirar sobre estes ovos, e no caminho por onde passavam estes animaes.
Puzeram-se em alarme, e cada uma buscou salvar os ovos que poude, como fez Eneas á Anchises, seo pae na destruição de Troya.
Não fui tão bem succedido, porque regressaram ao lugar que haviam escolhido, não pensando talvez, que me incommodassem, o que assim não aconteceo, porque reunindo-se todas por espaço de 2 dias, deliberaram ir a pilhagem fóra do quarto, mostrando-se contentes com a habitação, que bem a meo pesar lhes dei.
Causar-vos-hia satisfação vendo estes animaesinhos, desde o amanhecer até ao anoitecer, fazer suas provisões, que são as folhas de uma certa arvore, em cujos ramos, como presenciei, estavam muitas para cortal-as e deixal-as cahir em terra, onde cada formiga pegava no que podia e levava para os armazens.
Tinham aberto dois caminhos, muito bons para o seo tamanho: por um iam as carregadas, e por outro as desembaraçadas, evitando assim a confusão e a mistura, embora fossem mais de quatrocentas as carregadeiras. O mesmo fazem as outras especies de formigas.
É para admirar-se tambem a especie de abobadas, que com admiravel industria fazem quando querem caminhar abrigadas.
Caçam os selvagens somente as formigas grossas como o dedo pollegar, para o que aballa-se uma aldeia inteira de homens, mulheres, rapazes e raparigas.
A primeira vez que vi esta caçada, não sabia o que era, e nem onde hia tão apressada tanta gente deixando suas casas para correr após as formigas voadoras, as quaes agarram mettem-nas n’uma cabaça, tiram-lhes as azas para frital-as e comel-as.
Caçam-nas tambem por outra maneira, e são as raparigas e as mulheres que, sentando-se na bocca da caverna, convidam-nas a sahir[NCH 70] por meio de uma pequena cantoria, assim traduzida pelo meo interprete.
«Vinde, minha amiga, vinde vêr a mulher formosa, ella vos dará avelans.»
Repetiam isto á medida que iam sahindo, e que iam sendo agarradas, tirando-se-lhes as azas e os pés.
Quando eram duas as mulheres, cantava uma e depois outra, e as formigas que então sahiam, eram da cantora.
Causa admiração vendo-se os grandes pedaços de terra, que tiram de suas cavernas.
No tempo das chuvas tapam os buracos do lado das enchurradas, e deixam somente aquelles, por onde pode vir a chuva raras vezes.
As formigas do Maranhão tem dois inimigos encarniçados, especialmente estas alladas: um — certa especie de cães selvagens,[NCH 71] com pello de lobo, fedorentos o mais que é possivel, focinho e lingua muito aguda, e que procura o formigueiro para alimentar-se: outro, uma qualidade de formigas corpulentas, que de ordinario nascem com as outras, como o zangão entre as abelhas, e em quanto são pequenas e fracas, trabalham conjuntamente sem fazerem barulho, e nem se offenderem.
Quando grandes e fortes deixam as outras, fazem bando á parte, só e só, não vivem mais em companhia, e põem se de embuscada pelo caminho, onde costumam passar suas irmãs e parentas, como fez antigamente Abimelech, bastardo de Gedeon, sobre os 70 filhos legitimos de seo pae, seos proprios irmãos, os quaes matou todos sobre uma pedra em Ephra.
Sirva d’isto ao leitor para applicar como julgar acertado.
Eis como os nossos selvagens se distrahem mais utilmente com estes animaes, do que os nossos rapazes com as borboletas: de tudo se aproveitam e nada perdem, reunindo o util ao agradavel.
Vejamos o resto.
A caça dos lagartos, chamados pelos Tupinambás — Tarure (os grandes) e Toju (os pequenos,) é feita por diverso modo,[NCH 72] conforme são da terra ou do mar.
Os maritimos habitam ordinariamente as praias cobertas de mangues, onde, duas vezes dentro do espaço de 24 horas, entra o mar.
Ahi nutrem-se de carangueijos, de mexilhões, e de camarões, vulgarmente chamados em França — lagostins, e de peixes, que apanham na enchente.
Poem seos ovos nos concavos das arvores.
Os selvagens caçam-nos e flecham-nos na vasante; enterrando-se pelo tujuco.
Para comida servem tanto como os coelhos, ou uma grande lebre, conforme o tamanho do animal.
Fervem-nos para fazer mingau, ou assam-nos ao fumeiro.
Os francezes assam-nos ao espeto, bem untado de gordura de peixe-boi, e a primeira vista pensareis que são coelhos ou lebres espetadas.
O guisado, que d’elles se faz, é muito parecido com o das lebres e coelhos, e muitos francezes gostam mais d’elles do que os nossos coelhos.
Eu antes quero crêr do que provar.
A caça dos lagartos terrestres é mais de meninos que de homens, embora tenha visto alguns homens atraz delles, como os meninos, e até 20 selvagens, homens e rapazes, atraz de trez lagartos.
Apenas os pilham, assam-nos, e toma cada um a parte, que lhe pertence e acham-na muito boa.
Os rapazes apenas os veem correr pela casa, nas paredes ou nas arvores, flecham-nos, porem escolhem os maiores por que tem mais que comer: alguns tem o comprimento de um braço e a mesma largura.
Ha outros vermes, que não sahem das arvores, deitados sobre folhas, expostos ao sol: dizem os selvagens que são venenosos, e por isso os deixam: não se assustam com a vossa presença, si não os perseguirdes.
Parecem-se com os camaleões, de que ainda fallarei, tem brilho nos olhos, e a côr de escarlate.
Costumam estes lagartos domesticos á juntarem-se e unirem-se em forma de bolla, de tal maneira que a cauda do macho toca a cabeça da femea, e reciprocamente, e assim todos curvados, tocam-se as duas cabeças e as duas caudas.
Tive medo quando vi isto pela primeira vez, porque não sabia o que seria, e nem si era alguma especie de serpente, com quatro olhos, e um só corpo enrolado.
Os lagartos femeas são mais grossos do que os machos.
Os pequenos lagartos poem ovos, de cinco até sete cada um do tamanho da cabeça do dedo minimo, n’um buraco, que cobrem de areia, fazendo o resto o calôr do sol.
Os lagartos grandes põem ovos maiores, á proporção do seo corpo, e ordinariamente fazem ninhos nos tectos das casas, nos bosques, e para ahi levam tudo o que acham ser molle, como sejam musgos, pennas, algodão, farrapos, e frequentam muito a casa si não lhes fazem mal.
Fazem tanto barulho como um cão, quando caminham e conduzem na bocca o que acham, e é um prazer vel-os em tal lida.
Não fazem caminho direito quando construem seo ninho, e antes usam de muitos rodeios para não serem descobertos.
O sol chóca e faz abrir seos ovos, porque são muito frios e não tem calor proprio para isso.
São caçados por cobras grandes e horriveis, umas brancas como agoa, outras de côr de violeta, e finalmente algumas manchadas de diversas côres.
Invadem até as casas para nos tectos caçarem estes lagartos, que apenas as presentem ao longe, fogem como se a casa tivesse pegado fogo.
Mandei matar tres cobras d’estas n’um domingo, quando eu e meos companheiros fomos dizer missa na capella de S. Francisco, onde as achamos perseguindo os lagartos grandes, dos quaes já tinham matado muitos.
Pagaram tal temeridade levando cada uma mais de cincoenta cacetadas, e ainda se salvariam, si eu não as mandasse cortar em pedaços, que viveram e remecheram-se por mais de 24 horas procurando reunirem-se o que não conseguiram por estarem distantes umas das outras, talvez por quatro ou cinco passos.
Os selvagens tem muito horror d’estes lagartos, e dizem ser venenosos.
Os lagartos, quando velhos, perdem sua cauda, que fica negra, e por isso mesmo é fragil como vidro, e quebra-se por qualquer causa.
Não creio, que ellas renasçam, embora o affirme Aristoteles.
Fundo-me no que observei n’um lagarto grande, que estava na nossa casa de S. Francisco, onde se conservou por dois annos sem cauda, vindo diariamente comer em nossa presença, com as galinhas com que se familiarisou.
Dizem, e os francezes o asseveram por experiencia, que ha uma especie de lagartos grandes que apanham os frangos, e levam-nos para o matto, onde vão comel-os.