Viagem ao norte do Brasil/Notas criticas e historicas
CRITICAS E HISTORICAS
SOBRE A VIAGEM DO
PADRE IVO DE EVREUX
POR
MR. FERDINAND DINIZ.
NOTAS.
1 (frontespicio).
Esta vasta provincia, uma das mais florescentes do Brazil, antes da chegada dos missionarios francezes não teve estabelecimento algum importante. Eram arbitrarios os seos limites, convindo não esquecer que a immensa capitania do Piauhy fez parte d’ella até 1811. Presentemente tem 186 legoas, de 20 ao gráo, de comprimento, 140 de largura, e nunca menos de 20,000 legoas quadradas de superficie. Fica entre 1° 16′ e 7° 35’ de lat. merid. Confina ao N O com o Pará, servindo de linha divisoria o Gurupy, á N E é banhada pelo Occeano Atlantico, a S E com o Piauhy, separando-a d’elle o rio Parnahyba, e finalmente a S com a provincia de Goyaz pelo rio Tocantins. [1]
Ainda que seja quente e humido o clima do Maranhão é sadio. As chuvas que fertilisam este rico territorio principiam regularmente em outubro.
O aspecto geral do paiz offerece por toda a parte ondulações do terreno, mas em nenhuma offerece elevações consideraveis, exceptuando-se d’estas asserções geraes e por força mui summarias a comarca de Pastos-bons, onde se encontram montanhas como sejam Alpercatas, Valentim, Negro etc. É regada por 14 correntes d’agoa.
De todos estes rios é o Parnahyba o mais consideravel: infelizmente suas margens não são totalmente sadias, pois em varios pontos, como em quasi toda a provincia, reinam as febres intermitentes. Avalia-se seo curso em 240 legoas. O Itapecurú, seo immediato, e de que falla constantemente o Padre Ivo d’Evreux, banha apenas 150 legoas de terreno, o Mearim 78 legoas, sendo ainda menos consideraveis o Pindaré, o Tury-assú, o Gurupy, e o Manoel Alves Grande. Julga-se que é de 462,000 pessoas a população de toda a provincia, embora diga o relatorio official da presidencia, com data de 3 de julho de 1862, que esta cifra é apenas de 312,628 almas, sendo 227,873 livres e 84,755 escravos. Convem observar, que o recenseamento geral da população do Imperio, feito em 1825, dava apenas 165,020 almas, sendo esta cifra muito inferior á realidade, porque recusaram muitos Srs. dizer com certesa o numero dos seos escravos.
Nada se sabe, e nem será possivel saber-se exactamente, a respeito da povoação nomade dos indios, isto é, d’aquella cujo conhecimento seria muito curioso afim de apreciar-se as mudanças, que houveram nas aldeias depois do que escreveo o Padre Ivo, podendo apenas dizer-se que é maior no Maranhão, no Pará, e na nova provincia do Rio Negro, do que n’outra qualquer parte.
Em summa o governo só tem dados mui imperfeitos e raros sobre estas infelizes hordas, das quaes se occupa actualmente.
Os cuidados tardios, embora caridosos, da administração provincial, tem que acabar muitos males afim de que seja completa a reparação.
Tudo ainda está por fazer relativamente aos Indios.
Não souberam estas tribus conservar nem a dignidade que dá completa liberdade aos habitantes das florestas, e nem os principios de civilisação, que se intentou incutir-lhes no seculo XVII.
Reconcentradas no interior por Mathias de Albuquerque, dizimadas pela variola, hoje são apenas a sombra do que foram sob o dominio dos seos chefes independentes.
Esta população indigena é comtudo maior nos desertos do Maranhão, e embora d’ella não tratem certas estatisticas, é avaliada em 5,000 o numero dos indigenas reunidos em aldeias.
Si dermos credito á um intelligente militar, que viveo em constantes relações com elles por espaço de 20 annos, a sua decadencia physica é menor que a moral, pois perderam até a reminiscencia de suas tradicções théogonicas, ainda mal, visto ser muito curioso o comparal-as com a narração dos antigos viajantes francezes.
Sob este ponto são elles menos favorecidos que os Guarayos, visitados por Orbigny, os quaes ainda hoje repetem em seos canticos as legendas cosmogonicas do seculo XVI.
Os indios do Maranhão, entre os quaes se contam os Timbyras, os Gés, os Krans, e os Cherentes não podem fornecer ao historiador senão informações mui incompletas, pois que ha perto de 40 annos já o major Francisco de Paula Ribeiro se queixava do immenso esquecimento d’elles, (vide Revista Trimensal, tomo 3.º, pag. 311) esquecimento fatal de grandes tradicções, pelo que se tornam hoje preciosos certos livros, como sejam os dos nossos velhos missionarios, onde pelo menos se encontram os mythos antigos, ahi escriptos para serem combatidos.
De vez em quando entre estes indios degenerados apresentam-se alguns homens energicos, que comprehendem o abatimento de sua raça, e que desejariam vel-a progredir, porem são mui raros, pouco comprehendidos, e demais só olham para o futuro, e não experimentam amor algum por sua antiga nacionalidade.
Seos compatriotas longe de ajudal-os nos trabalhos emprehendidos para melhorar seo futuro, ainda os amesquinham com o seo odio tão irreflectido quam brutal.
Foi o que aconteceo a Tempe e a Kocril, chefes conhecidos pelo major Ribeiro. Trabalharam inutilmente para chamar ao caminho da civilisação as tribus, cujo governo lhe foi confiado, e a final foram victimas do seo zelo.
Vide «Memoria sobre as nações gentias, que presentemente habitam o continente do Maranhão escripta no anno de 1819 pelo major graduado Francisco de Paula Ribeiro, Revista Trimensal, T. 3º pag. 184.»
De passagem disemos, que não deixaram descendentes, pelo menos conhecidos, os Tupinambás cathequisados pelos missionarios francezes, suppondo-se apenas, que um ramo d’esta grande nação ainda hoje povôa Vinhaes e Villa do Paço do Lumiar, achando-se no mesmo caso S. Miguel e Tresidélla, a margem do rio Itapecurú, e Vianna, no Pindaré.
Com mais probabilidade ainda confundiram-se os Tupinambás com as tribus do inferior, tomando os nomes de Timbyras e Gamellas. São tambem subdivisões dos Timbyras os Sakamecrans, os Kapiekrans ou Canellas-finas, e os Gés, que vagam pelas grandes florestas á Oeste do Itapecurú. Nega o major Ribeiro, que ainda sejam antropóphagos estas diversas tribus. N’este escriptor imparcial, e que reconhece a ferocidade dos Timbyras, é que se deve estudar as horriveis represalias, de que tem sido elles os indios, sendo a escravidão a menos sanguinolenta. Elle avaliou em 80:000 o numero d’indios selvagens, embrenhados nos mattos em 1819, hoje sem duvida consideravelmente diminuido.
2
Francisco Huby era tambem livreiro e tinha sua loja n’uma praça entre os mais afreguezados armazens na galeria dos prisioneiros em Palacio, e soffrera-a como os outros no grande incendio de 1618.
Quatro annos antes d’elle encarregar-se da publicação do livro de Claudio d’Abbeville, de que este é continuação, morava na rua de Sam Thiago no Folle de oiro, e não na Biblia de oiro, que depois tomou por divisa.
Si foi ferido na prosperidade, foi justamente por haver permittido, que mão impia privasse a França por mais de dois seculos do livro precioso, de que tinha sido edictor, e que hoje entregamos a publicidade, graças a uma d’essas empresas litterarias tão raras em nossos dias, onde a honra das letras é o pensamento dominante e superior a todas as considerações.
O volume, que servio para a nossa reimpressão é encadernado em marroquim encarnado, semeiado do flores de lys de oiro, e com as armas de Luiz XIII. Faz parte da reserva sob n.º 01766 da Bibliotheca Imperial de Pariz.
3
A capital do Maranhão occupa ainda hoje o mesmo lugar escolhido por seos antigos fundadores. Está situada a 2° 30′ e 44″ lat. austral e 1° 6′ e 24″ de long. oriental do meridiano do Forte de Villegagnon, na bahia do Rio de Janeiro.
La Ravardiere e Rasilly escolheram para edifical-a a ponta de terra O d’uma pequena peninsula, ligada á ilha do Maranhão pela calçada do Caminho grande.
Os rios Anil e Bacanga, vindos de diversos pontos da ilha confundem suas agoas na mesma embocadura e formam vasta bahia. A elevação, que se apresenta ao S do Anil, á E e ao N. do Bacanga (lugar onde se confundem as agoas d’estes dois pequenos rios) é o lugar primitivo onde se levantou a cidade nascente collocada sob o patrocinio de Sam Luiz.
A cidade de Sam Luiz, elevada em 1676 á dignidade episcopal por uma Bulla de Innocencio XI, conta nunca menos de 30 mil habitantes, e está situada em terreno docemente ondulado, sempre, em todas as estações, carregado de rica vegetação, e assim offerecendo aos viajantes panorama encantador. (Vide Corographia Brasilica, Will. Hadfield, Milliet de St. Adolphe, e principalmente os Apontamentos estatisticos da provincia do Maranhão, annexos ao Almanack de 1860 publicado por B. de Mattos.)
Esta linda cidade é naturalmente dividida pela espinha dorsal da peninsula, que separa as duas bacias dos rios na direcção de E. O.
Seo ponto mais elevado é o Campo d’Ourique, onde apresenta 32m 692c de elevação acima do nivel medio do mar.
É dividida em tres parochias: N. S. da Victoria, S. João, e N. S. da Conceição, tem 72 ruas, 19 becos, 10 praças, 55 edificios publicos, e 2,764 casas, das quaes 450 tem um só pavimento.
Para utilidade dos habitantes podem ser maiores e mais regulares as praças, e embora sejam as ruas cortadas em angulo recto, podiam ser mais largas e melhor dispostas sendo observadas as regras da hygiene.
Não são más suas calçadas, e tem declive bastante em relação aos dois rios que banham a cidade. Em resumo é a Capital do Maranhão saudavel e limpa.
«O navio que demandar o porto, toma por marca o Palacio do governo, assentado n’uma eminencia que domina o porto.
Este edificio tem a seos pés o Forte de Sam Luiz, e de suas janellas percorrendo-se com os olhos uma extensa bahia avista-se ao longe as costas e a cidade de Alcantara: mais perto da barra está o pequeno Forte da Ponta d’areia, e dentro do porto na margem opposta do Bacanga a pequena ermida do Bomfim, muito arruinada, e na frente do Anil a Ponta de Sam Francisco, onde segundo a noticia que nos dirige, entregou la Ravardiere ao commandante portuguez a cidade nascente e a fortalesa de Sam Luiz, nunca se podendo assas louvar n’essa occasião o procedimento inteiramente nobre do commandante francez e de Alexandre de Moura por parte da Hespanha.
O joven cirurgião de Pariz que foi com tanto zelo pensar os feridos dos dois partidos, e que recebeo tão penhorador acolhimento no campo inimigo poude d’elle dar somente uma ideia, por sua narração sincera e franca, da cordialidade, que appareceu entre os francezes e os portuguezes depois do combate. (Vide Archivos das viagens publicadas por M. Ternaux Compans.)
Em distancia de alguns metros pelo Anil acima está o convento e Igreja de Santo Antonio, construidos no proprio lugar onde em 1612 Ivo d’Evreux, ajudado pelos padres Arsenio e Claudio d’Abbeville, edificou seo conventosinho sob a invocação de Sam Francisco. Soffreo depois d’isto varios concertos e augmentos este mosteiro dos Capuchinhos francezes, achando-se hoje uma parte do edificio moderno occupado pelo Seminario Episcopal, e a Igreja, hoje em construcção, levanta-se com architectura gothica simples.» Pelo que nos dizem será a igreja mais bonita do Maranhão.
Não é esta a unica construcção digna de mencionar-se na cidade, porem é a unica que nos interessa directamente.
Mencionamos apenas o Caes da Sagração, assim chamado em memoria da coroação e sagração do Sr. D. Pedro 2.º, e da vasta bahia, onde agora se escava para poder n’ella fundear uma fragata a vapor da primeira ordem, e apenas citamos a dóca que se projecta fazer nas enseiadas das Pedras.[2]
Contam-se muitas construcções monumentaes, como sejam a igreja do Carmo, a Cathedral, o quartel do Campo de Ourique, o Theatro, e mais outras que força é omittir, pois apenas n’uma ligeira nota desejamos mostrar englobadamente o que em 250 annos se tornou isto fundação francesa.
William Hadfield, um dos mais modernos viajantes, que tratou d’este paiz, observou que é na cidade de Sam Luiz, onde no Brasil se falla o portuguez com mais pureza. É a patria de dois escriptores mui estimados no Imperio, Odorico Mendes e João Francisco Lisboa, fallecido ha pouco.
Depois de haver traduzido com superioridade de estylo, que causaria inveja aos contemporaneos de Camões, occupa-se actualmente Odorico Mendes na traducção em verso das obras de Homero, onde a sciencia do rythmo disputa com a inspiração.
Quanto ao poeta das legendas nacionaes, cujos cantos são geralmente repetidos no Brasil (queremos fallar de Gonçalves Dias) pertence tambem á provincia do Maranhão, por elle explorada como sabio e como viajante intrepido, porem nasceu em Caxias.
As obras d’esses tres escriptores honram ao paiz, são tambem a honra da bibliotheca publica; porem este estabelecimento, creado n’uma cidade eminentemente litteraria, não está em relação com as necessidades crescentes de outras instituições suas, relativas á instrucção publica. Ha tres annos contava apenas 1031 volumes.
Prasa aos Ceos, que o livro, que agora réproduzimos, o primeiro que, com o de Claudio d’Abbeville, foi escripto na Cidade nascente, marque o principio de uma era nova para estabelecimento tão indispensavel n’uma Capital, já florescente. Muitas outras instituições supprem esta deficiencia, publica-se na Capital diversos jornaes, taes como o Publicador Maranhense, a Imprensa, o Jornal do Commercio etc. etc., e tambem ha uma Associação typographica, um Gabinete de leitura, e a sociedade litteraria Atheneo Maranhense.
Tudo isto na verdade é mui differente do tempo, em que o Padre Arsenio de Pariz com muita difficuldade achava apenas uma folha de papel para escrevêr á seos Superiores.
4
A Cathedral de São Luiz ou do Maranhão, (assim com estes dois nomes se designa a Cidade) deixou a invocação de São Luiz de França. É a antiga Igreja do Convento dos Jesuitas a actual cathedral sob a invocação de N. S. da Victoria. (Vide Ayres do Cazal — Corographia Brazilica. Rio de Janeiro 1817. T. 1.º pag. 166).
Parece-nos, que nas grandes construcções, que actualmente se estão trabalhando para o augmento do Convento de S. Antonio, respeitou-se a pequena Capella feita pelos francezes. São tres os frades d’esta Ordem, Frei Vicente de Jesus, guardião; Frei Ricardo do Sepulchro e Frei Joaquim de S. Francisco, todos sacerdotes.
5
Ao norte do Brazil e no interior da Goyanna havia então prodigiosa abundancia d’esta especie de fóca, cuja carne era muito saborosa: chamam-na os portuguezes peixe-boi, e os indios manati. Ainda hoje os habitantes ribeirinhos do Amazonas e do Tocantins nutrem-se com a excellente carne d’este peixe. (Vide Osculati, America equatoriale). Claudio d’Abbeville lhe deo o nome de Uraraura.
6
Esta localidade, ja citada, ainda o será muitas vezes.
O vasto territorio, ainda hoje conhecido em Maranhão pelo nome de Tapuitapéra, está hoje dividido pelas comarcas de Alcantara e de Guimarães. Antigamente foi occupado por onze aldeias de indios, das quaes a maior era Cumã. Tapuitapéra dista 40 legoas de Maranhão.[3] Pensa Martius que esta palavra quer dizer — habitação de indios inimigos. Vide Glossaria linguarum brasilensium. Erlanguem. 1863, em 8.º
N’esta obra acham-se tambem os nomes dos lugares, dos vegetaes e dos animaes.
O Aparaturier, que deo tão felizes comparações ao padre Ivo, é simplesmente o mangue (Rhyzophora. Lin.) Esta arvore das praias americanas tão util á industria, forma vastas florestas maritimas, e em roda da costa do Brasil e de Venezuela. Com muita frequencia se tem destruido estas arvores, em varios lugares, e temos ouvido até attribuir-se a invasão recente da febre amarella á destruição systematica d’este bonito vegetal, que aformosêa com sua verdura todas as praias brasileiras. Cahindo sob o ferro do cultivador deixa á descoberto praias cheias de lôdo, habitadas por myriades de carangueijos, formando assim pantanos d’onde se desprendem miasmas de especie muito perigosa.
No Brasil conhece-se duas qualidades de mangue, o branco e o vermelho, e para a descripção scientifica d’elles enviamos nossos leitores para Aug. de St. Hilaire. Julgamos que a palavra antiga, ahi empregada pelo padre Ivo, vem do verbo parere, parir, porque esta arvore se reproduz pelas raizes, que, como arcadas, espalham ao redor de si. (Vide Nossas scenas da naturesa sob os tropicos,) e ahi achareis o effeito do mangue nas paisagens.
7
É lamentavel esta lacuna, porem deixa comtudo perceber, que se trata das tartarugas do Maranhão.
Com os ovos d’este chelidoniano prepara-se no Pará o que se chama — manteiga de tartaruga, de que se exporta prodigiosa quantidade.
8
N’esta enumeração mui completa de quadrupedes que se podem caçar, um nome desperta naturalmente a attenção do leitor, e é vacca brava. É bem possivel, rigorosamente fallando, que os campos do Mearim ja tivessem algum individuo da raça bovina, ja ha muito tempo introduzida em Pernambuco: Claudio d’Abbeville é muito explicito n’este ponto.
Mas não é d’isto que quiz tratar o nosso bom missionario: a vacca brava, ou bragua, como chama em outro lugar, é o Tapir ou Tapié, conforme Montoya, animal muito commum em todo o Brasil.
Para denominal-o serviram-se os hespanhoes e portuguezes d’um nome pedido por emprestimo aos Mouros. Chamavam-no tambem Anta ou Danta, que significa, dizem, bufalo. Quando chegou aos americanos a sua vez de dar nome ao boi, chamaram-no Tapir-açù.
Martius observa com razão, que esta palavra na lingua geral se applica a todo o mamifero corpulento. Sendo este pachyderma o animal mais corpulento conhecido na America do Sul, foi sua caça procurada de preferencia pelos Europeos, e assim desappareceo, ou pelo menos tornou-se mais rara nos lugares onde outr’ora era abundante. Em certos paizes da America era um animal sagrado, e assim figura em diversos monumentos.
No Brasil procuravam os indigenas este animal, tanto por ser boa caça como pela espessura de seo couro, de que faziam escudos impenetraveis ás flexas, pela maior parte armadas de uma ponta aguda de madeira ou de cana.
João de Lery trouxe do Brasil para França alguns d’esses broqueis, porem não chegaram á Europa, porque uma terrivel fome devida á longa viagem de 5 mezes obrigou o pobre viajante a comel-as, depois de amolecidas por meio d’agoa.
Os nossos leitores que desejarem conhecer minuciosamente o Tapir americano, consultem uma excellente dissertação, dedicada especialmente á este animal, escripta pelo Dr. Roulin, Bibliothecario do Instituto.
No Glossario de Martius lê-se uma extensa synonimia relativa ao Tapir. (Vide pag. 479.)
9 (pag. 18)
É certo que os indios d’esta tribu foram contrarios aos francezes.
Ha na historia d’esta expedição um ponto, que não foi ainda bem esclarecido: o mais afamado capitão de indios de que se recorda o Brasil fez suas primeiras campanhas durante o dominio dos francezes.
O celebre Camarão, o grande chefe ou Morubixaba dos Tabajares, commandava 30 frecheiros na lucta entre la Ravardiere e Jeronymo de Albuquerque.
Convidado pelo governo portuguez para tomar parte n’esta guerra, partio de sua aldeia, no Rio Grande do Norte, e foi para o Presidio de N. S. do Amparo, no Maranhão, em 6 de setembro de 1614: seguio-o seo irmão Jacauna com um filho de igual nome, e de 18 annos de idade.
Depois de muitos annos Camarão, que teve tão boa escola, adquirio fama immortal nos fastos do Brasil por occasião da expulsão dos hollandezes. (Vide Memorias para a historia da Capitania do Maranhão, impressa nas Noticias para a historia e geographia das Nações ultramarinas.)
10
No Brasil não ha verdadeiros javalys, e nem este nome se pode dar aos Pecoris ou Tajassus, ou Porcos do Matto na linguagem dos naturaes. Não é extraordinaria a proesa do fidalgo, porque andando os pecaris sempre em bando basta chumbo grosso para matal-os. Martius deo a synomimia completa d’este animal no Glossaria linguarum brasiliensium. (Vide a divisão Animalia cum Synonimis, pag. 477.)
11
Um ajoupa é uma pequena cabana coberta de folhas e abertas por todos os lados.
Esta palavra é muito usada nos nossos estabelecimentos de Guyana. Vê-se estampas de ajoupas em Barrére.
12
Em 1542 a fóz do grande rio foi explorada por Aphonso de Xaintongeois. (Vide o Manuscripto original de sua viagem na Bibliotheca Imperial de Pariz.)
João Mocquet, cirurgião francez, guarda das curiosidades de Henrique IV, visitou suas praias. (Vide o Manuscripto do seo Relatorio na Bibliotheca de Santa Genoveva.)
Finalmente la Ravardiere fez até lá um reconhecimento.
João Mocquet foi muito explicito quando tratou do mytho das Amasonas, que tanto occupou Condamine e o illustre Humboldt. Tudo quanto elle referio d’estas guerreiras soube do chefe Anacaiury, cujo personagem, ou seo homonymo, encontra-se nas obras de Ivo d’Evreux.
Governava uma nação no Oyapok ou do Yapoco.
Mocquet disse a seos leitores, que não poude visitar, como desejava, o Amasonas «por serem violentas as correntes para os navios, e mesmo para o seo patacho que ja fazia muita agoa.»
Todas estas narrações a respeito do grande rio deixou em França impressões tão duradouras, que o Conde de Pagan, quarenta annos depois, convidou a Mararin a reerguer projectos esquecidos. Para a conquista da Amasonia elle queria união com os indios, e por sua vontade devia o Cardeal ligar-se «aos illustres Homagues (Omaguas) aos generosos Yorimanes e aos valentes Tupinambás.» Nunca certamente os selvagens receberam tão pomposos nomes!
Seria mui curiosa, si se achasse, a narração da expedição pelas margens do Amasonas em 1613, feita por ordem de la Ravardiere e ainda no tempo de Luiz XIII existia uma copia.
13
Entra Gabriel Soares em minuciosas descripções do fabrico d’esta farinha, de que os indios fazem grandes provisões.
A especie de mandioca, conhecida pelo nome de Carimã, serve de base.
Esta raiz a principio dissecada a fogo brando, depois ralada, é pisada n’um almofariz, peneirada e misturada com certa quantidade de outra qualidade de mandióca na occasião de ser torrada, o que se faz até ficar muito secca, e n’esse estado é conservada por muito tempo.
Encontram-se sobre esta industria agricola do Brasil todos os esclarecimentos necessarios no Tratado descriptivo do Brasil, pag. 167.
Augusto Saint-Hilaire disse com rasão, que a cultura da mandióca tirou a maior parte dos seos processos da economia domestica dos Tupis, e resumio concisa e habilmente tudo que ha a dizer-se relativamente ao cultivo da planta. (Voyage dans le district des Diamants et sur le littoral du Brésil. T. 2 — pag. 263 e seguintes.)
14
Gabriel Soares está aqui inteiramente de accordo com o nosso Missionario.
Estas grandes canoas chamavam-se Maracatim, por causa do Maracá, que, como protector, trasiam na prôa. Iga chamava-se uma canôa pequena, e Igaripé uma canoa de cortiça ou casca de arvores, etc. etc. (Vide Ruiz de Montoya, Tesoro, na pag. 173.)
15
André Thevet, e depois d’elle João de Lery descreveram com exactidão este genero de ornato, chamado Araroye pelo ultimo d’estes viajantes.
Coube ao padre Ivo fazer-nos conhecer seo valor symbolico.
16
A curiosa narração do indio confirma a opinião de Humboldt, e bem pode ser que antigamente se encontrassem algumas mulheres cansadas do jugo dos homens, e por isso entregues á vida guerreira.
Combina igualmente com as tradicções colhidas por Condamine e sessenta annos antes do Padre Ivo o franciscano. André Thevet não esteve longe de vêr n’estes selvagens americanos descendentes directos do exercito feminino commandado por Pentisilée.
Humbold disse com rasão, que o mytho das Amasonas era de todos os seculos e de todos os periodos da civilisação.
17
Esta nação não é indicada no Diccionario topographico, historico, descriptivo da Comarca do Alto Amasonas. Recife. 1852 — 1 vol. em 12.
Tambem não a encontramos na longa nomenclatura da Corographia Paraense de Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Deve estar extincta, e Martius tambem não a cita no seo Glossaria, publicado ultimamente.
18
Por este nome, aqui tão frequente, designa-se uma grande aldeia alem de Tapuitapéra.
Era tambem o nome de um vasto territorio e de um rio.
Segundo o padre Claudio — Cumã significa proprio para pesca, porem duvidamos que seja exacta a explicação.
Debalde procura-se esta palavra no Glossaria de Martius publicado em 1863.
19
Cazal, o Diccionario do Alto Amasonas, e Accioli nada dizem a respeito d’estes rios, onde comtudo esteve um exercito de 2,000 homens! Martius trata de uma nação de Pacajaz ou Pacayá, no Pará. (Vide Glossaria linguarum. pag. 519.)
20
Esta ligeira descripção das casas aereas construidas sobre mangues e troncos das palmeiras muritis lembra um facto bem curioso, classificado outr’ora como fabula, e descripto na Relação de Walther Ralegh.
É bem possivel que haja alguma exageração, porem o facto é authentico, e deo-se na foz do Orenoco.
Os Waraons visitados ha perto de um seculo pelo Dr. Leblond, os Guaraunos descriptos pelo sabio Codazzi, são um e o mesmo povo, salvos de inteira destruição por sua maneira de viver.
Os Camarapins, cujo desaparecimento acabamos de provar, foram menos felises.
Á respeito dos indios das Iouras consulte-se o resumo, que outr’ora fizemos, dos manuscriptos, por onde o Medico francez provou sua moradia entre os Waraons. (Vide Guyana, 1828, em 18.)
Codazzi, cujos bellos trabalhos geographicos são conhecidos, citava em 1841, os Guaraunos, como não tendo ainda abandonado suas casas aereas.
Ha trinta annos, quando muito, vinham elles negociar com os habitantes da Trindade. (Vide o Resumen de la Geographia de Venezuela. Pariz. 1841 — em 8.)
Agostinho Codazzi morreo ultimamente.
Quanto aos manuscriptos de Leblond, que ja tivemos á nossa disposição, pertenciam á collecção das viagens, possuida em 1824 pelo edictor Nepveu.
21
Este personagem tinha um nome todo portuguez, e era muito dedicado á nação, a cujos interesses servia.
O titulo de Capitão afinal estendeo-se a todos os chefes da raça indigena.
22
Este selvagem fanfarrão gabava-se de ter feito morrer o padre Ambrosio, residente em Iuiret, cuja pronuncia segundo Claudio d’Abbeville, é Jeuiree, e ella indica a estranha significação d’este nome.
O Pay açu, o grande padre é Ivo d’Evreux. A palavra Pay quer dizer em portuguez Padre. Pay-guaçu, diz Ruiz de Montoya significar Bispo ou Prelado em Guarany.
O nome de Pay foi mais facilmente adoptado pelos indigenas pela sua analogia em designar pessoas graves. Os feiticeiros eram chamados — hechizeros — para servir-nos da propria expressão do lexicographo hespanhol.
Da lingua geral, modificação do Guarany, Pay significa padre, monge e senhor. Pay Abaré Guaçu era a designação dos prelados e dos jesuitas. Os indios ainda chamavam o papa Pay aboré oçu eté.
23
Não sabemos porque o missionario modifica a orthographia do nome de um povo, que elle ja escreveo muitas vezes de forma diversa.
Claudio d’Abbeville escreve Topinambás, o author da sumptuosa entrada Tupinabaulx, Hans Staden Topinembas, e emfim João de Lery Tuupinambaults. Malherbe suavisando a expressão escreve Topinambus. Foi esta ultima orthographia a que prevaleceo no tempo de Luiz XIV, porem preferimos a que é adoptada pelos brasileiros.
24
Por esta palavra tão vaga, aqui empregada pelo padre Ivo, suppomos que elle pretende designar os povos mais selvagens ainda que os Tupinambás, ou então que se entregavam mais especialmente a anthropophagia.
Nas obras de Humboldt encontra-se uma curiosa definição da palavra Canibal. Notaremos apenas, que 50 annos antes do tempo, em que escreveo o padre Ivo, designavam-se assim, quasi que exclusivamente, os indios mais proximos do Equador.
Na historia da França antarctica por André Thevet, á proposito da madeira de tincturaria, lê-se o seguinte: «o da costa do rio de Ianaire é melhor que o da costa de Canibaes e de toda a costa do Maranhão,» (pag. 116 verso), e mais adiante: «visto que chegamos a estes Canibaes, d’elles diremos apenas, que este povo, depois do cabo de Santo Agostinho, e alem até o Maranhão, é o mais cruel e deshumano que em qualquer outra parte da America. Esta canalha come ordinariamente carne humana, como nós comemos carneiro.» (pag. 119.)
25 (pag. 31.)
Foi com effeito nas margens do Itapecurú, que se apresentaram os portuguezes.
Claudio d’Abbeville disse algumas palavras sobre este bello rio, porem exagerou o seo curso.
Nós estamos tão pouco ao facto da geographia d’esse paiz, que Adriano Balbi se contentou em mencionar seo nome apenas no quadro, que traçou, dos rios do Maranhão.
Que prodigiosas mudanças não se terão operado sobre suas margens desde o tempo, em que o nosso bom frade assim o chamava alterando-lhe o nome!
Em lugar d’estas florestas, onde andavam errantes os Timbyras, cultiva-se milho, mandióca, canna de assucar, fumo e algodão, e a producção ultima d’este genero foi tão abundante, que subio a 35,000 saccas.
Em França não se conhece o nome das cidades mais importantes, assentadas á margem d’este rio, e apenas se encontram em nossos livros de geographia.
Quem já ouvio fallar da pequena cidade de Caxias, a risonha patria de Gonçalves Dias? Comtudo é uma cidade rica, commercial, banhada pelo Itapecurú, e distante da capital sessenta legoas.
Em 1821 era apenas um povoado de 2,400 almas, e hoje este numero elevou-se a 6,000 habitantes.
Caxias é o centro do commercio entretido com o Piauhy, e com immensas solidões de campos de criação de gado, conhecidas pelo nome de sertão.
Edificada para assim dizer no deserto, tem escolas florescentes, um theatro, estabelecimentos de utilidade publica, que nem sempre se encontra em cidades mais consideraveis.
O nome de Caxias tem no Brazil significação politica, porque, em 1832, travou-se no Morro do Alecrim uma batalha, cujo resultado consolidou a Independencia da Provincia. Mais tarde, na propria colina, chamada das Tabócas deo-se o sanguinolento combate, onde foi vencido[4] Fidié, e que inspirou a Gonçalves Dias tão energicos versos.
Seriam necessarios volumes para narrar, ainda que summariamente, as perturbações, que se seguiram a este acontecimento, e as luctas tempestuosas, que houveram neste canto ignorado do mundo até 1848, quando o Dr. Furtado conseguio reprimir a horda, que assolava esta cidade nascente.[5]
A propria naturesa, por si só, é grande n’estas regiões: 20 mil habitantes formam a população d’este vasto municipio, empregado superficialmente na agricultura.
Na distancia, em que nos achamos, estas revoluções tão cumpridas para serem contadas, assimilham-se ás da idade media, que a historia local as vezes registra, mas que facilmente esquece visto não ligar-se á algum dos grandes interesses, que prende a attenção do mundo.
Com mais justa rasão pode applicar-se isto a villa do Codó, a mais florescente após Caxias, como ella banhada pelo Itapicurú, e como ella separada da Capital por um espaço de 60 legoas.
26
Este nome do principio do mal, acceito em toda a obra pelo Padre Ivo d’Evreux e por Claudio d’Abbeville parece ser mais particular ao Norte do Brazil.
Martius escreve Jurupari, ou Jerupari. Anhagá parece ser mais uzado ao Sul. Não se acha a significação desta palavra no Tesoro de la lingua Guarani. Angai neste precioso Diccionario significa espirito mau. Anhanga significa hoje apenas um phantasma. (Vide Gonçalves Dias, Diccionario da lingua Tupy.)
27
Estes povos, antes de reunidos, eram chamados Tabaiares pelos Tupinambás. Pag. 36.
Tabajares não significa de maneira alguma inimigo, e sim senhores da Aldeia. (Vide Adolpho de Varnhagem, Historia geral do Brazil. T. 1.º Accioli. Revista do Instituto.)
28
A denominação, adoptada no Seculo XVII por nossos compatriotas, veio sem duvida alguma do costume que tinham estes indios de furar o labio inferior, e mesmo as faces para n’ellas introduzir discos de uma especie de esmeralda, feitos com muita paciencia, e apreciados como joias estimaveis. (Vide Sur l’usage de se percer la lévre inferieure chez les Américains du sud, a serie de nossos artigos, inserida com muitas gravuras no Magasin pittoresque. T. 18 pag. 138, 183, 239. 338, 350 e 390.)
29
Mearinense é evidentemente um nome creado pelo nosso bom Missionario, e melhor não o inventaria Rabelais.
Os Mearinenses eram os proprios Tupinambás que residiam nas ferteis margens do Meary, d’onde proveio o nome á provincia, no pensar de Cazal. O Mearim, que offerece um curso de 166 legoas, só é navegavel no inverno, e as canoas grandes sobem unicamente até 60 legoas. Nasce na Serra do Negro e Canella aos 8° 2′ e 23″ de lat. e 2° 21′ de long. contados da Ilha de Villegagnon na bahia do Rio de Janeiro.
30
A palavra Tapuya ou Tapuy tem levantado grandes discussões: será o nome de um povo? (Vide o Diccionario de Gonçalves Dias).
Significará inimigo? Ruiz de Montoya nada diz a tal respeito. Será preciso crear uma nação distincta da dos Tupys, a qual estes deram tal nome. Um escriptor, authoridade na materia, Ignacio Accioli não hesita a tal respeito.
Quando enumera as principaes divisões da raça Tupica, elle diz: «outra nação geral, a dos Tapuias, divide-se, como pensam muitos, em pequenas tribus fallando perto de cem dialectos, e são os Aymorés, os Potentus, os Guaitacás, os Guaramonis, os Guaregores, os Jaçarussus, os Amanipaqués, os Payeias e grande numero de outras.» (Vide T. XII da Revista Trimensal — Dissertação historica, ethnographica e politica sobre quaes eram as tribus aborigenes, etc., etc., pag. 143.)
31
Este pensamento passou como proverbio na ilha e em Goyana.
32
Hans Staden prisioneiro, pelos Tupinambás em 1550, ao sahir do Forte da Bertioga suscitou grande discussão para saber-se com certeza, quem foi o primeiro que o tocou. (Vide la Collection. Ternaux Compans.)
33
Nada tem de extraordinario o nome d’este chefe, porem é necessario escrevel-o assim com mais exactidão, Ibira Pitanga. (Vide Ruiz de Montoya.) Lery escreveo Araboutan, Thevet Oraboutan. Desapparece esta celebre madeira cada vez mais das grandes florestas, onde íam buscal-os os nossos antepassados.
34
É um Tabajara quem falla, porem observamos, que a palavra Carbet não pertence á lingua geral.
O padre Ruiz de Montoya não a inserio no seo precioso Tesoro de la lingua Guarany.
É usado mais particularmente entre os Galibis e os outros povos de Guyana.
Resente-se esta expressão da visinhança da nossa colonia.
Convem fazer certa differenca entre os Carbets, ou casa grande, e as Ocas ou Tabas, que formavam a architectura rudimentar dos outros povos do Brasil.
Ouçamos a este respeito o Padre du Tertre. «No meio de todas estas casas, fazem uma grande, commum, a que chamam Carbet, a qual tem ordinariamente 60 ou 80 pés de comprimento, e é formada de grandes forquilhas de 12 a 20 pés de altura, infincadas na terra: sobre ellas collocam uma palmeira, ou outro tronco de arvore muito direito, que serve de cumieira, e n’ella ajustam caibros, que descem até tocar em terra, e cobrem-nos com ramos ou folhas de palmeiras, ficando muito escuro o interior da casa, pois a claridade só entra pela porta, e esta é tão baixa, que para entrar-se é necessario curvar-se.»
Estas particularidades pedimos emprestadas a uma obra do anno de 1643, e se referem especialmente a architectura rustica dos Caraibas insulares.
Escolhemos este exemplo quasi contemporaneo do livro publicado pelo nosso autor, porque na realidade não ha grande differença entre os Carbets das ilhas e os dos continentes.
Si se escrevesse uma historia d’essas casas de folhas tão rapidamente construidas, apresentar-se-iam certas variedades conforme os usos e fins para que se destinam. (Vide a este respeito Le voyage pittoresque au Bresil de Debet, depois as gravuras do livro de André Thevet, publicado em 1558.)
Haviam pequenos e grandes Carbets, aquelles onde os Piagas faziam suas charlatanerias, e estes onde se formavam os grandes conselhos.
Tinham estes ultimos a configuração de um dos nossos vastos alpendres, tendo lugar para 150 ou 200 guerreiros.
No XVII seculo, na linguagem de nossas colonias, nas ilhas ou no continente, formar um conselho qualquer era Carbeter; o termo era proprio e acha-se usado por todos os viajantes. (Vide entre outros Biet, Voyage de la France équinoxiale. Paris. 1654, em 4.º)
35
David Migan era natural de Dieppe, e como fizeram tantos outros naturaes da Normandia no fim do seculo XVI, veio tentar fortuna entre os selvagens do Brasil.
Encontraram-no os chefes da opposição estabelecido havia muitos annos em Jupinaram, na ilha do Maranhão.
Era em toda a extensão da palavra um interprete da Normandia, e sabe Deos de que reputação gozavam estes interpretes no que dizia respeito ao que então se chamava mundo civilisado.
Comparavam-nos até aos selvagens, cujos odiosos festins, dizia-se, que elles partilhavam.
David Migan teve as honras do Mercurio francez. (Vide T. 3, pag. 164)
Regressou á França com Rasilly a quem era muito affeiçoado, e assim foi bom por ser o unico capaz de traduzir para a Rainha, a longa exposição de Itapucu.
De passagem lembramos ter elle tambem assignado o termo de cessão, que la Ravardiere fez de seos direitos a Francisco de Rasilly, o que indica, sem duvida alguma, o gozar de consideração excepcional.
O nome de Migan nos parece ser nome de guerra, pois esta palavra na lingua tupy, significa o caldo grosso, que se fazia com a farinha de mandioca.
Malherbe, que estava nas Tulherias, quando se apresentaram os indios, notou a habilidade d’este homem.
Havia outro interprete chamado Sebastião, muito affeiçoado a Ivo d’Evreux.
36
É mui curioso o achar-se em Maranhão, no anno de 1612, um selvagem fazendo ao padre Ivo o mesmo raciocinio, a que foi obrigado á responder João de Lery em 1556: «o que quer dizer vós Mair e Peros, (francezes e portuguezes) virdes de tão longe buscar madeira para vos aquecer? Lá não a tendes?» (Vide Histoire d’un voyage en la terre du Bresil, Rouen 1578 em 8.º)
37
Largamente descreveo Mr. Humboldt a região dos Otomanos, e as porções immensas de terra, que reunem estes indios para comer quando lhes falta a caça e a pesca.
Pensa o grande viajante, que esta terra secca ao sol, formando tulhas de bolasinhas, dispostas symetricamente, é procurada pelos selvagens por conterem particulas animalisadas e que a fazem nutritiva.
Prova o padre du Tertre, que tanto os indios das ilhas como os do continente comem terra, embora pense que seja por aberração de gosto.
«Todos comem terra, mães e filhos, diz elle, e a causa de tão grande aberração de gosto não pode proceder, penso eu, senão de um excesso de melancolia.» (Hist. nat. das Antilhas, habitadas pelos francezes. T. 2º, pag. 375.)
Não longe das regiões descriptas pelo padre Ivo, á margem do rio Ucayale, encontram-se ainda os indios Pinacos, cujo nome verdadeiro é Puynagas. Estes indios despresados por seos compatriotas, são afamados comedores de terra. A este respeito, entre outros, foi publicado um curioso opusculo de Mr. Moreau de Jonnès com o titulo de Observations sur les Geophages des Antilles. Paris. An. VI. Tem somente 11 paginas.
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Na enumeração das diversas classes da infancia achamos ainda exactidão no padre Ivo, embora confundisse a letra N com a R: a palavra menino escreve-se Curumim nos Glossarios brasileiros. (Vide Gonçalves Dias, Diccionario da lingua Tupy. Leipzig, 1858 em 12.)
39
Gonçalves Dias chama a virgem Cunhã mucu. (Vide Diccionario.)
40
Este singular uso, fallado por todos os viajantes do XVI seculo, como acaba de ver-se ainda não estava modificado.
Não se encontra somente entre os Caraibas das ilhas, e sim tambem em pleno vigor na Europa, e especialmente entre os Bascos, e era então chamado a «encubação.»
As «Miscellanias historicas,» publicadas em Orange em 1675, contem interessantes observações á tal respeito. «Nota-se, diz elle, um admiravel costume em Bearn. Quando pare uma mulher, anda á pé e o marido deita-se para guardar o resguardo. Creio que os Bearnenses tomaram este costume dos hespanhoes, de quem Strabon disse a mesma coisa no livro 3º da sua Geographia.»
O mesmo faziam os Tibarénienses, como refere Nimphodore, na excellente obra de Apollonio de Rhodes, livro 2, e os Tartaros segundo o testemunho de Marco Paulo, cap. 41. livro 2.º
Esto uso, tão exquisito, e só explicavel si se podesse descer até o recondito mais intimo do caracter indiano, era religiosamente observado pelos mais valentes e afamados guerreiros Tupinambás, e provocaria o riso do homem civilisado, si indagasse a sua origem natural. Torna-se porem admiravel, para assim dizer, quando se sabe ser tal costume acompanhado de mui crueis privações, porque o indio, que acaba de ser pae, e que se condemna a tão ridiculo repouso, não só priva-se de alimentos, como ainda se entrega a outros supplicios com intenção de evitar que soffra o filhinho certos males, que elle receia.
Pela sua ignorancia e superstição julga-se com grande influencia phisiologica sobre o menino, e muito soffre e com stoicismo afim de poupar algumas dores ao recem-nascido.
O homem civilisado das cidades, embora mediocremente intelligente, abstem-se de esquadrinhar estas ideias cheias de dedicação, embora inconstantes dos selvagens, e ri-se antes de proferir seo juiso.
A companheira do indio tambem supersticiosa, approva o que faz seo marido: soffre, sem queixar-se, verdadeiras dores e entrega-se a um novo trabalho ainda mais pesado, porque todo o serviço da casa cahe sobre ella.
No modo de pensar desta pobre mulher a salvação do recem-nascido depende do procedimento stoico de seo marido. Nunca podemos saber qual era o motivo, que obrigava os antigos a entregarem-se a este repouso tão exquisito, não differente provavelmente do concedido aos americanos. Carli, cuja engenhosa erudicção explica tantas coisas antigas da America, não procurou mesmo uma hypothese para descobrir motivo tão ridiculo. Enganou-se por certo, quando disse serem elles alimentados abundantemente. (Vide Lettres Américaines. Boston et Pariz, 1788, T. 1 pag. 114.)
É bom ler-se com cuidado a versão francesa d’esta curiosa passagem.
Não soube o traductor francez, Febvre de Villebrune, dar real valor ás palavras italianisadas pelo autor.
Antonio Biet, é mais justo para com os indios, e menos inclinado á zombaria do que os seos predecessores, quando descreve a «incubação» entre os Galibis.
«O pobre indio, diz elle, soffre muito durante seis semanas, come pouco, e quando acaba o resguardo, está tão magro como um esqueleto.»
O mesmo viajante nos mostra o Galibi, sempre paciente, não deixando a casa grande, e nem se animando a levantar os olhos para os que o rodeiam. (Voyage de la France equinoccial, Livro 3.º pag. 390.)
Descrevendo os costumes de certos Caraibas, não podia o autor da historia moral das Antilhas esquecer a incubação.
Rochefort conta as particularidades e especifica sua analogia com uma ceremonia identica, que vio n’uma provincia de França.
Este repouso forçado do indio pareceo-lhe muito absurdo, porem não nega ao pobre paciente o merito do jejum, antes confessa, que durante sua reclusão apenas lhe dão um pouco de farinha e agoa. (Vide Historia moral pag. 494.)
Não proseguiremos n’estas citações, bastando dizer que entre os povos do Brasil os Tupiniquins, os Tupinacs, os Tabajares, os Petiguaras, e muitas outras tribus imitam os Tupis, e estes nomes nada mais adiantam.
Convem comtudo fazer bem saliente o amor paterno entre os indios, dando-se assim ao mais extravagante dos costumes a sua origem verdadeira.
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Tamoi quer dizer avô na lingua dos Tupinambás: aqui ha alteração de palavra, proveniente por differença de pronuncia.
Lê-se no Tesoro de la lingua Guarany, base da lexicographia brasileira Tamôi, abuelo, Cheramòi, mi abuelo, Cherúramôîruba, mi bisabuelo, Cherúramôî, el abuelo de mi padre, etc.
Por sua origem tinham os Tamoyos real proeminencia sobre as outras tribus da mesma raça.
No meiado do Seculo XVI habitavam as circumvisinhanças de Nicteroy, ou antes do Rio de Janeiro: como alliados fieis dos franceses foram expellidos d’esse bello territorio por Salema, e os restos de suas tribus desceram para as regiões do Norte, onde encontraram seos antigos amigos, que se haviam refugiado especialmente nos campos de Maranhão.
42
Não é de mediocre importancia a especie de vocabulario, aqui offerecida pelo nosso missionario.
Os leitores francezes, pouco familiarisados com a philologia americana, despresaram sem duvida esta collecção de frases, provenientes d’uma lingua, que comtudo servio de recreiação á Boileau: o mesmo não acontecerá n’um vasto Imperio, onde as letras são hoje tão honradas.
Ha muitos annos já, que o Autor da Historia Geral do Brazil provou a importancia do estudo das linguas indigenas n’uma Memoria impressa entre as actas do Instituto Historico do Rio de Janeiro. (Agosto 1840.)
O padre Anchieta, a quem se deve a composição da primeira grammatica, conhecida, da lingua geral, não fallava o Tupy sem uma especie de enthusiasmo; o padre Figueira o imitou em sua sincera admiração; Laet, com quanto não manifestasse admiração gabou sua abundancia e doçura, e nisto foi seguido por Bettendorf.
Pode dizer-se, que entre todos estes foi o padre Araujo quem melhor fez sobresahir sua importancia debaixo do ponto de vista philosophico.
«Como foi, disse algures esse Religioso, que os povos, que a fallaram, tendo suas ideias limitadas em estreito circulo de objectos, todos necessarios embora á seo modo de vida, podessem conceber signaes representando idéas, capazes de indicar o objecto, que não conheciam antes, e isto não de qualquer forma, e sim com propriedade, energia e elegancia», accrescentando «sem ter ideia alguma da religião, a não ser da natural, encontraram em sua propria lingua expressão para patenteiar toda a sublimidade dos mysterios da religião, e da Graça, sem pedir emprestado coisa alguma aos outros idiomas.»
Enganar-se-ia completamente quem julgasse estar hoje esquecida a lingua usada entre tribus numerosas quando em 1500 Pedro Alvares Cabral descobrio o Brasil.
Deixou não só vestigios na Geographia do Brazil, mais tambem ainda hoje se falla n’algumas aldeias, tendo estreita affinidade com o Guarany, lingua usada na mór parte do Paraguay. Comtudo não é a mesma do seculo XVI.
Modificam-se os idiomas dos povos selvagens á similhança dos idiomas dos povos civilisados, e ainda mais talvez quando uma corrente de ideias novas vem desvial-os da liberdade do seo andar.
O Maya, o Quiché, o Aztéco, o Quichua, o Aymara não são o que foram no tempo de Cortez, de Alvarado, e de Pizarro.
Si o sabio Veytia podesse, ha perto de um seculo, confrontar a differença enorme, que apresenta o Nahuatl antigo com o que fallavam muitas pessoas do seo tempo, imagine-se o que não succederia quando se fizesse a mesma confrontação entre a lingua Tupy, e o moderno Guarany.
Esta ultima lingua, tão em uso no Paraguay, não é mais fallada com a pureza da sua origem, segundo diz o Sr. Beaurepaire de Rohan, si não pelos Cayuas, das nascentes de Iguatiny.
São pois mui preciosos todos os livros, que tratam da lingua antiga debaixo do ponto de vista grammatical.
Debaixo d’este ponto de vista, as viagens d’Hans Staden, de Thevet, e de Lery tem mais valor do que as Relações de Claudio d’Abbeville e Ivo d’Evreux.
Acham-se todos os promenores apreciaveis á este respeito no nosso opusculo publicado sob este titulo — Une fête bresilienne célébrée á Rouen en 1550. Suivie d’un fragment du XVI siécle roulant sur la Théogonie des anciens peuples du Brésil e des poésies en langue Tupique de Christovam Valente. Pariz, Techener, 1850, gr. em 8.º
O sabio Hermann E. Ludewig não conheceo o vocabulario apresentado pelo padre Ivo, ou pelo menos não tratou d’elle. (Vide The literature of American aboriginal languages. London, 1857, in 8.)
Finalmente tem se feito n’estes ultimos tempos trabalhos de tanto folego, merecendo o primeiro lugar os do illustre Martius.
Um distincto litterato brazileiro, o Dr. Gonçalves Dias, que já publicou em Leipzig o Diccionario da lingua Tupy (1858) foi de novo estudal-o nas profundas florestas do Amazonas.
A philologia brasileira ainda fará grandes progressos.
43
Aqui ha falta sensivel em nosso texto, por ter indubitavel o nosso viajante occupar-se largamente d’uma raça, que com os Morobixabas representam o papel principal na vida civil e politica dos Brasileiros.
Simão de Vasconcellos nas suas — Noticias do Brasil — nada deixa a desejar a tal respeito, e para elle enviamos nossos leitores, observando apenas que os Piayes, os Pagé ou Pagy somente alcançavam a prodigiosa influencia, que gozavam, submettendo-se á experiencias e a jejuns tão rigorosos a ponto de arriscarem sua vida, obtendo finalmente o titulo, que tanto ambicionavam.
São as mesmas essas provas ou experiencias desde a embocadura do Orenoco até as do Rio da Prata.
Quando o candidato estava ja muito enfraquecido pelo jejum, entregavam-no ás mordiduras das formigas, abarrotavam-no de bebidas asquerosas, cuja base era o succo do tabaco, e algumas vezes defumavam-no a ponto de perder os sentidos.
Si resistia a taes supplicios, era igual senão superior aos guerreiros.
Deixou-nos Vasconcellos a respeito do que se pode chamar Collegio dos Piagas, á similhança do Collegio dos Druidas, certas particularidades muito minuciosas, applicaveis principalmente ás Provincias do Sul.
No Norte os Pages Aybas eram os feiticeiros afamados astrologos, ou melhor tempestuosos, a que nada podia resistir. Sob sua dependencia estavam os astros, e sob sua obediencia o sol e a lua para cumprir suas ordens: desencadeiavam os ventos e levantavam tempestades. Os mais ferozes animaes, como as onças e jacarés, obedeciam-no.
Para alcançar aos olhos do publico tal poder recorria o Pagé Aybas a um meio, que nunca falhou, isto, é a herva dos feiticeiros ainda mais poderosa do que a da Europa, o Paricá, cujos effeitos terriveis foram descriptos pelo Dr. Rodrigues Ferreira. (Vide Memorias das Academias das Sciencias de Lisboa.)
Mastigava-se o Paricá, e com isto fazia-se um unguento, uzado para uncturas.
44
Ha aqui um pequeno erro typographico, que convem corrigir: leia-se pois rocou.
Em toda a America Meridional costumavam os selvagens tingir a pelle de vermelho alaranjado, ou de negro azulado por meio do rocou, Bixia Orellana, ou Genipapeiro (Genipa Americana.)
O Padre Ivo descrevendo com exactidão o fructo d’esta arvore, em abundancia no Maranhão, diz — o summo claro, e limpido que se extrahe della, fica muito negro logo depois da sua applicação, e assim conserva-se por 9 dias (Vide a este respeito Humboldt, Voyage aux régions équinoxiales.)
45
Serve-se aqui Ivo d’Evreux de uma expressão impropria designando pela palavra Thon o que se chama bicho de pé, niga, pulex penetrans, dos entomologistas. Bem pode ser que a palavra seja da lingua geral. Encontra-se com a mesma accepção em Thevet, que a escreveo em 1558 (Vide France antarctique. pag. 90). È muito conhecido este insecto, e por isso desnecessario é demorarmo-nos descrevendo os males, que produz. (Vide entre outros Naturalistas, o veridico Auguste de Saint-Hilaire, Voyage dans l’interieur du Brésil. T. 1.º pag. 35 e 36).
46
Realisou-se completamente a prophecia do bom Padre.
Poucas são as regiões do mundo, que, como esta, tenham sido exploradas em beneficio da sciencia.
Alem das Plantas uteis do Brazil, devidas ao nunca assás chorado Augusto de St. Hilaire, ha hoje a Flora brasiliensis do illustre Martius, tambem autor da Materia-medica deste paiz.
Não desejamos cançar o espirito do leitor com uma arida nomenclatura de livros especiaes.
Contentamos-nos apenas dizendo, que muito tem os brazileiros concorrido para estes trabalhos scientificos, citando somente as Memorias do Dr. Freire Allemão, recentemente publicadas, e a grande collecção, infelizmente não acabada, da Flora Fluminensis.
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Esta molestia, tão cruel e tão similhante á syphilis, se não é a propria syphilis, tambem acha-se descripta na France antarctique de André Thevet, livro publicado em 1558 (vide pag. 86). João de Lery tambem descreveo seos symptomas. Está claro, que não se pode attribuir aos negros de Guiné molestia tão geral entre os Americanos.
48
O Padre Ivo é rigorosamente exacto no que diz á respeito dos funeraes dos Indios, e com elle concordam em tudo Lery e Thevet, dando este ultimo uma excellente estampa representando um Indio prestes a ser sepultado. (Vide pag. 82 v.)
49
Não se esqueciam os Tupinambás de collocar, entre as suas singulares previsões para o morto, um pouco de tabaco, carne, peixe, raizes de cará e de farinha de mandióca. É rigorosamente verdadeiro tudo o que o padre Ivo conta n’este capitulo, como se pode vêr nas estampas que apresentam Thevèt na France antarctique, e Lery na sua voyage.
50
Os Tapuytapéras, cujo nome deviam á uma localidade do Maranhão, tinham cabellos cumpridos. Pertenciam á raça Tupy, pois que Migan, o interprete natural de Dieppe, entendia sua linguagem, e o mesmo succedia aos de Commã, cuja aldeia tinha indios com este nome.
Os Cahetés, no seculo XVI, constituiam uma nação essencialmente bellicosa occupando a maior parte do territorio de Pernambuco. Fallavam a lingua Tupica, ou lingua geral. Encontram-se as mais curiosas particularidades á respeito de sua organisação interna no Roteiro do Brasil, manuscripto existente na Bibliotheca Imperial de Pariz.
Hoje está sabido, que este livro, tão notavel, composto em 1587 por Gabriel Soares, é o trabalho mais completo, que existe sobre as diversas tribus do Brasil existentes no tempo do padre Ivo.
Passados muitos annos a Academia Real das Sciencias de Lisboa, reconhecendo a sua importancia, imprimio-a nas suas Noticias das nações ultramarinas, e depois o Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem, colleccionando todas as copias d’esta mesma obra, embora sob diversos titulos, publicou uma nova edicção superior á todas, sob o titulo de Tratado descriptivo do Brasil em 1587, obra de Gabriel Soares de Sousa, senhor de engenho na Bahia, nella residente dezesete annos, seo vereador da Camara. Rio de Janeiro. — 1851 em 8.º
51
O padre Ivo quando quer designar o tubarão, escreve impropriamente requin, quando na primitiva era requiem. Pode bem ser, que o nome imposto a este peixe tão voraz provenha da rapidez com que mata.
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O Maracá era um instrumento symbolico, usado tanto nas festas religiosas como nas profanas. Thevet, o guarda das curiosidades do Rei, o descreveo muito bem em seos manuscriptos, inedictos, e como sei que não será desagradavel para aqui transcrevo as suas palavras:
Tendo nas mãos um ou dois maracás, que é um fructo grande, de forma oval, similhante ao ovo de abestruz, e da grossura de uma abobora, mais agradavel á vista do que ao paladar, pelo que ninguem o come, fazem com elles muitos mysterios e superstições tão extravagantes como incriveis. Cavam o fructo, enchem-no de milho graudo, amarram-no a ponta de uma haste, enfeitam-no com pennas e enterrando a outra ponta, fica ella em pé. Cada casa tem um ou dois Maracás, que respeitam como si fosse Tupan, trazendo-o sempre na mão, quando dançam e fazendo chocalhar.
Pensam que é Tupan que lhes falla (Manuscripto de André Thevet, conservado na Bibliotheca Imperial de Pariz.)
Hans Staden e Lery, Roulox Baro escreveram largas paginas a respeito do Maracá, e o proprio Malherbe falla dos que ouvio em Paris por occasião do baptismo de tres indios sendo padrinho Luiz XIII.
Chegando a Pariz, e residindo no Convento dos seos protectores, os indios revestidos dos seos bellos adornos, e com o maracá em punho, excitaram muito enthusiasmo, a ponto de haver muita paixão pela sua dança e pela sua propria musica.
Seria muito curioso si hoje se achasse a Sarabanda composta em honra d’elles pelo famoso Gauthier. Malherbe escreveo ao celebre Peirese dizendo tel-a mandado á Marco Antonio «como excellente peça digna de ouvir-se» (Vide Correspondance, pag. 285, antiga edicção.)
Ainda, passadas 12 paginas Malherbe tratou da musica então em voga, e do seo auctor, dizendo «ser Gauthier considerado o primeiro no officio, ignorando porem si sahira bem, e si o gosto da Provincia se conformará com o da Côrte.»
Não se contentaram somente de proporcionar aos pobres selvagens distracções ligeiras, pois procuraram obrigal-os a residir em França.
Diz o poeta pag. 275 «os Capuchinhos, para obsequiarem completamente estes pobres selvagens, resolveram algumas beatas a casarem-se com elles, e ja deram começo a excursão d’este plano.»
Emquanto porem eram bem acolhidos os guerreiros do Maranhão, suas mulheres não gozavam iguaes favores.
Uma certa Princesa cujo nome calla o poeta, manifestando opinião singular, dizia «que para elles tinha muita satisfação de dar-lhes casa e comida, mas que ás senhoras, suas mulheres, não podiam ser senão...» bem me entendeis, e por isso não podia recebel-as em sua casa.
53
É mui curioso o saber-se, que esta expedição exploradora ás margens do Mearim, reconheceo logo serem essas terras essencialmente proprias para a plantação da canna de assucar, a que se empregam todos os braços de 15 annos para cá, sendo esta revolução agricola devida á influencia do Dr. Joaquim Franco de Sá. A charrua despresada por tão longos annos hoje sulca este solo admiravel.
54
Deve lêr-se Mutum sendo a especie mais pequena designada pelo nome de Mutum Pinima. (Vide Diccionario Tupy de Gonçalves Dias.)
Trata-se aqui de Hocco Crax Alector, caça mui procurada.
A imperial sociedade de acclimatação emprega actualmente louvaveis exforços para naturalisar em França este passaro do Brasil e da Goyana.
55
É uma linda especie de periquito, conhecida no Brasil pelo nome de Tui.
Forma ás vezes bandos tão grandes a ponto de ser um dos flagellos da agricultura.
56
É a palmeira chamada — Tucum — pelos brasileiros.
Consulte-se a magnifica Monographia das palmeiras por Martius. O Tucum tem fibras verdes e macias, das quaes se faz excellente fio, proprio para cordas.
57
Ivo d’Evreux não hesita com sua sinceridade habitual a formar um verbo derivado da lingua indigena.
Desde as margens do Orenoco até as do Rio da Prata era o Cauim preparado em grande quantidade.
Tinha o mesmo nome em toda a parte esta especie de cerveja, ou talvez melhor de cidra, quer fosse preparada com milho mastigado pelas mulheres, quer com mandióca cajú ou jabuticaba.
Encontramos este fabrico e nome até entre os Araucans. (Vide a importante obra, do Chili, do Sr. Claudio Gay.)
A palavra cauin atravessou espaços immensos, são os mesmos em toda a parte os processos para o seu fabrico, o que prova estreito parentesco entre os povos mais distantes, uns dos outros.
Hans Staden, Lery, Thevet tem apontado seos abusos, e chamamos a attenção dos nossos leitores para as suas curiosas narrativas.
O que os nossos antigos viajantes chamavam Cauinage era afinal uma solemnidade, cujo sentido religioso não conhecemos.
Precediam ou succediam estas orgias ás grandes expedicções.
O «vinho da Europa» se chama hoje Cauin Pyranga, e a aguardente tão fatal aos indios, Cauin Tata, «bebida de fogo.»
58
Descreve com minuciosa curiosidade João de Lery esta festa solemne, na qual se infiltrava o espirito de coragem, aos guerreiros prestes a partirem para uma expedição.
Uma das estampas do seo livro representa até esta ceremonia.
Entre todas as tribus da raça tupy o tabaco é considerado como planta sagrada.
Reunimos tudo que se sabia ha alguns annos á respeito da origem do Petum na carta, que dirigimos a Mr. Alfredo Demersay, sobre a introducção do tabaco em França, (Vide Etudes economiques sur l’Amerique meridionale. Du Tabac du Paraguay. Pariz. Guillamin. 1851 em 8.º)
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O nome d’esta nação tão pouco conhecida, e que se apresenta á penna do padre Ivo, é uma garantia da exactidão das suas narrações.
Ainda em 1817 existiam alguns Tramembez entre os trabalhadores brancos do Ceará: cultivavam mandióca e residiam na villa de Nossa Senhora da Conceição d’Almofalla, onde haviam muitas salinas. (Vide Ayres Casal, Corographia Brasilica, T. 2º, pag. 235.)
Gaba o padre Ivo o valor e a industria d’estes indios, inimigos encarniçados dos Tupinambás.
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Tratamos d’este famoso indio quando elle se revestio do commando.
É a figura indigena mais predominante nas duas obras do padre Claudio d’Abbeville e padre Ivo.
Na lingua geral a palavra japim é o nome de um lindo passaro, de pennas amarellas e negras, que anda em numerosos bandos e que em toda a parte faz tão lindos ninhos.
Pode tambem dar-se-lhe outra significação. Japy significa na lingua indigena do Maranhão, «o choque, o golpe.» (Vide Gonçalves Dias, Diccionario.) A primeira explicação é a unica adoptada. Japy-uaçú era o que se chamava um Mitagaya, um grande guerreiro.
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Deixa-se o padre Ivo levar muito pelas recordações da Europa.
Jeropary-açú, de que tratam escriptores portuguezes, nada tem de commum com um principe ou um rei, taes como eram representados no novo-mundo por convenção hierarchica.
Este erro ja havia sido anteriormente commettido por André Thevèt na sua França antartica e na sua Cosmographia. O historiador de Portugal, La Clede, que vivia no seculo XVIII foi mais longe ainda na enumeração dos pomposos titulos, que dá a alguns pobres chefes de tribus.
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Com o nome de cabaças conhece-se geralmente no Brasil vasilhas ordinarias, feitas com o fructo da cabeceira.
Em Venezuella chama-se Tutumas.
Algumas destas vasilhas naturaes mostram delicados ornatos, cores inalteraveis pela agua e grande brilho. (Vide a este respeito Claudio d’Abbeville, Histoire de la mission des péres Capucins.)
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É isto confirmado por Magalhães de Gandavo, o primeiro escriptor portuguez, que escreveo uma historia regular do Brasil em 1576.
Este amigo de Camões recorda a expressão indigena de que se serve o padre Ivo, porem não partilha sua opinião, antes crê ser o ambar um producto vegetal formado no fundo do mar. O que é certo é, que nos seculos XVI e XVII o encontro, quasi sempre casual, de enormes pedaços de ambar, arremeçados pelas ondas em praias não exploradas, enriqueceo muita gente.
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Debalde procuramos este nome no livro de Ayres do Casal, e no Diccionario de Milliet de Saint Adolphe.
A região habitada pelos Cahetés de que trata, sabemos com certesa ser na provincia de Pernambuco.
A palavra Cahetés significa floresta grande, e se applica a diversas localidades.
Foram os Cahetés, que em 1556 mataram e devoraram o primeiro Bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha.
Este sabio prelado, natural de Setubal, e educado na universidade de Pariz, regressava á Lisboa, onde ia queixar-se do governador da Bahia.
Mostra-se ainda hoje a colina, onde elle morreu, e não cresce ahi planta alguma, segundo a crença do povo. (Vide Adolpho de Varnhagem — Historia Geral do Brazil.)
O livro de Gabriel Soares contem tudo quanto se deseja á respeito dos Cahetés, indios considerados geralmente como invensiveis guerreiros, e que se gabavam de habeis musicos.
A exploração do Uarpy, de que aqui se trata, e emprehendida pelo Sr. de Pezieux é uma prova evidente do cuidado, que havia de explorar-se esta região, percorrendo-se de N. a S.
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Estas minas de oiro, que se esperava encontrar no Maranhão em 1613, existem hoje na serra de Maracassumé.
Encontra-se o metal precioso sobre tudo em Piranhas, (districto de Santa Helena) nas cabeceiras dos rios Pindaré, Gurupy, Cabello de Velha (Cururupu) Prata (Santa Helena) na Revirada, nas margens do Tomatahy, etc., etc., porem em pequena porção.
Existe cobre na Chapada no lugar Fazendinha e no Alto Pindaré.
Ferro existe em mais lugares, nos montes de Tirocambo e em Pastos-Bons.
Suppõe-se haverem minas de estanho, porem ainda não se sabe com certesa.
Encontra-se tambem o carvão de pedra, precioso mineral no estado actual da industria: depararam-se ja com alguns indicios no canal do Arapapahy, e affirma-se haver uma mina na distancia de meia legoa do Codó, na fazenda de Santo Antonio, cujas amostras provam ser de superior qualidade. Dizem haver tambem em Vinhaes.
Em Sam José dos Mattões encontram-se cristaes de rocha e pedras semi-preciosas, e saphiras em Sam Bernardo da Parnahyba.
De passagem lembramos que as primeiras minas de ouro, ou para melhor dizer, os primeiros veios de ouro, destinados a enriquecerem o Brasil, somente foram descobertos em Minas-Geraes, no anno de 1595.
Pelas Provincias do norte não conheceo a Metropole as riquezas metalicas d’este vasto territorio, onde desemboccam o Rio doce, e o Jequitinhonha.
Sabe-se que este ultimo rio que toma o nome de Belmonte na occasião em que se lança no mar, pouco distante do primeiro, com o andar dos tempos deo á corôa enorme quantidade de diamantes.
Estas pedras, encontradas em 1729, principalmente no valle cercado de alcantiladas rochas, chamado pelos indios — Ivitur, e pelos portuguezes — Serro do Frio, não eram completamente despresadas pelos indios, pois seos filhos as ajuntavam, e com ellas brincavam.
No Maranhão não ha diamantes.
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Mostra-se o padre Ivo aqui mui parco em suas descripções, porem deve-se desculpal-o por não ser naturalista como um theologo do seo tempo. Foi ainda mais parco o seo predecessor.
O que disse de algumas plantas do genero mimosa indica a sua preoccupação á respeito de certos phenomenos naturaes.
As qualidades maleficas, que reconhece no succo do Cajú, de que se fabrica uma especie de cidra, são mui exageradas.
Diremos de passagem, que a palavra Cauin deriva-se do nome indigena d’esta arvore. Caju-y, licor de Caju.
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Á flor da paixão (Grenadilla cœrulea) na qual a imaginação prevenida encontra santos attributos, gozava então de prodigioso favor. Foi descripta em varias obras, e gravada exagerando-se os pontos de similhança, que podia ter com os instrumentos do supplicio de Jesus Christo.
Ivo d’Evreux encontrou nos campos do Brasil magnificas flores d’estas, e mostrou-as aos amadores. Alguns annos depois elle se teria aproveitado da descripção poetica, que d’ella fez o poeta popular Santa Rita Durão no poema intitulado Caramuru.
Lembramos aos amadores de flores phantasticas uma gravura do seculo XVII, mui curiosa, mostrando a planta com o seo tamanho natural na obra Antonii Possevini Mantuani Societatis, Jesu cultura ingeniorum, examen ingeniorum Joannis Huartis. Expenditur Coloniæ Agrippinæ. 1610 em 12.
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O guará (Ibis rubra, ou Tantalus ruber) desappareceo em parte de varias localidades do littoral, onde costumava expandir sua brilhante plumagem, sujeita, conforme a idade, a diversas modificações.
Na obra curiosa de Hans Staden, publicada na Allemanha em 1557, vê-se qual é o papel, que representa esta ave na industria indigena.
Formavam os Tupinambás em tempo certo verdadeiras expedições para procurar as pennas d’ellas, sempre raras, afim de servirem nas festas com que as tribus se obsequiavam reciprocamente.
Em caso de necessidade eram substituidas por pennas de gallinhas, tinctas com uma preparação vermelha de Ibirapitanga, ou pau-brasil.
Actualmente refugiou-se o guará nas margens, pouco frequentadas, do rio de Sam Francisco, e principalmente nas desertas regiões do Rio Negro. Ainda tambem encontram-se algumas na lagoa dos patos, e em Guaratuba. (Vide le second voyage d’Aug. St. Hilaire. T. 2º, pag. 222.)
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É impossivel aos que não leram as obras da idade media interpretar bem o sentido d’esta frase.
O livro conhecido sob o nome de Phisiologus gozava ainda de certo credito no tempo do padre Ivo de Evreux. Quem quizer informar-se d’isto minuciosamente leia o precioso resumo d’esta curiosa obra, publicada pelos Rvds. padres Cahier e Martin, sob o titulo Melanges d’Archéologie, d’histoire et de litterature. 4 vol. in-fol.
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As mulheres Tupinambás, que assim cantavam para attrahir as formigas, e activar a caça d’estes insectos, não o faziam somente para destruil-as, ou para resguardar suas plantações de milho de uma invasão invencivel.
As formigas grandes torradas eram consideradas como uma das golodices mais preciosas, cuja receita foi por ellas ensinada a alguns colonos do Sul, e sem duvida não será desputada pelos nossos modernos Brillat Savarin.
Assim como os Arabes comem ainda hoje gafanhotos, conservados em sal ou pela dissecação, e os Guaraons das margens do Orénoco apreciam muito as larvas da palmeira Muriti (não fallando de outra comida da terra do mesmo genero), assim tambem os nossos selvagens guardam grandes provisões d’estes insectos para sua nutrição.
Augusto de Saint-Hilaire, o mais verdadeiro viajante, que percorreo o Brasil, achou ainda em vigor o costume de se comer formigas assadas.
Depois de ter affirmado ser muito apreciado esse manjar no Espirito Santo, pelo que os habitantes de Campos, sempre rivaes dos da Cidade da Victoria, os chamavam Tata Tanajuras, «comedores de formigas», accrescentou «eu mesmo comi um prato d’estes animaes, preparados por uma mulher Paulista, e não lhes achei mau gosto.» (Vide Le second voyage au Brésil. T. 2.º pag. 181).
Martim Soares de Souza, com rasão chamado o Gregorio de Tours dos Brasileiros, é mais claro a respeito do proveito que os indios tiravam das formigas como alimento.
Copiamos aqui o que elle tão curiosamente disse. Depois de haver fallado da especie grande, a que chamam Içans, escreveo — «E estas formigas comem os indios, torradas sobre o fogo, e fazem-lhe muita festa; e alguns homens brancos andam entre elles, e os mistiços as tem por bom jantar, e o gabam de saboroso, dizendo que sabem a passas de Alicante: e torradas são brancas dentro.»
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O pretendido cão, de que aqui falla o nosso Missionario, está muito longe da raça canina: é apenas o papa-formigas, chamado pelos indigenas tamanduá, e pela sciencia Myrmecophaga jubata.
O naturalista Waterton, que com tanta curiosidade estudou os quadrupedes do novo mundo nos proprios lugares, onde com plena liberdade se entregam aos seos instinctos, fez excellente descripção d’este animal.
Ha no Brasil muitas especies de papa-formigas, sendo rarissima a chamada pelos portuguezes Tamanduà-cavallo: parece ter sido este sobrenome o causador de haver o padre Claudio d’Abbeville errado, quando disse ser o papa-formigas do tamanho de um cavallo.
A palavra india, que designa este curioso animal, é composta de duas Tupis — taixi, «formiga,» e mondê ou mondâ, «tomar.»
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Deve escrever-se Taranyra, cujo nome pertence a um pequeno lagarto. Falla-se aqui do Tiú (Tupinambis monitor).
É excellente a carne d’este reptil, e muito havia de concorrer para tornal-a saborosa a preparação culinaria tão gabada pelo Padre Ivo d’Evreux.
A repugnancia d’esse bom Padre para taes comidas, não é de fórma alguma partilhada pelos descendentes dos Europeos, acostumados ás melhores mezas.
A carne de Tui pela sua côr e maciesa muito assimilha-se á da gallinha mais preciosa, e por isso apparece nas melhores mezas do Brasil.
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O nosso autor quer fallar da Aranha caranguejeira, (Aranea avicularia) porem aqui enganou-se. Exagera muito as dimensões d’este insecto, na verdade nojento, como se pode vêr em todas as collecções de entomologia. Não é verdade dizer-se que não fabricam fios para suas teias: a sua picada não mata, porem envenena. Na lingua Tupy chama-se Nhandu-Guaçu ou de Jandu.
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O que nos diz o bom Religioso do barulho da cigarra denota gosto de observação na historia natural, muito raro n’aquella epoca, mas convem não confundir a cigarra brasileira com o insecto assim chamado na Europa.
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Na lingua Tupi escreve-se Okiju. (Vide Martius, Glossaria ling. bras. pag. 465).
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Ivo d’Evreux confesse-se, está aqui muito inferior á seo contemporaneo o Padre du Tertre.
É verdade porem tudo quanto elle diz da luz dos pyrilampos.
A entomologia estava então muito pouco adiantada para que houvesse uma classificação entre os insectos, e não temos habilitações para preencher esta falta. Actualmente conhece-se no Brazil oito especies de pyrilampos a saber:
- Lampyris crassicornis,
- « signaticollis,
- « concoloripennis,
- « fulvipes,
- « diaphana,
- « hespera,
- « nigra,
- « maculata.
Pode tambem juntar-se a estes lindos insectos a lucidota thoraxica.
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É muito exacto, e as abelhas do Brazil não tem aguilhão: eis o que diz um observador sabio e veridico.
Depois de haver affirmado, como o Padre Ivo, que as abelhas não picavam, disse Augusto de Saint Hilaire «uma especie chamada tataira deixa, segundo dizem, escapar pelo anus um liquido ardente; e por isso é só á noite que se colhe o seo mel.»
As especies chamadas uruçú-boi, sanharó, burá, bravo, chupé, arapua e tupi se defendem, quando são atacadas, mas parece não terem aguilhão, limitando-se a morderem como fazem as outras.
É muito liquido o mel das diversas especies, e a cera tem a côr parda muito carregada, não se podendo até hoje conseguir tornal-a branca, como a da Europa.
Spix e Martius dão curiosas informações a respeito d’estes uteis insectos, que completam as do nosso grande botanico. (Vide Voyage dans les provinces do Rio de Janeiro e de Minas Geraes. T. 2.º, pag. 371 e seguintes.)
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Não ha talvez no mundo região alguma, que tenha maior variedade de macacos do que o Brazil.
Creio que aqui se trata primeiro da guariba, ou mycetes ursinus, e depois do macaquinho stentor, que intentou descrevêr o nosso bom Missionario.
É provavelmente d’esta especie a descripção tão agradavel e tão animada, feita pelo nosso velho escriptor.
Convem observar porem que o Padre Ivo fez-se echo de uma crença popular muito vulgar no seculo XVI.
Esta especie de legenda das florestas, muito mais applicavel aos macacos da Africa e da Asia do que aos do novo-mundo, não se extinguio ainda de todo nos campos da America Meridional, e mostraram a M. Castelnau uma india, que julgava ter escolhido seo marido entre os macacos das florestas (Vide Expedition dans les parties centrales de l’Amérique du sud, de Rio de Janeiro á Lima et de Lima au Pará, exécutée par ordre du governement français. Paris 1851, partie historique. 5 vol. in 8.º)
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Basta ter-se vivido nas florestas habitadas por macacos para conhecer-se a exactidão do que escreveo o Padre Ivo.
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Ha aqui com certesa erro, ou então exageração.
O Padre Claudio d’Abbeville, que descreve a mesma ave de rapina (pag. 232) julga ser elle «duas vezes mais corpolento do que a aguia, ter a perna da grossura de um braço, e a pata em fórma de unhada.»
Poderia ser esta descripção do Condor, porem não existe esta ave na America do Sul.
Diz o Coronel Ignacio Accioli ter o gavião real tanta força a ponto de fazer parar em sua carreira um viado por mais forte que seja.
É tão phantastica a descripção do Padre Ivo, que á primeira vista se pode applical-a ao abestruz americano de Nandú, que se encontra somente no Ceará e Piauhy.
Um escriptor contemporaneo, Gabriel Soares, tantas vezes citado, restabelece a verdade fallando do Ura-açu disse «são passaros, como os milhafres de Portugal, sem differença alguma, negros e de azas grandes, de cujas pennas utilisam-se os indios para emplumarem suas flexas, e vivem de rapina.» (Vide Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro. — 1851 1.º vol. in 8.º pag. 232.)
Lembramos de passagem, que debaixo do ponto de vista scientifico a parte ornithologica é muito imperfeita, embora a bellesa do estylo do nosso velho viajante.
O que diz, por exemplo, o Padre Ivo do passaro mosca, ou do colibri, é inteiramente inexacto, pois elle não tem o tal canto agudo, que faz lembrar o grito da cotovia.
Confundiram-se as recordações com a distancia.
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Ivo de Evreux quer dizer, que os Indios se fazem galans, preparando-se com pennas de papagaios.
Faziam os Tupinambás com estas pennas não só mantos, diademas e perneiras, mas tambem cortavam bem miudinhas as pennas pequenas e coloridas d’estes passaros, e cobriam com esta pennugem o corpo, e n’elle grudavam-na com certa gomma.
Este enfeite selvagem e singularmente original ainda é muito usado e apreciado em certas tribus.
Segundo conta João de Lery durou mais de tres seculos.
A viagem pittoresca de Debret apresenta uma amostra.
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Basta, é bastante. Os hespanhóes e os portuguezes conservaram a palavra bastar.
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Já pagamos justo tributo de saudade a este Religioso, tão cheio de bondade como de zelo, cuja sepultura no antigo cemiterio do pequeno Convento não é sabida em Maranhão.
Como indica o seo sobrenome de Religião, nasceo o Padre Ambrosio na Capital da Picardia, «de parentes abastados, diz o manuscripto dos elogios, e que lhe deram educação conforme permittiam seos negocios.»
Depois de haver estudado na Sorbona, quando estava prestes a receber a sua carta de licenciado, foi abalado pelas prédicas do Padre Pacifico de São Gervasio, e entrou no Convento em 1575, quasi no tempo da fundação do Mosteiro de Santo Honorato.
Em 1599 acabou seo noviciado, e com satisfação começou a preencher as obrigações de irmão leigo.
Cedo passou a prégador, e então adquirio essa fama de caridoso, que o fez tão popular.
Aspirava a mais do que isto, «porque queria converter todas as Indias», diz a noticia a elle dedicada.
O Padre Ivo cercava de todos os cuidados os seos confrades quando emprehendiam viagens tão incommodas principalmente n’aquelle tempo.
Estava já muito enfraquecido, e sem forças, quando em 26 de setembro de 1612 cahio doente, em sua pobre cabana de pindoba.
Ardente febre o devorava, e comtudo, ainda depois de receber a extrema uncção, conservou em bom estado e sempre firme o uso de suas faculdades intellectuaes.
Transcrevamos aqui algumas palavras, que mostram qual foi o fim de tão bom velho.
Claudio d’Abbeville assim o conta:
«Cahindo sobre elle um pequeno painel da Imagem de S. Pedro, pendurado por cima de sua cama, e a que dedicava profunda devoção, elle disse — vamos, grande Santo, partamos, ja que vieste buscar-me. —
«Dizendo isto olhou para o Crucifixo e após curta agonia restituio ao Creador sua alma tão bôa em 9 de Outubro de 1612, dia da festividade do Glorioso Apostolo de França, S. Diniz, Bispo de Pariz:
«Foi sepultado no lugar chamado S. Francisco, consagrado ao nosso Patriarcha, como premicias dos Capuchinhos Francezes.» (Vide tambem «Éloges historiques de tous les illustres religieux capucins de la ville de Paris, les uns par la prédication, les autres par les vertus et sainteté de leurs œuvres, les autres par les missions parmy les infidelles etc. etc. sob numero Capucin Saint Honoré 4 (ter).)»
É para sentir-se e muito que se tenha perdido ha alguns annos o 1.º vol. d’esta importante collecção, contendo os Annaes da Provincia.
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Prova esta phrase tão rigorosa do velho missionario a rapidez, com que se espalhou na Europa o avati, dos brasileiros, o milho dos ilheos visto, bem como o tabaco, por Christovão Colombo na primeira viagem em 1493.
Levantaram os botanicos grande questão, ainda não resolvida, sobre a origem primitiva do milho.
Pelo que diz respeito ao Brasil citamos a opinião d’um viajante, que por seu saber pode passar por authoridade.
Augusto de St. Hilaire pensa ter nascido no Paraguay, onde o vio em estado inculto.
A cultura do milho é ao Sul d’America a planta nutritiva por excellencia, e prepara-se sua farinha por processos simples, e que dão optimo gosto.
Enviamos nossos leitores, que desejam instruir-se de tudo quanto se refere á esta graminea para o precioso livro do Dr. Duchesne — Traité complet du maüs ou blé de Turquie. Paris. Renouard, 1833 em 8º, e para a grande obra de M. Bonafous.
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Falla aqui verdade o padre Ivo, porem não se segue que ao norte do Brasil se possa fazer vinho.
O maior obstaculo, que encontra este fabrico, está no amadurecimento do fructo sob os tropicos.
No mesmo cacho ao lado de muitas uvas maduras encontra-se grande numero de verdes.
È voz corrente ter-se feito algum vinho na visinhança da Bahia.
Caminhando-se para o sul, na região temperada de Mendoza, a uva amadurece perfeitamente, e dá vinho precioso. (Vide, entre outras viagens a respeito d’este ponto curioso de agricultura americana — Sallusti, Storia delle missione del Chile. 4. vol. em 8.º Padre Barrére. Nouvelle Relation de la France equinoxiale. Paris, 1743. 1º vol. em 12, pags. 53 e 54.)
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Trata-se aqui do fio que se extrahe com abundancia de uma especie de Ananaz. (Ananas non aculeatus, Pitta dictus Plum.)
Com elle os portuguezes faziam meias, quasi tão procuradas como as de seda.
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Não se encontra esta palavra no Diccionario de Nicot, irmão de Villemain.
Podemos affirmar, que se deve escrever hansares — que significa — uma foice de grande tamanho.
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Fazer certo sussurro expellindo com força o ar pelo nariz. É expressão do povo, confundida no Diccionario da Academia com a palavra — renâcler «roncar» usada trivialmente no stylo familiar.
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São por Cardim muito bem pintadas essas recepções de indios.
Os brasileiros não podem preferir, na bellesa da narração e no encanto das particularidades, senão um só viajante portuguez á Ivo d’Evreux e á Claudio d’Abbeville, e é aquelle cujo nome acabamos de proferir.
Este escriptor agradavel porem muito conciso, pertence á ordem dos jesuitas.
Foi para o Brasil em 1583, e ahi ficou revestido de todas as dignidades até o fim de 1618: soube portanto do estabelecimento dos francezes ao Norte do Brasil, e certamente na Bahia soube de sua expulsão, e sobre isto infelizmente nada disse.
Fernão Cardim estava em posição bem diversa da do padre Ivo d’Evreux.
Pelas costas do Brasil, onde elle se apresentava, submettiam-se os indios ao christianismo, perdendo sua grandeza primitiva e conservando a maior parte dos seos usos.
O Missionario francez ao contrario cathequisa os indigenas, que combatem pela sua independencia contra seos conquistadores.
Os dois bons missionarios tiveram ambos a mesma sincera indulgencia e admiração para com os povos ainda na infancia, aos quaes pregaram, e cuja prévidencia é o seo maior e mais terrivel defeito.
As cartas de Fernão Cardim foram felizmente descobertas pelo incansavel autor da Historia geral do Brasil.
O Sr. Francisco Adolpho de Varnhagem não pôz seo nome n’esta preciosa publicação, honra que aqui lhe restituimos, e a que tem direito como homem de saber e gosto.
O opusculo de Fernão Cardim tem o titulo de Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia, Ilheos etc etc. — Lisboa, 1847, em 8.º de 123 paginas.
Parece-me que o sabio edictor não se lembrou de haverem preciosas informações á respeito de Cardim e dos missionarios contemporaneos do Brasil n’um escriptor de Toulon por nome Jarric. (Vide La 2me partie des choses plus memorables advenues tant aux Indes orientales que autres pays de la découverte des Portugais en l’establissement de la foi chrestienne et catholique etc. Bordeaux 1610 em 4.º É dedicado a Luiz XIII. O que n’este livro se refere ao Brasil, e particularmente ás regiões visinhas do Maranhão, acha-se na pag. 248 até 359.)
Morreo o padre du Jarric em 1609.
Foi sua obra traduzida em latim, e impressa na Colonia em 1615.
Esta traducção, augmentada em alguns lugares, foi publicada em 4 vol. em 8.º
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Ha quasi certesa de não ter o nosso bom missionario lido a narração de André Thevet, publicada em 1558, e nem a viagem mais recente de João de Lery, cujas opiniões religiosas deviam afastal-o d’essas obras.
Comparando-se estes velhos viajantes entre si, facilmente nota-se a similhança das narrativas.
Eis o que disse João de Lery á respeito da recepção, que lhe fizeram os Tupinambás.
Descrevendo as ceremonias, que fazem os Tuupinambaults para receberem seos amigos, que os vem visitar, merece dizer-se em primeiro lugar, que apenas chega o viajante a casa do Mussacat, isto é, do bom pae de familia, dá de comer aos que por ahi passam, e que elle escolher para seo hospede, facto que se hade praticar em toda e qualquer aldeia, por onde se transitar, sob pena de cauzar enfado se não é procurado immediatamente. Assenta-se depois n’uma rede onde fica por algum tempo em silencio. Vêm depois as mulheres, sentam-se no chão, tapam os olhos com as mãos deplorando a bôa vinda d’aquelle, cujos louvores farão em occasião apropriada.
Por exemplo: — tiveste tanto trabalho para nos vêr; tu és bom, e valente: si é um francez, ou outro qualquer estrangeiro, accrescentam — trouxestes para nós tão bellas obras, como aqui não temos, e immediatamente derramam muitas lagrymas, e assim aplaudem e lisongeam.
Si o recem-chegado assentado em seo leito quer pagar-lhes as finezas, dizendo de sua parte coisas agradaveis, não querendo porem chorar, (como eu sei alguns dos nossos, que vendo as maneiras d’essas mulheres perante elles, foram tão nescios, que as imitaram) devem ao menos por fingimento exhalar alguns suspiros.
Feitos assim estes primeiros cumprimentos pelas mulheres, entra depois o mussacat, isto é, o velho dono da casa, que fingirá durante um quarto d’hora não vos vêr (caricia mui opposta ás nossas embaixadas, cumprimentos e apertos de mão á chegada dos nossos amigos). Chega-se depois onde estaes, e diz ereiubé, isto é, chegaste? etc. etc. (vide Jean de Lery, istoire d’un voyage en la terre du Brésil. Rouen, 1578, em 8º, 1ª edicção.)
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Ha no Brasil um sapo de grande tamanho, a que se deo o nome de «sapo boi.»
Claudio d’Abbeville diz — «n’aquelle paiz encontram-se uns sapos muito grandes a que chamam cururu. Alguns ha que tem mais de um pé ou pé e meio de diametro: quando são esfolados, é impossivel dizer-se quam branca é a sua carne, e como são bons para comer-se. Vi alguns fidalgos francezes comel-a com apetite.
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Mui visivelmente falla-se aqui da lenda brasileira relativa a Sumé, o legislador dos Tupys.
No curioso opusculo, que a respeito d’este personagem publicou o Sr. Adolpho de Varnhagem, conta a sua chegada á Ilha do Maranhão, e como desappareceo na occasião, em que se preparavam todos para sacrifical-o.
A palavra — Maratá — nos põe em embaraços, pois debalde a procuramos em Ruiz de Montoya: é alteração da palavra Mair ou Maïr, tantas vezes empregada por Lery e Thevèt, para mostrar ou indicar um estrangeiro, ou uma pessoa extraordinaria. Não podemos dar uma resposta satisfatoria. O Sumé, que propaga a cultura da mandióca, é barbado.
Diz-se com razão ser personagem analoga a Manco Capac dos peruanos, e ao Quetzalcoalt dos Azetecas, e ao Zamma da America Central. (Vide Adolpho de Varnhagem, Historia geral do Brasil. T. 1º pag. 136, e Sumé. Lenda mytho-religiosa americana etc. agora traduzida por um Paulista de Sorocaba. Madrid, 1855, broch. in 8 de 39 pag.)
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O verbo cantar na linguagem tupy é Nheengar. Um Nheengaçara é um cantor propriamente dito.
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Parecerá estranho ao leitor serem os francezes comparados n’este lugar aos Caraibas.
Os que lerem com attenção as obras de Humboldt acharão a chave d’este enigma. Os Caraibas do continente americano, nação immensa, eram notaveis em toda a America pelo seo valor e penetração. Seos piayas, ou antes seos feiticeiros os elevavam acima de todas as outras nações: eram no Novo Mundo o mesmo que os Chaldeos no velho. Simão de Vasconcellos nos dá a prova d’esta supremacia intellectual: no sul do Brasil os Caraibe-bébé, eram feiticeiros ou advinhadores notaveis: assim se chamavam os homens intelligentes, os espiritos, e os anjos, e depois tambem os estrangeiros. O Sr. Adolpho de Varnhagem fez notar, que o nome de Carayba foi em seo principio dado aos Europeos, sendo todos os Christãos assim chamados. (Historia geral, pag. 312.)
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Um Caramémo é que se chama em Guyana um Pagará, isto é, um paneiro leve, feito com folhas de certa palmeira e ás vezes com bonita forma.
Claudio d’Abbeville assim tambem o chama, quando descreveo os utensilios de uma casa indigena. Barrère fez desenhar este lindo Specimen.
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Ivo d’Evreux, familiarisado com todos os symbolos em voga no seo tempo, não se esqueceo de uma graciosa alegoria na qual figura o Unicornio. Vide Le Monde enchantée, e especialmente a dissertação intitulada Revue de l’histoire de la Licorne par un naturaliste de Montpellier. (P. J. Amoreu.) Montpellier Durville, 1818, em 8.º 47 pags.
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É sabido ser esse o nome, que aos portuguezes davam os Tupinambás.
Pero quer dizer cão na lingua de Camões, mas suppõe-se que o nome — Pedro — muito usado no Brazil, provinha de tão estranha designação.
Ayres Casal conta até á este respeito uma historiasinha, recorrendo á tradicção, de como um serralheiro, chamado Pedro, fôra arremeçado pelas ondas, após um naufragio, ás praias do Maranhão. Graças a sua habilidade no trabalho do ferro fez-se este homem agradavel aos indios, e seo nome com pequena modificação servio d’ahi em diante para fazer conhecidos os individuos, que se julgavam ser da sua raça.
Em sua Corographia o Dr. Mello Moraes escreveo esta legenda muito mais completa.
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Não se tem procurado esclarecer por meio de uma discussão grammatical — esta parte do livro.
Differenças mui sensiveis, produzidas pelo tempo e sobre tudo pela pronuncia, fizeram este lugar para assim dizer indicifravel. Nada é mais dificil do que traduzir pelos caracteres da nossa escripta os sons das linguas indigenas. Essas inflexões tão delicadas, e as vezes tão fugitivas, em sua apparente rudeza são dificultosamente ffixadas no papel. Notou Humboldt pertencerem ellas algumas vezes á certos caracteres physicos das raças.
As nações européas, as mais habituadas á estes estudos, não percebiam da mesma fórma os sons, e nem os escreviam da mesma maneira: quando os portuguezes ouvem Oca, por exemplo, ou então Toba, o francez percebe Oc e Tob, e quando aquelle ouve Murubixaba este percebe Muruvichave. Deixa a differença de ser grande quando são as palavras pronunciadas conforme o genio de cada lingua.
A palavra Tupinambás, como se acha escripta no principio d’esta nota, (Tobinambos) equivale absolutamente pelo som na lingua portuguesa á palavra Tupinambus, como a pronunciavam os contemporaneos de Malherbe.
Para a historia da linguistica não é sem interesse esta curta doutrina christã, podendo ser comparada com certas obras do mesmo genero, escriptas por penna portuguesa, estando n’este caso, entre outras, os canticos religiosos em lingua tupy por Christovão Valente, os quaes incluí no opusculo — Une fête brésilienne. Pariz. Techener, 1850.
Não se póde achar o livro que os contem, e talvez só exista na Bibliotheca Imperial.
Reproduzimos aqui seo nome — Cathecismo brasilico da doutrina christã, com o ceremonial dos sacramentos e mais actos parochiaes. Composto por padres doutos da Companhia de Jesus, aperfeiçoado e dado á luz pelo padre Antonio de Araujo da mesma Companhia, emendado nesta segunda impressão pelo padre Bertholomeu de Lean da mesma Companhia, Lisboa, na officina de Miguel Deslandes 1861, em 8.º pequeno. A primeira edicção foi em 1618.
Si se quizesse, poder-se-ía completar este estudo comparativo procurando os seguintes manuscriptos, citados por Barbosa Machado, e que seria coisa curiosa si fossem publicados.
Ludewig os ommittio em seo importante trabalho, completado por Mr. Trubener. O Padre João de Jesus explicação dos mysterios da fé. O Padre Manoel da Veiga Cathecismo. F. Pedro de Santa Rosa Confessionario. André Thevèt nos seos manuscriptos conservados na Bibliotheca Imperial de Pariz, dá o Pater e o Credo em lingua tupy, depois reproduzidos em sua grande Cosmographia. São preciosos estes dois documentos especialmente por sua antiguidade, pois datam de 1556.
Entre os livros d’este genero um dos mais modernos e dos mais curiosos é o do Padre Marcos Antonio, intitulado: Doutrina e perguntas dos mysterios principaes de nossa santa fé na lingua Brasila. Foi composto em 1750 e Ludewig menciona-o como fazendo parte das collecções do British Museum.
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Lery ja tinha asseverado o effeito, que faz nos indios o canto melancolico do Macauhan. A crença nos mensageiros das almas, nos passaros propheticos ainda não se extinguio de todo, pois ainda existe na poderosa nação dos Guayacurus, depois de haver exercido antigamente sua poderosa influencia em todas as tribus dos Tupys, porem o padre Ivo deo-lhe extensão que nunca teve, visivel alteração nas antigas ideias mythologicas.
O nome d’este passaro respeitado é escripto em portuguez Acaúan, e tambem Macauan: nutre-se de reptis, e não tem esse aspecto sinistro, que lhe dá o nosso bom Missionario.
Tem a cabeça muito grossa em relação ao corpo, é côr de cinza, o peito e o ventre vermelhos, azas e cauda negras com pintas brancas. Pensa hoje em dia a maior parte dos indios, que a missão deste passaro é annunciar-lhe a chegada de algum hospede. Consulte-se sobre o Acaúan, Accioli, Corographia Paraense, e Gonçalves Dias, Diccionario da lingua Tupy. Martius na palavra Oacaoam diz ser o Macagua de Felix de Azara. Falco (herpethocheres).
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No tempo de Ivo d’Evreux, eram chamados Barbeiros, os cirurgiões mais habeis, e alguns annos antes até o illustre Ambrosio Paré era assim conhecido.
Como os Piayes, Pagé, Pagy, Boyés ou Piaches (por todos estes nomes são conhecidos) cuidam de curar feridas e molestias.
O padre Ivo, como se verá adiante, os compára por despreso aos barbeiros, mas entenda-se, aos barbeiros das aldeias.
Este capitulo é por certo um dos mais curiosos do livro, e deve ser com todo o cuidado comparado com o que escreveo Simão de Vasconcellos, (Chronica da Companhia de Jesus, in fol.) e com todas as Memorias publicadas pelo Instituto Historico do Rio de Janeiro sobre a religião primitiva dos indigenas, achando-se ahi bem claramente definidos os attributos de Jeropary.
É na verdade para sentir-se a falta de uma folha, porque nos trouxe a perda de preciosos documentos de homens praticos e habeis, que entre si conservavam as tradicções.
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No tempo d’esta narração eram ainda os morcegos classificados como passaros.
O que aqui diz o nosso viajante sobre os vampyros não é exageração.
Consulte-se a este respeito Ch. Watterten (Excursions dans l’Amerique meridionale, p. 15 e 389.)
Este sabio naturalista descreveo com minucioso cuidado o genero da ferida, que produz o morcego americano nas pessoas, que dormem. Matou um vampyro, que tinha 32 pollegadas de extensão de azas abertas. Em geral são muito menores.
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Entre os antigos viajantes do seculo XVII é Ivo d’Evreux o unico, como notamos, que menciona entre os Tupinambás os rudimentos de estatuaria (imperfeita sem duvida) com applicação á mythologia d’estes povos.
D’estas coisas nada escreveram Thevèt, Hans Stadens, e Lery, Vasconcellos, Cardin e Jaboatão.
Eram os Tupys unicamente caçadores, e só per accidens se entregavam á vida agricola. Os unicos vestigios de cultura, que d’elles conhecemos, se referem aos seos Macanas, ou a sua Lyvera-péme, especie de armas pesadas, que elles enfeitavam á capricho.
Tinham por costume pôr um Maracá, enfeitado de bonitas pennas na prôa de suas canôas de guerra, tão esguias como elegantes, e será bem possivel, que a base d’esse instrumento seja ornado de sculpturas similhantes ás que se observam entre os insulares da Polynesia. É provavel que multiplicando-se suas relações com os Europeos, tenham os Tupinambás bebido entre elles ideias de sculptura rudimentar que applicam á suas divindades grosseiras.
O veridico Barrére, que escreveo mais de um seculo depois de Ivo d’Evreux, falla de um piaya fazendo uma estatueta de Anaanh, genio do mal, que não é senão o Anhanga do padre Nobrega e de Anchieta, cuja terrivel missão sobre a terra foi tão bem descripta por João de Lery, que sempre o chamou Aignan.
Dêem-lhe nas ilhas ou nos continentes os nomes de Uracan, de Hyorocan, de Jeropary, de Maboya, de Amignao, reconheçam-se os genios secundarios, como seos mensageiros (apenas citarei um, o malicioso Chinay, que faz emmagrecer os pobres indios sugando-lhes seo sangue.) Anhanga teve sempre fama terrivel nos seculos XVII e XVIII.
Este typo primitivo da sculptura religiosa dos Tupys foi infelizmente aberto em madeira muito molle, e por isso não poude resistir á acção do tempo, ou á invasão das formigas: duvidamos que se encontre um só specimen de dois seculos atraz.
Eis finalmente a passagem tão curiosa de Barrére que confirma as palavras do padre Ivo. «Tem os indios outra sorte de feitiçaria, que os singularisa. Fazem uma figura do diabo n’um pedaço de madeira molle e sonora: esta estatua do tamanho de tres a quatro pés é muito feia pela sua immensa cauda, e grandes lanhos.
«Chamam-na Anaantanha que parece dizer — imagem do diabo, porque Tanha significa figura, e Anaan-diabo. Depois de haverem soprado sobre os enfermos, trazem os Piayas esta figura para fóra da casa-grande:
«Ahi elles o interrogam, esbordoam-na á cacete, como para obrigar o diabo, bem a seu pesar, a deixar o enfermo.» (Vide Nouvelle Relation de la France équinoxiale, contenant la description des côtes de la Guiane, de l’isle de Cayenne, le commerce de cette colonie, les divers changements arrivés dans ce pays etc. etc. Paris. 1743, em 12 gr.)
N’um capitulo precedente Ivo d’Evreux ja fallou de uma boneca que tinha uma especie de mecanismo, que servia para as nigromancias do Piaya.
É para sentir-se, que não se encontrasse um só d’estes idolos nas collecções etnographicas, que então começou-se a fazer.
Poucos annos antes de haver la Ravardiere explorado o rio do Amasonas, João Mocquet, o guarda das curiosidades do Rei, percorreo essas praias, e seria de rara felicidade para a archeologia americana si elle encontrasse alguns dos idolos de que falla o padre Ivo.
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É mui provavel, que estas lustrações sejam feitas á imitação das ceremonias, que entre os christãos viram os Tupinambás.
Pode bem ser, que o mesmo aconteça á respeito da pretendida confissão auricular de que falla o autor um pouco mais adiante.
Os antigos viajantes, Hans Staden, Lery e Thevèt nada dizem, que tenha relação com tal costume.
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Parece á primeira vista ter recebido este piaga, tão influente, um nome francez: assim porem não aconteceu.
Havia n’esse tempo um poderoso Chefe, chamado Pacquara-behu «barriga d’uma paca cheia d’agoa». Pacamont pode significar a «paca agarrada na armadilha», (Pacamondé).
O nome da terra, onde tinha influencia, significa a «região das plantas leitosas», e escreve-se Cumá.
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Vatable ou Vateblé era um celebre sabio na lingua hebraica, no seculo XVI, restaurador na França dos estudos orientaes.
Morreo em 1547.
Suas notas sobre o antigo testamento acham-se na Biblia de Robert Etienne.
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Prova-nos esta phrase ter o Padre Ivo escripto sua obra na Europa, e saber da missão dirigida pelo Padre Archangelo.
Affirma Marcellino de Piza terem 565 indios recebido o baptismo n’esta segunda expedição religiosa. (Vide Annales historiarum ordinis minorum. Lugd. 1676 in fol.)
O Padre Archangelo, acompanhado por 12 confrades, portador de magnificos ornamentos bordados pela Duqueza de Guize devia por certo cercar-se de outra pompa, que não tiveram os quatro Geraes Capuchinhos, que deram principio á missão.
Graças aos documentos, que nos são proporcionados pela marinha, e que devemos ao obsequio do Sr. P. Margry, soubemos por uma carta inedicta do Sr. de Beaulieu a Mr. de Razilly, que o Padre Archangelo, muito conhecedor do valor do dinheiro abstrahindo o seo voto de pobresa, não quiz embarcar-se antes de lhe haverem dado a esperança de conseguir subsidios.
Apesar dos recursos, de que dispunha o seo chefe espiritual, ainda está por fazer a historia d’esta segunda missão: não deixou até vestigios, e ficará para sempre ignorada em quanto não descobrirmos o livro de Francisco de Bourdenare.
Sabemos apenas que muito mais favorecido, que Ivo d’Evreux, por seos superiores, recebeo, graças ás suas cartas de obediencia, o direito de admittir noviços em seo Convento.
Não teve tempo de utilisar-se de tal privilegio, mas quando regressou á Europa, em recompensa do seo zelo foi em 1615 nomeado Guardião do grande Convento da rua de Santo Honorato.
Todos estes factos, omittidos naturalmente pelos historiadores do Maranhão, acham-se referidos nos Éloges historiques, manuscripto da Bibliotheca Imperial, e seria injustiça esquecer serem elles tambem narrados pelo Padre Marcellino de Piza.
Depois de haver contado como o Geral dos Capuchinhos Paulo de Caesena deo licença á Honorato de Pariz, então Provincial, para mandar á America uma segunda missão, disse: — «Ille nihil cunctatus, duodecim fratres ad hanc expeditionem, aptos elegit quorum animosa phalanx navem conscençâ secedens in Indiam, a barbara illa natione jam capucinorum placidis moribus assueta per humaniter fuit excepta.»
Na entrada dos portuguezes o Padre Archangelo de Pembroke retirou-se com os Capuchinhos francezes ficando em lugar d’elles os Franciscanos, que em numero de vinte se recolheram ao Mosteiro.
Sob a direcção de Frei Christovão Severino teve então o Convento nova regra.
Foram as bases lançadas em 1624 porem só foram cumpridas pontualmente em 4 de Agosto do anno seguinte.
Abstemos-nos porem de offerecer ás vistas do leitor as desgraçadas peripecias, porque passou este Mosteiro durante 225 annos: basta dizer, que no fim de um seculo estava quasi reduzido a ruinas.
Em 1860 o actual Guardião, que tinha sob seo governo somente dois franciscanos, mas que soube felizmente captar as sympathias dos habitantes de São Luiz, recorreo á caridade publica afim de concertar-se como merece este edificio, a que se ligam interessantes recordações do paiz.
A Ordem é actualmente muito pobre, porem offerece grande contraste, segundo é voz geral, quando em seo zelo é comparada com outros Conventos[6] opulentos da Cidade, que estão se arruinando.
Não foram em vão as supplicas de Frei Vicente de Jesus, pois elle arrecadou grandes quantias, que chegaram para reparar os estragos do tempo.
Conservando a humilde Capella, onde orou o Padre Ivo d’Evreux, fizeram-se novas edificações que tornaram a Igreja de Santo Antonio a mais linda de tão bella Cidade.
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É mui curioso vêr aqui o Padre Ivo d’Evreux fazer uma especie de allusão á antigas crenças d’esses povos, as quaes Thevet, ou talvez o Cavalheiro de Villegagnon tinham guardado desde 1555, e que parece ser ignoradas pelos nossos viajantes do Seculo XVI, pois não tratam d’ellas em suas narrações.
Uma nota, mesmo concisa nos levaria muito longe, e vêr-nos-iamos forçados a chamar a attenção do leitor para um opusculo, no qual reunimos tudo o que podemos encontrar á respeito das ideias mythologicas dos Tamoyos e dos Tupinambás. (Vide sobre os Maraïta — Une fête bresilienne célébrée à Rouen em 1550 suivie d’un fragment du XVIme siécle roulant sur la Théogonie des anciens peuples du Brésil. Paris, Techener, 1850 gr. in 8.º)
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A legenda brazileira de geração em geração transmittio a narração das perigrinações de dois prophetas, bem distinctos, igualmente estimados por esses selvagens, que os chamou Tamandaré e Sumé.
Como Boudaha, deixou o ultimo impressas as suas pegadas sobre a rocha viva, quando deixou a terra.
O mytho de Tamandaré, que se lê na descripção do diluvio americano, é contado extensamente por Vasconcellos nas suas Noticias do Brazil, pag. 47 e 48.
Ahi se lerá como o Noé americano subindo ao cume de uma palmeira, que tocava com o seo vertice o Ceo, e agarrando d’ahi sua Familia poude salval-a, e com ella repovoou a terra.
Na phrase aqui citada, Ivo d’Evreux alludio ao legislador mais moderno, Sumé, este Triptolémio brazileiro, que ensinou a cultura da mandióca aos descendentes de Tamandaré.
Simão de Vasconcellos diz mui positivamente, que «havia entre elles tradicção muito antiga, transmittida de paes a filhos, dizendo haverem apparecido, muitos seculos depois do diluvio, homens brancos n’estas terras, que fallavam aos povos de um só Deos e de outra vida. Um d’elles chamava-se Sumé, que parece quer dizer Thomé.»
Preferindo a tradicção, que dá a São Bartholameu a honra de haver evangelisado os povos longiquos, provou com isto o Padre Ivo o seo conhecimento das origens.
Com effeito, segundo diz Eusebio, chegou este Apostolo viajante até a extremidade das Indias, São Pantene percorreo o interior da Asia desde o III seculo, e ahi já achou vestigios do christianismo, que bem se podiam attribuir ás prédicas de Sam Bartholameo.
Prevaleceo comtudo no Brasil a legenda em contrario, como a outra na India. (Vide Jornada do Arcebispo de Goa dom Frei Aleixo de Menezes, quando foi ás serras de Malauare, lugares em que moram os antiguos christãos de S. Thomé. Coimbra, 1606, in fol.)
No tempo de Vasconcellos bem visiveis eram os signaes dos pés de S. Thomé, ao norte do porto de S. Vicente, perto da Villa.
Estes signaes de dois pes nùs por maravilha impressos na rocha (tão vivos e expressos, como si em um mesmo tempo juntamente se fizeram) não eram vistos debaixo d’agoa.
O religioso franciscano Jaboatam achou no Recife, em Pernambuco, pegàdas santas.
N’esta segunda edicção da legenda, somente apparece um pé como o de um menino de 5 annos, que suppõe ser o piedoso narrador o de um jovem companheiro do Apostolo. (Vide Novo Orbe Serafico, reimpresso ultimamente pelos esforços do Instituto Historico e Geoqraphico do Rio de Janeiro.)
Não se encontram esses afamados signaes somente em diversos pontos do littoral, e sim em outros lugares, o que seria enfadonho enumerar.
Não contentes ainda com isto fizeram com que o santo viajante se embrenhasse corajosamente pelo interior do Brasil, onde em caracteres gigantescos sobre pedras ou rochas escreveo a historia da sua missão.
Ha em Minas uma aldeia, a que se deo o nome chamando-a Sam Thomé das Lettras.
Um observador circumspecto, o general Cunha Mattos, não vio taes inscripções, e combateo a tradicção dizendo que esses traços phantasticos, que se observam n’um dos lados da Serra das lettras foram formados por accidentes de terreno, isto é, por dendrites, para servir-me de suas expressões. (Vide Itinerario do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão. Rio de Janeiro. 1836. 2 vol. em 8.º T. 1.º pag. 63).
Dura até hoje esta opinião sobre a gigantesca inscripção da Serra das lettras, e acredita-se actualmente serem devidos a infiltração de particulas ferruginosas obrando sobre o grão da serra, e por est’arte simulando caracteres escriptos.
No Brasil são muitos os hieroglyphos grosseiramente embutidos, e ninguem duvida serem devidos á origem indigena. Muitas obras nos mostram os seos fac-simile.
A grande viagem pitoresca de Mr. Debret tem dois, que não deixam de ter interesse.
Fallamos da inscripção do monte de Anastabia, e das esculpturas embutidas n’uma rocha, que se encontra perto das margens do rio Yapurá, na provincia do Pará, bem pode ser que as palavras do Padre Ivo se refiram á este monumento, grosseiramente trabalhado, e de que trata Mr. Debret na pag. 46 do seo T. 1º, porem em alguns não acha a mais prevenida imaginação bases para assentar uma opinião historica ou religiosa.
Pelo que se refere ás rochas incisadas, de que falla o nosso bom frade, é tradicção geral em toda a America, que estes accidentes, resultados de grandes commoções da natureza, são sempre explicados pela legenda indigena, que os attribue ao supremo poder de um semi-Deos, que, a sua vontade, quebra as montanhas mais resistentes ao trabalho do homem e, algumas vezes, até os mais gigantescos.
Em Nova-Granada o salto de Tequendama não teve outra origem, pois foi feito, como se sabe, pelo grande Bochica: poderiamos tambem citar a abertura feita no recife, que margina o littoral de Pernambuco, e que se attribue ao grande Sumé, ou ao seu representante christão, o Apostolo viajante. (Vide Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Chronica dos frades menores da provincia do Brasil. 2.ª edicç. Rio de Janeiro. 1858.)
Jaboatão escreveu em 1761.
109
Tinha este chefe indigena um nome bem conhecido na ornithologia do Brasil. O Jacupema é o Penelopsupereiliaris uma das melhores caças do Brasil.
110 (pag. 334.)
Na familia dos Foulon, de que gozava muita consideração em Abbeville, tinham muitos dos seos membros se dedicado á vida monastica.
O padre Marçal esteve em Pariz com seo irmão o padre Claudio; este ultimo, cujo artigo está tão cheio de erros na biographia universal, era ja guardião do convento na sua patria desde 1608, mas, como o padre Ivo, começou o seo noviciado em 9 de junho de 1595.
A bibliotheca do Arsenal possue um opusculo, hoje raro, do padre Claudio, cujo titulo é — L’arrivée des Pêres Capucins et la conversion des sauvages a nostre sainte Foy déclarés par le R. P. Claude d’Abbeville, prédicateur capucin à Paris, chez Jean Nigaut, rue de St. Jean de Latran, em 1613. Pode comparar-se este escripto com o artigo intitulado — Retour du sieur de Rasilly en France et des Toupinambous qu’il amena á Paris. Mercure française. T. 3, pag. 164. L’histoire chronologique de la bienheureuse Colette, réformatrice des trois ordres du Seraphique Pere St. François. Paris. Nicolas Buon, 1628, em 12: não é do padre Claudio, como suppõe Eyriés. A dedicatoria tem a assignatura de Fr. S. d’A, indigno capuchinho. Já tinha morrido Claudio d’Abbeville quando appareceo esta obra. Depois de ter 23 annos de religião, falleceo em Ruão em 1616 e não em 1632.
111
Leia-se Plymouth: Claudio d’Abbeville escreve Pleme.
112
Trata-se aqui do Rio do Ouro.
113
Difficilmente por este nome se sabe ser a Ilha de Fernão de Noronha, e não Fernando de Noronha, como escreve alguns geographos.
Está a 75° long. E. N. E. do Cabo de Sam Roque, e na lat. de 3° 48, á 52′. Explica-se esta alteração de nome pela sua visinhança do Cabo de Sam Roque.
Alguns viajantes antigos escreveram Fernando de la Rogne: n’esse caso está o padre Claudio.
114
Omittio o padre Claudio d’Abbeville esta ultima circumstancia.
115
Leia-se Tupan em vez de Iupan. Quanto a palavra Matarata, que ahi se lê, não se pode entender pelo adjectivo Mbaraeté, que significa — forte. Parece estar sob esta significação no Tesoro de la lingua Guarany, do padre Ruiz de Montoya.
116
O capitão du Manoir estava ha muito tempo estabelecido na Ilha, onde tinha muitas relações.
Foi elle quem hospedou os Missionarios, e lhes offereceo uma festa «tão magnifica como podia ser em França» disse o padre Claudio, a qual assistiram os Srs. de Rasilly e Pezieux. Foi da sua habitação que partiram os nossos para tomar posse do lugar, onde se edificou o Forte de Sam Luiz. Regressou á França antes de ser o Maranhão tomado pelos portuguezes.
Quando evacuaram as nossas forças navaes o porto do Maranhão, muitos francezes não seguiram o exemplo de Manoir, e se estabeleceram na nova Colonia, onde só foram permittidos artistas.
Erraria quem suppozesse ter sido abandonada a missão fundada com tanto zelo pelos nossos Religiosos: sem a menor alteração foram incumbidos d’ellas os Franciscanos: a este respeito achou-se tudo quanto podia desejar-se no Orbe Seraphico do padre Jaboatão.
Contem este resumo uma longa biographia de Frei Francisco do Rosario, frade celebre na Ordem de Sam Francisco, que tomou posse do Convento dos Capuchinhos perto de dez annos depois, que estes o abandonaram de todo.
Embrenhava-se muitas vezes este zeloso Missionario nos desertos desconhecidos do Maranhão, onde ia cathequisar os indios.
Em 1630 compôz uma obra aproveitavel sobre as tribus que visitou. Infelizmente nunca foi publicada, e o seria se fosse encontrada, como precioso commentario á obra do padre Ivo.
Cansado por seos trabalhos, cuja multiplicidade espanta até a imaginação, foi para a Bahia, onde revestido das dignidades da ordem falleceo com cheiro de santidade em 24 de fevereiro de 1650.
Afirma-se haver elle predicto muitos annos antes os grandes acontecimentos politicos, que, produzindo a expulsão da Hespanha, dava independencia ao Brasil.
Parece que vio-se obrigado a reconstruir em 1625 os edificios que deixaram em começo os nossos Religiosos, e por isso foi elle em Sam Luiz julgado como o primeiro fundador do Convento da sua Ordem.
Vamos ainda dizer uma palavra para acabar estas notas. Serão ellas ainda um dia completadas pelo trabalho, que ha de preceder a Relação do Padre Claudio d’Abbeville, e si se quizer, o podem ser ja, consultando se varias obras francezas contemporaneas, absolutamente despresadas, sob este ponto de vista, pelos historiadores da America. N’este caso, entre outros, está o padre Pedro du Jarric, pois, na verdade, ninguem pensaria achar n’uma Historia das Indias orientaes todos os factos religiosos, acontecidos em Maranhão antes de 1607.
Consultando-se o 5.º volume d’esta volumosa obra, encontra-se a tragica historia dos padres Francisco Pinto e Luiz Figueira, jesuitas portuguezes, os primeiros que visitaram os desertos desconhecidos, cujo littoral occuparam os francezes.
Francisco Pyrard, o viajante Belga, residente na pequena cidade de Laval, nos contou tambem na sua Relação das Indias e especialmente das Ilhas Maldivas, o que na Europa se pensava do Brasil no tempo, em que viveo o padre Ivo. Não trata do Maranhão, e bem o podia fazer.
Deve ainda dizer-se que esta bella provincia, conhecida mais pela obra de Mr. Herald do que por outras antigas, ficou por muito tempo fóra da toda a vida politica.
Doada a principio aos filhos de José de Barros, o famoso historiador das Indias, só foi conhecida na Europa por uma lastimavel catastrophe, pois era esquecida apesar da fertilidade e da magnificencia da sua vegetação.
Apparece comtudo n’um dos monumentos geographicos mais importantes, onde se verificou o que era o Brasil no seculo XVI: queremos fallar da bella Carta de Gaspar Viegas, que tem a data de outubro de 1534, hoje na Bibliotheca Imperial de Paris.
Nenhum historiador até hoje ainda a mencionou, apezar de sua exactidão tão admiravel para aquelles tempos e ainda continuaria a ser esquecida se o Sr. de Cortambert não nos fizesse o favor de communicar-nos a sua existencia.
Sentimos muito praser recordando-nos, que este bello trabalho do desconhecido geographo vae de hora em diante ligar-se ao mais vasto e ao mais exacto reconhecimento das costas do Brasil, que tem podido obter a sciencia n’estes ultimos tempos, e d’ella fará objecto de especial estudo o Sr. capitão da fragata Mouchez na sua grande obra nautica a respeito do littoral do Brasil.
Deviam acabar aqui as notas indispensaveis para conhecer-se na França e mesmo na America o texto do nosso velho viajante.
Accrescentaremos apenas uma palavra, talvez indispensavel para comprehender-se o valor do documento por nós exhumado.
O padre Arsenio de Pariz, o fiel companheiro do padre Ivo d’Evreux, disse em 1613 ao Superior do seo Mosteiro á proposito das regiões, por onde evangelisou, o seguinte:
«Eu vos asseguro, meo padre, que quando estiver um pouco estabelecido, será um verdadeiro paraiso terrestre.»
A esperança do bom Religioso não era das que se podem realisar completamente: não caminham assim as coisas neste mundo, porem não sendo o paraiso, é o Maranhão uma das provincias de um vasto Imperio, que vae progredindo.
No meio de prosperidades reaes, e apezar dos esforços de espiritos felizmente bem intencionados, o progresso intelletual do paiz está muito longe do que devia ser.
As recordações do passado, que tanto desenvolvem as populações, ahi não existem.
Não ha archivos, bibliothecas publicas, e nem instituições litterarias, e tanto é verdade isto, que o Imperador, o Sr. D. Pedro 2º, ha dez annos incumbio um dos homens mais activos e eminentes d’este paiz para examinar na Cidade de Sam Luiz o estado real dos depositos litterarios da Capital do Maranhão.
Não reproduziremos aqui as queixas judiciosas e bem fundadas do Sr. Gonçalves Dias sobre o lamentavel estado dos estabelecimentos, objecto de suas investigações.
Pode lêr-se o seo Relatorio escripto em bom estylo na Revista Trimensal publicada com tanto zelo pelo Instituto Historico do Rio de Janeiro.
Citaremos apenas, que ha dez annos, Gonçalves Dias achou 2:000 volumes na Bibliotheca Publica e no Almanach de 1860, edictado pelo Sr. B. de Mattos, apparecem 1:030 em deploravel estado!
Possa a reimpressão da obra do padre Ivo d’Evreux marcar uma nova era na patria de Odorico Mendes, de Gonçalves Dias, e de João Lisboa.
Notas de rodapé
[editar]- ↑ Consulte-se a respeito de todos estes assumptos o meo Diccionario historico e geographico do Maranhão. Iria longe se eu quizesse acompanhar parí passu esta publicação, onde não poucas vezes foi illudida a bôa fé de Mr. Ferdinand Diniz. — Do traductor.
- ↑ Outro engano. Aqui não se conhece esta dóca. — Do traductor.
- ↑ 40 leguas? Não, e sim 4 leguas. Vide art. Alcantara no meo Diccionario. — Do traductor.
- ↑ É engano. O major Fidié não foi vencido, e sim capitulou honrosamente em 1.º de Agosto de 1823. (Vide Historia da Independencia do Maranhão (1822 a 1823) pelo Dr. Luiz Antonio Vieira da Silva, hoje Senador do Imperio, pag. 109 a 127.) — Do traductor.
- ↑ Mr. Ferdinand Diniz foi illudido por escriptos politicos, embora habilmente manejados porem sempre com paixão.
Não foi o Conselheiro Furtado a quem se deve esse estado de paz, e sim a outro cidadão como ja disse no meo Diccionario neste trecho que para aqui transcrevo.
— Durou este triste e lamentavel estado de ferocidade ou dezespero até o tempo, em que o fallescido Dr. Eduardo Olympio Machado perante os escolhidos da Provincia em 1851 recitou estas palavras:
«A febre homicida, que ía lavrando pelo municipio de Caxias, tem feito, vae para tres mezes, prolongada remissão. E qual o reagente que conseguio acalmar seos lugubres accessos? A energia e actividade do actual delegado de policia o Dr. João de Carvalho Fernandes Vieira, o qual, formando culpa aos delinquentes, perseguindo-os com incansavel zelo, devassando as casas de certos individuos, que até então contavam, senão com acquiescencia, com o silencio da auctoridade publica, tem conseguido restituir á tranquilidade o districto de sua jurisdicção.»
Foram estes valiosos e importantes serviços apreciados pelo Governo Central, pois mandou por mais de um Aviso louvar o Dr. João de Carvalho.
D’ahi a poucos annos houve quem intentasse arrancar esses louros da fronte do energico e activo ex-juiz municipal e delegado de policia de Caxias para offerecer a outro, que nada fez, não cuidando da historia que tudo registra e a todos faz justiça!
Esta acção, por demais injusta, nos faz lembrar estes versos do poeta de Mantua:Hos ego versiculos feci: tulit alter honores Sic vas non vobis, nidificates, aves etc etc.
Do traductor. - ↑ É injustiça confundir-se nesta censura o Convento do Carmo, graças ao zelo do seo benemerito Provincial o Revd. Frei Caetano de Santa Rita Serejo. — Do traductor.