Viagem ao norte do Brasil/I/XXI
CAPITULO XXI
Ordem e respeito da naturesa entre os selvagens, observada inviolavelmente pela mocidade.
O que mais me impressionou e admirou durante os dois annos, que estive entre os selvagens, foi a ordem e respeito observado inviolavelmente pelos moços para com os seos parentes mais velhos, ou entre elles, fazendo cada um o que permitte a sua idade sem cuidar do que se acha no mais alto ou no menor grau.
Ninguem deixará de admirar-se commigo vendo a naturesa somente ter n’estes barbaros o poder de fazel-os guardar o respeito, que os meninos devem a seos maiores, e fazer conter a estes no que é exigido pela diversidade das idades.
Quem não se hade admirar vendo a naturesa somente ter mais força para fazer observar estas coisas, do que a Lei e a graça de Jesus-Christo sobre os Christãos, entre os quaes raras vezes se contem a mocidade nos seos deveres, apesar de todos os bons ensinos, mestres e pedagogos, apparecendo sempre confusão e grande presumpção.
Muito praser terei si o caso seguinte nos der algum remedio.
Distinguem os selvagens suas idades por certos graus, e cada grau tem no
espicio de sua entrada, seu nome proprio, que ensina ao que pretende entrar em seo palacio os seos jardins e alamedas, a sua occupação, e isto por enigmas, como eram outr’ora os Hierogliphos dos Egypcios.
O primeiro grau é destinado as crianças do sexo masculino e legitimos e dão-lhe em sua lingua o nome de Peitan, isto é, «menino sahindo do ventre de sua mãe.»
Á este primeiro grau da idade do menino é inteiramente cheio de ignorancia, de fraqueza e de lagrimas, base de todos os outros graus.
A natureza, boa mãe d’estes selvagens, quiz que o menino sahindo do ventre de sua mãe, se achasse em estado de receber em si as primeiras sementes do natural commum d’estes selvagens, porque não é afagado, pensado, aquecido, bem nutrido, bem tratado, nem confiado aos cuidados de alguma ama, e sim apenas lavado em algum riacho ou n’alguma vasilha com agua, deitado n’uma redezinha de algodão, com todos os seos membros em plena liberdade, nus inteiramente, tendo por unico alimento o leite de sua mãe, e grãos de milho assados, mastigados por ella até ficarem reduzidos á farinha, amassados com saliva em forma de caldo, e postos em sua boquinha como costumam a fazer os passaros com a sua prole, isto é, passando de bocca para bocca.
É bem verdade, que quando o menino é um pouco forte, por conhecimento e inclinação natural, ri-se, brinca e salta, nos braços de sua mãe, pensando estar mastigando sua comida, levando seo bracinho á bocca d’ella, recebendo no concavo de sua mãosinha este repasto natural, que leva á bocca e come: quando se sente farto, bota fóra o resto, e virando a cara, e batendo com as mãos na bocca da mãe, lhe dá a entender que não quer mais.
Obedece a mãe promptamente não forçando seo apetite e nem lhe dando occasião de chorar.
Si o menino tem sêde, por gestos sabe pedir o peito de sua mãe.
Em tão tenra idade mostram o respeito e o dever, que a natureza lhes dá, porque não são gritadores, comtanto que vejam suas mães, e ficam no lugar onde os deixam.
Quando vão trabalhar nas roças ellas as assentam nuasinhas na areia ou na terra, onde ficam caladinhas, ainda que o ardor do sol lhes dê no rosto ou no corpo.
Qual seria de nós, que hoje poderia viver soffrendo na primeira idade tantos encommodos?
Esperam os nossos paes a retribuição e dever, que principiamos a pagar-lhes desde a primeira idade, si não estão cegos pelo amor que nos tem; o mesmo devem esperar nas outras idades, sendo mais reconhecidos os nossos deveres para com elles, custe o que custar-nos.
Começa a segunda idade, quando o menino anima-se a andar sosinho, e apezar de haver alguma confusão da-se-lhe o mesmo nome.
Observei differença na maneira de criar os meninos, que não sabem andar, e os que se esforçam para o fazer, o que nos leva a formar outra classe, e dar-lhe nome proprio: chama-se Kunumy-miry, «rapazinho»[NCH 38] e abrange até 7 a 8 annos.
Durante este tempo não se separam de suas mães, e nem acompanham seos Paes, e o que é mais, deixam-nos mamar até que por si mesmo aborreçam o peito, habituando-se pouco a pouco ás comidas grosseiras como os grandes e adultos.
Dão lhes pequenos arcos e flexas proporcionaes ás suas forças, reunindo-se uns aos outros plantam e juntam algumas cabaças, nas quaes fazem alvo para o tiro das suas flechas adextrando assim bem cêdo seos braços.
Não açoitam, e nem castigam seos filhos, que obedecem a seos paes e respeitam os mais velhos.
È muito agradavel esta idade dos meninos, e n’ella podereis descobrir a differença existente entre nós pela naturesa e pela graça: sem fazer comparação, acho-os mimosos, doceis e affaveis como os meninos francezes, não esquecendo antes tornando bem saliente a graça do Espirito Santo concedida pelo baptismo aos filhos dos Christãos.
Si acontece morrerem os meninos n’esta idade, tem os paes pesar profundo, e sempre se recordam d’elles, especialmente nas cerimonias de lagrimas e lamentações, recordações que fazem uns aos outros, lastimando esta perda e a morte dos seos filhinhos, dando-lhes o nome de Ykunumirmee-seon «o menino morto na infancia.»
Vi mães, quase loucas, no meio de suas roças, ou nas matas sosinhas, em pé ou agachadas, chorando amargamente, e quando lhes perguntava para que faziam isto, respondiam-me «Oh! recordo-me da morte de meos filhinhos, Ché Kunumirmee-seon, ainda na infancia» e depois continuavam a chorar e muito.
È na verdade mui natural o ter pesar da perda e morte d’estes meninos, que ja haviam custado tantos trabalhos á seos paes, e que estavam na edade de dar-lhes alguma alegria.
Acha-se a terceira classe entre estas duas primeiras — infancia e puericia, e as da adolescencia e virilidade, entre os 8 a 15 annos, a que chamamos mocidade: appellidam-nos os selvagens simplesmente por Kunumy sendo a infancia chamada Kunumy-miry, e a adolescencia Kunumy-uaçu.
Estes Kunumys, ou rapazes, na idade do 8 a 15 annos, não ficam mais em casa e nem ao redor de sua mãe, e sim acompanham seos paes, tomam parte no trabalho d’elles imitando o que vêem fazer: empregam-se em buscar comida para a familia, vão as matas caçar aves, e ao mar flechar peixes e admira vêr a industria com que flecham as vezes tres a tres peixes juntos, ou agarram em linha feita de tucu ou em pussars, especie de rêde de pescar, que enchem de ostras e outros mariscos, e levam para casa. Não se lhes manda fazer isto, porem elles o fazem por instincto proprio, como dever de sua idade, e já feito tambem por seos antepassados.
Este trabalho e exercicio mais agradavel do que penoso, e proporcional a sua idade, os isenta de muitos vicios, aos quaes a naturesa corrompida costuma a prestar attenção, e a ter predilecção por elles.
Eis a razão porque se facilita á mocidade diversos exercicios liberaes e mecanicos, para distrahil-a e desvial-a da má inclinação de cada um, reforçada pelo ocio mormente n’aquella idade.
A quarta classe é para os que os selvagens chamam Kunumy-uaçú, «mancebos»: abrange a idade de 15 a 25 annos, por nós chamada «adolescencia.»
Tem outro modo de vida, entregam-se com todo o esforço ao trabalho, acostumam se a remar, e por isso são escolhidos para tripularem as canôas quando vão á guerra.
Applicam-se especialmente a fazer flexas para a guerra, a caçarem com cães, a flechar e arpoar peixes grandes, não usam ainda de Karacóbes, isto é, de um pedaço de pano atado na frente para encobrir suas vergonhas, como fazem os homens casados, e sim de uma folha de Palmeira.
Tem o poder de dividir o que possuem com os mais velhos, reunidos na Casa-grande, onde conversam, e servem tambem os mais velhos.
É n’este tempo, diga-se a verdade, que elles mais ajudam a seos paes e mães, trabalhando, pescando e caçando, antes de se casarem, e portanto sem obrigação de sustentarem mulher: eis porque sentem muito seos paes quando elles morrem n’esta idade, dando-lhes em signal de sua dor o nome de Ykunumy-uaçú-remee-seon, que quer dizer «o mancebo morto» ou «o mancebo morto na sua adolescencia.»
Abrange a quinta classe desde 25 até 40 annos, e se chama Aua o individuo n’ella comprehendido, vocabulo aplicado a todas as idades, assim como usamos com o nome homem.
Apesar d’isto ser privativo d’esta idade, assim como o homem é pelos Latinos chamado vir, á virtude, e em Francez idade viril, de virilidade, quer dizer — a força, que no homem chegou a seu termo: n’esta mesma lingua de selvagens a palavra Aua, de que procede Auaté, quer dizer «forte, robusto, valente, audacioso», para significar a 5ª idade dos seos filhos.
N’essa occasião como guerreiros são bons para combater, nunca porem para commandar: buscam casar-se, o que não é difficil por consistir o enxoval da noiva apenas de algumas cabaças, que lhes dá sua mãe para principiar sua casa, vestidos, e roupas, ao contrario em nosso paiz as mães fornecem enfeites e pedras brancas a suas filhas.
Os paes dão por dote aos maridos de suas filhas 30 ou 40 toros de pau de tamanho proprio a poderem ser levados á casa do noivo, os quaes servem para com elles se accender o fogo das bodas: o individuo casado de novo não se chama Aua, e sim Mendar-amo.
Embora sejam casados o homem e a mulher não ficam livres da obrigação natural de proteger seos paes e ajudal-os a fazer suas roças.
Soube d’isto em minha casa, vendo a filha de Japy-açú, baptisada e casada á face da Igreja, dizer a um outro selvagem, seo marido, tambem christão, quando pretendia ir a Tapuitapera ajudar o Rvd. Padre Arsenio no baptismo de muitos selvagens, «Onde queres ir? Tu bem sabes que ainda não se fizeram as roças de meo Pae, e que ha falta de mantimentos: não sabes, que si elle me deo a ti foi com a obrigação de o auxiliares na velhice? Si queres abandonal-o então volto para a casa d’elle.»
Advertiram-na á respeito d’estas ultimas palavras, fazendo-a reconhecer o juramento que dera, de nunca abandonal-o ou separar-se d’elle, louvando-se comtudo muito os outros sentimentos, que manifestou á favor de seo Pae, e praza a Deos que todos os christãos a imitassem dando verdadeira intelligencia a estas palavras formaes do casamento que o homem e a mulher deixaram seos paes para viverem juntos — porque de outra fórma seria Deus authorisar a ingratidão dos filhos casados sob pretexto de terem filhos, ou poder tel-os e precisar cuidar do seo sustento, quando ao contrario Deos condemna, como reprobo, o que abandona seos paes, sem os quaes, não fallando na vontade de Deos, não viriam ao mundo nem elles, e nem seos filhos, embora por essas palavras mostre a grande união, que pelo casamento se faz entre o corpo e o espiríto dos casados.
Comprehende a 6ª classe os annos de 40 até a morte: é a mais honrosa de todas, e cercada de respeito e veneração, os soldados valentes, e os capitães prudentes.
Assim como o mez dá a colheita dos trabalhos e a recompensa da paciencia, com que o lavrador supportou o inverno e a primavera, lavrando com a sua charrua o campo em todos os sentidos, sem ser ajudado pela terra, assim tambem quando chega a estação da velhice são honrados pelos que tem menos idade.
O que occupa esta classe chama-se Thuyuae, quer dizer, «ancião ou velho.»
Não póde, como os outros, ser assiduo ao trabalho: trabalha quando quer, e bem a sua vontade, mais para exemplo da mocidade, respeitando tradicções da sua Nação, do que por necessidade: é ouvido com todo o silencio na casa-grande, falla grave e pausadamente usando de gestos, que bem explicam o que elle quer dizer e o sentimento, com que falla.
Todos lhe respondem com brandura e respeito, e ouvem-nos os mancebos com attenção: quando vae a festa das Cauinagens é o primeiro, que se assenta e é servido; entre as moças, que distribuem o vinho pelos convidados, as de mais consideração o servem, e são as parentas mais proximas do que fez o convite.
No meio das danças entoam os cantos; dam-lhe a nota, principiam pela mais baixa até a mais grave, crescendo gradualmente até chegar á força da nossa musica.
Suas mulheres cuidam n’elles, lavam-lhes os pés, apromptam e trazem-lhe a comida, e se ha alguma difficuldade na carne, no peixe ou nos mariscos, ellas a tiram, accommodando-a ás suas forças.
Quando morrem alguns d’elles os velhos lhe prestam honras, e o choram como as mulheres, e lhe dam o nome de thuy-uae-pee-seon: quando morrem na guerra, chamam-no marate-kuepee-seon, «velho morto no meio das armas», o que ennobrece tanto seos filhos e parentes, como entre nós qualquer velho Coronel, que occupou sua vida inteira no serviço do exercito pelo Rei e pela Patria, e que por corôa de gloria morreo com as armas na mão, com a frente para os inimigos, no meio de renhido combate, coisa nunca esquecida por seos filhos antes considerada como grande herança, e de que se aproveitam apresentando-os ao Principe como bons serviços de seo Pae, e pedindo por elles uma recompensa.
Não fazendo estes selvagens caso algum de recompensas humanas, porem empenhando todas as suas forças para conseguirem essas honras, provam com isto o quanto apreciam não só os actos de heroismo de seos paes, mas tambem a serem estimados por causa d’elles.
Os que morrem nos seos leitos não deixam de ser honrados, conforme o seo merito, e chamam-no theon-suyee-seon, «o bom velho que morreo na cama».
Por isto podeis avaliar como a naturesa por si só nos ensina a respeitar, a ajudar, e a soccorrer os velhos e anciões e á refrear com violencia a temeridade e presumpção dos moços, que sem prevêrem o futuro, não se recordam de que na sua velhice, se lhes fará justamente o que elles, quando jovens, fizeram aos mais velhos, dando esse exemplo á seos filhos, e ensinando-os a serem ingratos.