Viagem ao norte do Brasil/II/XIX
CAPITULO XIX
Conferencia com Iacupen.[NCH 109]
Era Iacupen um dos principaes da tribu dos canibaleiros, conduzidos para a ilha pelo Sr. de la Ravardiere, pae de um mancebo christão, de boa indole, chamado João, e antes Acaiuy-miry, «cajú pequeno ou cajusinho.» Teve por varias vezes o trabalho de vir de Juniparan procurar-me e conversar commigo sobre as coisas divinas, e sobre a vaidade d’este mundo.
Um dia veio a minha casa com seo filho, e assim fallou-me:
— Tenho muito desgosto de não ser baptisado, porque sei que em quanto estiver assim, o diabo pode perseguir-me e perder-me.
Ah! quem pode assegurar-me a vida até a noite?
Agora volto para minha aldeia, posso encontrar uma onça furiosa, que me corte a garganta, e me mate sosinho no bosque.
Para onde irá meo espirito?
Não tenho pesar e nem inveja, que meo filho, que aqui está, se baptisasse primeiro do que eu.
Mas dize-me: não é coisa notavel, que elle seja Filho de Deos antes de mim, seo pae, e que eu d’elle aprenda o que devia ensinar-lhe?
Penso n’isto, e torno a pensar muitas vezes, principalmente depois da vossa vinda, e da de outros padres: lembro-me da crueldade de Jeropary para com a nossa nação, porque tem feito morrer a todos, e persuadio a nossos feiticeiros de conduzir-nos ao centro de uma floresta desconhecida, onde dançariamos constantemente, alimentando-nos somente do amago das palmeiras e da caça, succumbindo muitos por fraqueza e debilidade.
Sahindo nós de lá, e vindo nos navios do Muruuichaue la Ravardiere para a ilha do Maranhão, armou-nos Jeropary outra emboscada, instigando por meio de um francez aos Tupinambás para matarem e comerem muita gente nossa: si não é a vossa chegada acabariam comnosco.
Ja vedes, que somos muito infelizes n’esta vida.
Perseguimos os veados e outros bixos para matal-os e comel-os, porem elles não necessitam de ferramentas, de fogo e nem de canoas, pois acham a comida feita: quando perseguidos n’um lugar, em poucas horas transportam-se para outro atravessando até braços de mar, sem canôa: nós outros porem não podemos fazer o mesmo: faltam-nos ferramentas, fogo e canoas, e o que é mais, vem ainda perseguir-nos nossos inimigos, ora os Peros, ora os Tupinambás, e finalmente outras nações adversarias: finalmente a nossa posição é peior do que a dos animaes da terra. —
Respondi-lhe: «O que disseste, é bem certo, porque o diabo o que deseja somente é matar o corpo e perder a alma, e assim procede sempre com aquelles, com quem tem pouco a ganhar retendo-os em suas cadeias: é um monsenhor, e trata cruelmente seos servos.
«Deos não é recebedor dos velhos, e nem dos moços. Os primeiros, que se apresentam, são recebidos por elle, comtudo os ultimos são sempre os primeiros, porque recebem o christianismo com mais consideração, e o conservam com mais fervor do que os que o abraçam ligeiramente.
«Nosso Deos nos fez miseraveis n’este mundo afim de não olharmos só nas delicias da carne, e sim para preparar-nos com destino a outra vida alem d’esta.»
Antes de passar adiante convem explicar o que elle quiz dizer, quando fallou da desgraça de sua nação, devida aos conselhos dos seos feiticeiros, e á carnificina feita pelos Tupinambás.
Havia entre elles um grande feiticeiro, que entretinha com o diabo visiveis relações, e gozava de tal poder entre elles que todos lhe obedeciam.
Aproveitou-se o diabo de tal ensejo para seduzir e enganar esta populaça, ensinando ao feiticeiro o que devia dizer-lhe para elle ir tomar posse d’uma terra, onde tudo, facil e sem trabalho lhe appareceria á medida de seos desejos.
Esta nação, tão cheia de prejuisos, seguio este desgraçado, não intermediando muito tempo sem conhecer a zombaria do espirito do conductor, porque falleceram milhares, e acharam-se no meio de vasta floresta, dançando constantemente, como elle lhe ordenou, até que chegasse o Espirito para lhe indicar o lugar procurado.
Ahi achou-se o Sr. de la Ravardiere, demonstrou-lhe seo engano, o que reconhecido, seguiram-no e embarcaram-se em seos navios com destino á Ilha do Maranhão, onde algum tempo depois um miseravel francez tendo uma questão com o Principal d’essa gente, para vingar-se, instigou os Tupinambás a matal-a, subindo esta carnificina a cem ou á cento e vinte, entre mortos e prisioneiros.
Tal barbaridade foi praticada cinco ou seis mezes antes da nossa chegada.
Continuemos.
Depois de minha resposta, disse-me:
— Tenho bem pesar de não poder obsequiar-vos como mereceis, porque não tenho meios de ter escravos; outr’ora fui rico, hoje sou pobre.
Fiz o que pude ao padre, residente em Juniparan.
Tenho bem pesar de não traser-te caça sempre que venho vêr-te. —
Repliquei-lhe immediatamente:
«Não é isto que desejo de ti, e estou muito contente de conhecer tua devoção, e tua boa vontade, porem ambiciono que sempre progridas de dia á dia, e adquiras novos conhecimentos á respeito de Deos.
«Tens um padre na tua aldeia, visita-o sempre, e d’elle aprende as maravilhas de Tupan.
«Tens alem d’isto teo filho, que sabe a doutrina christan; elle que a ensine a ti e a todos de tua casa, o que fará melhor do que nós, visto pronunciar bem as palavras da tua lingua.»
— O que acabas de dizer-me afflige-me muito, respondeo-me elle, porque meo filho depois de christão, logo no principio, procedeo bem: ja sabia lêr um pouco no seo Cotiare, e escrever, estava sempre com o padre, e o seguia por toda a parte.
Deixou depois tudo isto, entregou-se á liberdade, esqueceo o que havia aprendido, e foge para o matto quando o padre o procura: isto me mata e como nada aproveito em fallar-lhe, eu te peço que tu lhe mostres, e proves ser elle filho de Deos, e que Jeropary o quer seduzir: eil-o aqui, falla-lhe.»
Satisfiz-lhe o desejo, recordando á seo filho o fervor, com que recebeo o baptismo, admirando-me de vel-o tão mudado a ponto de fugir dos padres, pelo que eu acreditava andar o diabo no seo encalço si não regressasse aos seos deveres, se não frequentasse o padre de Juniparan, e não abraçasse sua antiga fé.
Ouvio-me pacientemente, e prometteo-me melhor procedimento.
Considerae, eu vos peço, o zelo de um verdadeiro pae para salvar seo filho, como mostrou o grande feiticeiro de Tapuitapéra: este pae é ainda pagão, e comtudo vós o vedes solicito, e cuidadoso pela consciencia de seo filho.
Quantos paes ha em França, que só cuidam dos bens temporaes de seos filhos, e despresam os espirituaes!
Veio outra vez visitar-me em companhia de alguns selvagens, seos visinhos: rolou nossa conversação á respeito da creação do Mundo, da providencia de Deos para com o procedimento dos homens, e da vocação singular e particular de cada um.
— É preciso, disse, que seja Deos um Espirito poderoso, incomprehensivel para nós, para crear com uma só palavra, como ouvimos muitas vezes de vós outros padres, tudo o que vemos e ouvimos.
Imagino a immensidade do mar, que ha d’aqui até a França, tanto assim, que os navios gastam doze luas no trajecto de ida e volta, e admiro que o sol, que temos, seja tambem vosso.
Quantos passaros, peixes, e animaes existe no Mundo, todos foram feitos por Tupan. —
O segundo ponto de discussão foi este:
«Vejo-me embaraçado quando penso nas diversas nações, que existem no Mundo.
«Vejo os francezes ricos, valentes, inventando navios para passarem o mar, canoas, e polvora para matar os homens insensivelmente, bem vestidos e nutridos, temidos e respeitados.
«Ao contrario nós vivemos errantes e vagabundos, sem roupas, machados, fouces, facas e outras ferramentas.
«De que procede isto?
«Nascem ao mesmo tempo dois meninos, um francez, e outro Tupinambá, ambos doentes e fracos, e não obstante um nasce para gozar de todas as commodidades e o outro para viver pobremente.
«Livres nascemos, um não tem mais do que outro, e comtudo uns são escravos, e outros Muruuicháues.»
Eis o terceiro ponto de discussão:
— Não posso tranquilisar o meo espirito quando penso, que vós outros francezes tendes mais conhecimento de Deos do que nós. Porque temos vivido tanto tempo na ignorancia? Dizei-nos, que foi Deos quem vos enviou, e para que não o fez antes? Nossos paes não se teriam perdido, como succedeo. Os padres são homens como nós, e porque elles fallam a Deos, e nós não? —
Respondi-lhe a tudo isto, dizendo «ser muito pequeno nosso espirito para conceber coisas tão altas, reservadas por Deos só para si. Basta saber que elle fez tudo, ama e dá o necessario a todos.»
Quando vê um individuo disposto a abraçar suas crenças não deixa de o mandar vesitar pelos seos Apostolos, que lhe proporcionam meios de salvar-se, sendo de crer não achar-se seo coração e espirito, antes da nossa vinda, disposto e apto para receber tão grande luz, qual a do Evangelho.
Estes e outros discursos similhantes, que adiante encontrareis, vos habilitarão a julgar da capacidade de suas almas para receberem a fé de Jesus Christo, nosso Salvador.