Viagens na Minha Terra (1846)/I

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VIAGENS NA MINHA TERRA.
 

Qu’ il est glorieux d’ouvrir une nouvelle carrière, et de paraitre tout-à-coup dans le monde savant un livre de découvertes à la main, comme une cométe inattendue étincelle dans l’espace!

x. de maistre.

 

CAPITULO I.

 

De como o auctor d’este erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens. Parte para Santarem. Chega ao Terreiro-do-Paço, imbarca no vapor de Villa-Nova; e o que ahi lhe succede. A Deducção-Chronologica e a Baixa de Lisboa. Lord Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os Ilhavos e os Bordas-d’agua:

os da calça larga levam a melhor.
 

Que viage á roda do seu quarto quem está á beira dos Alpes, de hynverno, em Turim, que é quasi tam frio como San’Petersburgo — intende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o proprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

Eu muitas vezes, n’estas suffocadas noites d’estio, viajo até á minha janella para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me inganar com uns verdes de árvores que alli vegetam sua laboriosa infancia nos intulhos do Caes-do-Sodré. E nunca escrevi éstas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha penna: pobre e suberba, quer assumpto mais largo. Pois hei de dar-lh’o. Vou nada menos que a Santarem: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica.

Era uma idea vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha ha muito de ir conhecer as riccas varzeas d’esse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais historica e monumental das nossas villas. Aballam-me as instancias de um amigo, decidem-se as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quiz incabeçar em designio politico determinado a minha visita. Pois por isso mesmo vou: — pronunciei-me.

São 17 d’este mez de julho, anno de graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estrea. Seis horas da manham a dar em San’Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro-do-Paço. Chego muito a horas, invergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Ja vou quasi no fim da praça, quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d’ancien règime: é o nosso chefe e commandante, o capitão da impreza, o Sr. C. da T. que chega em estado.

Tambem são chegados os outros companheiros: o sino dá o último rebate. Partimos.

N’uma regata de vapores o nosso barco não ganhava decerto o premio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns isthmicos ou olympicos para este genero de carreiras — e se para ellas houver algum Pindaro ancioso de correr, em strophes e antistrophes, atraz do vencedor que vai coroar de seus hymnos immortaes — não cabe nem um triste minguado epodo a este cançado corredor de Villa-nova. É um barco serio e sizudo que se não mette n’essas andanças.

Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pittoresco amphitheatro de Lisboa oriental, que é, vista de fóra, a mais bella e grandiosa parte da cidade, a mais characteristica, e onde, aqui e alli, algumas raras feições se percebem, ou mais exactamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das chronicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguez, chato, vulgar e semsabor como um periodo da Deducção Chronologica, aqui e alli assoprado n’uma tentativa ao grandioso do mau gôsto, como alguma oitava menos rasteira do Oriente.

Assim o povo, que tem sempre melhor gôsto e mais puro do que essa escuma descórada que anda ao decima das populações, e que se chama a si mesma por excellencia a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre-de-Deus e o Beato e Xabregas e Marvilla e as hortas de Chellas. A um lado a immensa majestade do Tejo em sua maior extensão e podêr, que alli mais parece um pequeno mar mediterraneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palacios, mosteiros, sitios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra sahida tem Lisboa que se compare em belleza com ésta? Tirado Bellem, nenhuma. E ainda assim, Bellem é mais arido.

Já saudámos Alhandra, a toireira; Villa-franca, a que foi de Xira, e depois da Restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal restauração cahiu, como a todas as restaurações sempre succede e hade succeder, em odio e execração tal que nem uma pobre villa a quiz para sobrenome.

— 'A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um govérno de patuscos, que é o mais odioso e ingulhoso dos governos possiveis.'

É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viajem accudiu ao princípio de ponderação que eu ia involuntariamente fazendo a respeito de Villa-franca.

Mas eu não tenho odio nenhum a Villa-franca, nem a esse famoso cirio que lá foi fazer à velha monarchia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por fôrça havia de succeder. Este necessario e inevitavel reviramento por que vai passando o mundo, hade levar muito tempo, hade ser contrastado por muita reacção antes de completar-se...

No entretanto vamos accender os nossos charutos, e deixemos os precintos aristocraticos da ré: á proa, que é paiz de cigarro livre!

Não me lembra que lord Byron celebrasse nunca o prazer de fummar a bórdo. È notavel esquecimento no poeta mais imbarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o injôo, a mais prosaica e nauseante das miserias da vida! Pois n’um dia d’estes, sentir na face e nos cabellos a brisa refrigerante que passou por cima da agua, em quanto se aspiram mollemente as narcoticas exhalações de um bom cigarro da Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que ha n’este mundo.

Fummemos!

Aqui está um campino fummando gravemente o seu cigarro de papel, que me vai imprestar lume.

’Dou-lh’o eu, senhor...’ accode cortezmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do musarabe ribatejano.

Accenderam-se os charutos, e attentámos mais de vagar na companhia em que estavamos.

Era com effeito notavel e interessante o grupo a que nos tinhamos chegado, e destacava pittorescamente do resto dos passageiros, mistura hybrida de trajos e feições descharacterizadas e vulgares — que abunda nos arredores de uma grande cidade maritima e commercial. — Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava elle de uns dôze homens; cinco eram d’esses famosos athletas da Alhandra que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum da praça de Sanct’Anna, e que, á voz soberana e irresistivel de: á unha, á unha, á cernelha!.... correm a arcar com mais generosos, não mais possantes, animaes que elles, ao som das immensas palmas, e a trôco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio enthusiasmo das multidões. Voltavam á sua terra os meus cinco luctadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da vespera. Mas aopé d’estes cinco e de altercação com elles — ja direi porquê — estavam seis ou sette homens que em tudo pareciam os seus antipodas.

Emvez do calção amarello e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de panno de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da familia pelasga: feições regulares e moveis, a fórma agil.

Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul: a questão fôra interrompida com a nossa chegada á proa do barco. Mas um dos Ilhavos — bella e poetica figura de homem — voltando-se para nós, disse n’aquelle seu tom accentuado: — 'Ora aqui está quem hade decidir: vejam-n'os senhores. Elles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais que ninguem, que não ha quem lhes chegue. E os senhores, a serem ca de Lisboa, hãode dizer que sim. Mas nós...’

— Nenhum de nós é de Lisboa: so este senhor que aqui vem agora.

Era o C. da T. que chegava.

— 'Este conheço eu; este é dos nossos (bradou um homem de forcado, assim que o viu). Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi n'uma ferra, isso é verdade; mas aqui de Vallada a Almeirim ninguem corre mais do que elle por sol e por chuva, e hade saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.’

— 'Pois oiçamos lá a questão.'

— 'Não é questão' — tornou o Ilhavo: ’mas se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca o outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! — mas não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e fez terra das areas da charneca.’

— 'Lá isso é verdade'.

— 'Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoira que a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não fazem elles, que nem sabem ter mão n'esses monchões c’o plantio das arvores: so lá por cima é que algumas teem mettido, e é bem pouco para o rio que é, e as riccas terras que lhes levam as inchentes. — Mas nós, pe no barco pe na terra, tam depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por ahi abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar n’area por não haver agua... mas sempre labutando pela vida’. — 'A fôrça é que se falla' — tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha. — 'A fôrça é que se falla: um homem do campo que se deita alli á cernelha de um toiro que uma companha inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores pelo rabo!..' E reforçou o argumento com uma gargalhada triumphante, que achou echo nos interessados circumstantes que ja se tinham apinhado a ouvir os debates.

Os Ilhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciencia da sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.

Parecia a esquerda de um parlamento quando ve sumir-se, no borburinho acintoso das turbas ministeriaes, as melhores phrases e as mais fortes razões dos seus oradores.

Mas o orador ilhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:

— 'Então agora como é de fôrça, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais fôrça, se é um toiro ou se é o mar'.

— 'Essa agora!..'

— 'Queriamos saber'.

— 'É o mar'.

— 'Pois nós que brigâmos com o mar, oito e dez dias a fio n'uma tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais fôrça?’

Os campinos ficaram cabisbaixos; o publico imparcial applaudiu por ésta vez a opposição, e o Vouga triumphou do Tejo.