Viagem ao norte do Brasil/II/XIII
CAPITULO XIII
Claros signaes do reino do diabo no Maranhão.
O Salvador do Mundo em S. Marcos, antes de subir á direita de seo Pae, encarregou a seos Apostolos e discipulos de irem pelo universo converter os infieis assegurando-lhes por certos indicios e signaes a proxima ruina do imperio dos demonios, a saber — signa eos qui crediderint hæc sequentur: In nomine meo dæmonia ejicient, linguis loquentur novis, serpentes tollent, et si mortiferum quid biberint, non eis nocebit. Super ægros manus imponent et bene habebunt: «estes signaes seguiram os crentes, em meu nome expellirão o diabo, fallarão novas lingoas, desviarão as serpentes, e si beberem algum veneno mortifero nada soffrerão.»
Para bem entender-se estas palavras, convem notar com os padres e doutores, que foram postas litteralmente em pratica pelos primeiros christãos, quando na primeira idade da igreja era preciso combater a obstinação dos judeos e a louca sabedoria dos gentios.
Depois que estendeo-se a fé por todo o universo, que foi por todos condemnada a pertinacia dos judeos e tida por vaidade a sabedoria humana, não foi mais necessario observar litteralmente estes signaes na conversão dos incredulos e sim unicamente a pratica allegorica e mistica.
Eis o que desejamos mostrar n’este capitulo ter-se feito todos os dias em Maranhão.
Primeiramente elle disse — In nomine meo dæmonia ejicient: «em meo nome elles expellirão os demonios.»
Em dois annos que estive em Maranhão, vi isto cumprido por diversas formas, por que os diabos fizeram apparecer realmente o medo e o temor que tinham do nome de Deos, procurando por todos os meios embaraçar nossa missão, já persuadindo seos feiticeiros, mais fieis, a ordenar as nações sobre que tinham poder, de não se aproximarem de nós, já infundindo-lhes terror com o signal da Cruz e excitando-os a arrancar os que existiam, dando maus exemplos com ridicularisar o que sanctamente ensinavamos a estes barbaros, intimidando por muitas vezes os habitantes de Maranhão, Tapuitapéra, Commã, Caetés, Pará e Mearim e fazendo-os fugir para os matos e logares desconhecidos com receio de serem presos e captivados pelos francezes ou pelos portuguezes.
Finalmente mostrou-se tudo de forma diversa, porque quando julgavamos tudo perdido, foi quando Deos mostrou o poder do seo nome, conservando não só estes selvagens junto de nós, mas tambem fazendo com que despresassem seos feiticeiros e o poder do diabo, fazendo fugir Jeropary, com o nome de Deos, e a ablução de Jesus Christo.
Vou mostrar bons exemplos.
Lembrar-vos-heis do que acima vos disse tanto dos feiticeiros dos campos do Mearim e das habitações de Thion, como da maneira porque os diabos manifestavam o temor, que tinham das cruzes, que plantavamos em nome de Jesus Christo, e de nós seos fieis servos: quando alguns de seos Principaes me diziam, que estes feiticeiros não quiseram vir com elles, eu lhes perguntava a razão, e elles me respondiam — porque Jeropary tem medo de Tupan.
Acaiuy, principal do Mearim, de quem fallaremos mais de espaço, veio me pedir licença para fazer sua casa ao pé da minha, não querendo ficar com os outros no Forte, dizendo-me entre outras rasões que tinha para isto, ser porque Jeropary não se atrevia a aproximar-se do logar, em que habitavamos visto termos vindo expressamente para repellil-o.
Pedro Cão, selvagem baptisado em Dieppe havia muitos annos, dizia a mim e aos Srs. de la Ravardiere, de Pezieux, e a outros quando o interrogavamos á respeito de sua felicidade na guerra, que Deos sempre o livrára de mil perigos porque era christão, e fazia fugir o diabo apenas chegava n’uma aldeia, e que seos similhantes mostravam-se animados, quando em companhia d’elle, não temendo Jeropary.
O mesmo pensavam os habitantes de Tapuytapéra á respeito dos novos christãos, julgando que elles perseguiam e faziam fugir Jeropary, mostrando-se contentes por isto quando tinham esses christãos em suas aldeias.
Servindo-nos d’estas crenças embutiamos no espirito dos cathecumenos como ponto de fé, que logo que elles fossem lavados, adquiririam poder contra o diabo, e nunca mais deviam temel-o.
Corre voz geral em todas estas terras, que os diabos são espiritos maus, que temem os Pays e os Caraybas, isto é, os padres e todos os que são baptisados.
Recorda-me que fallando mil vezes d’esta materia aos selvagens, elles me disseram — Jeropary yportassuasseque gésera — «o diabo está agora pobre e miseravel, tem muito medo e já não é atrevido como era.» Jeropary ypochu, Tupan Katu «o diabo é mau, cruel e nada valle, porem Deos é muito bom.»
Que desejarieis mais para o complemento d’este primeiro signal, e segurança da total ruina do diabo?
São os proprios diabos, que confessam temer o nome de Jesus Christo, as armas de sua paixão, e até os seos servos, dissuadindo seos intimos amigos para que de nós se ausentassem, abalando ceos e terra afim de embaraçar-nos, e movendo tudo para inutilisar nossos esforços, emfim cahiram de ventas no chão, e chegaram ao cabo de suas astucias.
Os que outr’ora os temiam, hoje os despresam; emfim só nos resta continuar as obras começadas.
Linguis loquentur novis: «fallarão novas linguas». Na verdade os nossos selvagens do Maranhão fallam uma linguagem inteiramente nova, visto que, esse Marata antigo, isto é, um dos Apostolos de Jesus Christo de quem fallarei mais adiante, não lhes ensinou a fallar como fallam agora, a saber: na profissão do christianismo recitando o symbolo dos Apostolos Arobiar Tupan etc. etc., a dirigir-se a Deos por meio da oração dominical Oreruue etc. a encaminhar suas vidas e acções segundo os mandamentos da lei de Deos Ymoeté yepé Tupan etc. etc. conforme os mandamentos da Igreja. Are maratecuare ehumé etc. «lavar e fortificar suas almas pelos Santissimos Sacramentos.» Iemongarauiue etc.
É por certo fallar linguagem nova, quando discorrem sobre os mysterios da nossa fé, como sejam a unidade da essencia em Deos, e na Trindade das Pessoas; que o Filho de Deos tomou corpo no ventre da Virgem: que os maus vão para o inferno, que todos os homens resuscitarão em corpo e alma, indo depois cada um para o lugar de sua sentença: são estes com tudo os discursos diarios dos feiticeiros, só fallando em matar, comer, assar e seccar a carne dos seos inimigos, e nas suas incontinencias, libertinagens e loucuras.
Admirar-se-ha muito quem pensar em tal mudança entre os barbaros, que somente sabem o que lhes ensinou a natureza.
Creem os judeos, que os Apostolos sahiram d’um tunel, bem cheio, de vinho e de carne, e viram que os gentios de diversas nações davam signaes de entender o que prégavam, e que os Apostolos por sua vez tambem os percebiam.
Tambem vos disse, que os selvagens ficavam muito admirados quando viam seos similhantes, baptisados, discorrer em sua lingua sobre coisas altas, profundas, e tão novas, como as que conheciamos por seos interpretes, e diziam uns aos outros — como é que esta gente falla tambem de Tupan, como os Padres lhes tem ensinado tão bellas coisas, quaes as que nos contam: como nossos filhos sabem mais do que nós, nossos Padres, e mais remotos antepassados, que embora tenham vivido muito nada nos contaram como estes Padres: por força fallaram com Deos.
Em terceiro lugar. Serpentes tollent «elles desviaram as serpentes.» Que são essas serpentes do Brazil, que com sua lingua e cauda envenenam estes povos? Não são todos os grandes e pequenos feiticeiros, que envenenam suas Nações?
A fé de Jesus Christo é como a Cegonha, que purifica o paiz, onde está, das serpentes venenosas.
S. Paulo, na Ilha de Malta, atirou ao fogo a vibora que trazia no dedo.
O dedo dado por Jesus Christo aos Apostolos, é o poder do Espirito Santo, que de ordinario busca agentes naturaes docemente, sem constrangimento, para dispôr o objecto a receber uma nova fórma pelo banimento e ruina de outra fórma contraria.
Estas viboras, arremeçadas ao fogo, são os Ministros de Satanaz, que o Espirito Santo expelle para tornar a Nação cheia d’abusos susceptivel de acceitar o Evangelho e de conhecer a Deos.
Si eu disser, que me parece ter o Espirito Santo, em relação a estes feiticeiros do Maranhão, feito um grande milagre, que nunca fez para com os sacrificadores do Paganismo, creio ser bem recebida a minha opinião, porque, alem de dois ou tres feiticeiros, todos os grandes só desejam ser baptisados: ao contrario, raras vezes estes sacrificadores do diabo, na gentilidade esposavam o christianismo.
Por isso podiamos dizer, que as serpentes venenosas, que se arrastam na terra, tornam-se passaros voadores no elemento do ar, conforme a profecia de Isaias: De radice colubri egredietur Regulus, et semen ejus absorvens volucrem: «da raiz da cobra sahirá o Basilico, e a semente do Basilico engulirá o passaro,» o que Vatable assim interpreta[NCH 105]: De radice serpentis egredietur Regulos, et fructus ejus, cerestes volans: «da raiz da serpente sahirá o Basilico, e o seo fructo será uma cerasta volante.»
Para entender esta passagem convem recordar-se do que escrevem os naturalistas, a saber, que as cobras grandes e grossas geram o Basilico quando comem um sapo; porem o Basilico procura gallinhas brancas, com quem se unem, pondo ellas ovos, que enterram n’areia ao ardor do Sol, e d’elles sahem serpentes, que voam.
Nada dizem, que eu não visse em Maranhão, conforme me diziam e pensavam os selvagens, e aconteceo-me por duas vezes, que uma gallinha branca que eu tinha, pozesse dois ovosinhos redondos como uma ameixa de dama e salpicados, e depois ella mudou de cacarejar, e parecia louca.
Disseram-me então os selvagens, que infallivelmente o Basilico nos mattos a tinha coberto, pelo que convinha matar, quebrar e queimar os ovos, para evitar a morte infallivel de quem os comêsse: si se deixasse os ovos, sem queimal-os, d’elles sahiriam serpentes voadoras, que não era a primeira vez, que isto acontecia, e então todas as gallinhas mudam de canto, e não param n’um lugar.
Appliquemos isto ao nosso fim, e digamos que a antiga cobra é Satanaz, Principe dos Demonios, os Basilicos são os Diabos destacados nas Provincias por Lucifer para seduzir o Mundo; as serpentes são seos Ministros, como sejam os Pagys ou feiticeiros do Brazil, que desejam adquerir azas para mudar de elemento da terra para o do ar, deixar seos velhos e abominaveis costumes de arrastar o peito em seo execrando e diabolico serviço, e aproximar-se do Ceo, como o resto dos indios pela ablução ou lavagem de seos antigos peccados pelo Sacramento do Baptismo.
Estas serpentes, tão perseguidas no Brazil, são esses desgraçados costumes, e abominaveis peccados, como sejam as vilanias, raivas, e vinganças, já descriptas amplamente n’outra parte.
Em quarto lugar. Et si mortiferum quid biberint non eis nocebit: «e si bebem algum veneno mortifero, não lhes damnificará.» O verdadeiro veneno, que engolem as almas, é a falsa doutrina, que o Diabo faz suggerir nos ouvidos dos novos christãos.
Vós o achareis em muitos exemplos do proprio seculo dos Apostolos. Certos seductores iam corromper os individuos sem malicia, e apenas bebiam ellas o Aconito, sentiam-se afflictos, impressionados em sua alma, e abalados em sua fé; porem o Espirito Santo mencionado no genesis — Spiritus Domini, ferebatur super aquas «o Espirito do Senhor é levado sobre as agoas de Chaos,» isto é, ainda não purificadas e nem limpidas, ou como querem dizer os outros: Incubabat aquis, deitava-se sobre as agoas do Chaos para d’elle tirar as bellas pombas, como fingiam os Poetas, os ovos de Thetis, cobertos pelo pombo branco, ou o Cysne, de que sahiram Castor e Pollux, ou então fouebat aquas, aquecia essas agoas ainda frias.
O Espirito Santo, digo eu desculpa mais facilmente a fragilidade e fraquesa d’estes novos christãos, mas não as dos antigos crentes.
Assim vae adejando sobre as agoas desviadas do verdadeiro caminho pelos maus discursos d’aquelles, que tem a alma mal conformada, vae chocando os ovos abandonados pelo Pae e Mãe, almas recentemente lavadas, porem separadas da presença d’aquelles que as tem lavado.
Aquecidas essas agoas geladas pelo sopro do pernicioso Aquilon, não quer que o veneno bebido lhes dê a morte, conduzindo-as ao regaço de sua Mãe, e entre os braços dos que, depois de Deos, os geraram espiritualmente em Jesus Christo para obrigal-os a vomitar o veneno do seo coração, e tomar o alimento salutar, pelo qual se fortificaram para resistir de ora em diante a todos os choques.
Passou-se isto no Brazil, como aconteceo no tempo dos Apostolos, onde um certo numero de novos christãos de Tapuitapéra, seduzidos por más palavras de um certo personagem, metade d’elles se deshouveram e renunciaram o Christianismo; porem nós cuidamos d’elles com todo o zelo.
Assim fizeram os nossos superiores, que redobraram de cuidados para remediar este mal levando para ahi tudo quanto julgaram necessario, e por isso essas novas plantas, fanadas por brisa gelada, adquiriram seo antigo vigor e florescencia, e tornando a vel-os no Forte de Sam Luiz, procuramos animal-os a ficarem firmes e constantes na profissão do Christianismo, e ordenamos-lhes de não se separarem de Martinho Francisco, ahi nosso suffraganeo.
Sentia-se o diabo cercado por todos os lados, e peiores os seos negocios de dia para dia.
N’esta epocha, em que estou escrevendo, espero que os padres que por la andam, lhe deem terriveis combates, e que seo reinado vá de decadencia em decadencia, até total ruina; porque antes de eu deixar a ilha, via e experimentava a disposição geral e universal d’estes selvagens,[NCH 106] especialmente dos meninos, para os converterem.