Viagens na Minha Terra (1846)/II

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CAPITULO II.

 

Declaram-se typicas, symbolicas e mythicas éstas viagens. Faz o A. modestamente o seu proprio elogio. Da marcha da civilização; e mostra-se como ella é dirigida pelo cavalleiro da Mancha D. Quixote, e por seu escudeiro Sancho Pança. — Chegada a Villa-Nova-da-Rainha, Supplicio de Tantalo. — A virtude galardão de si mesma; e sophisma de Jeremias Bentham. — Azambuja.

Éstas minhas interessantes viagens hãode ser uma obra prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do seculo. Preciso de o dizer ao leitor, paraque elle esteja previnido; não cuide que são quaesquer d’essas rabiscaduras da moda que, com o titulo de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da sciencia e do adiantamento da especie.

Primeiro que tudo, a minha obra é um symbolo... é um mytho, palavra grega, e de moda germanica, que se mette hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.

É um mytho porque — porque... Ja agora rasgo o veo, e declaro abertamente ao benevolo leitor a profunda idea que está occulta debaixo d’esta ligeira apparencia de uma viagemzita que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada com um livro novo da feira de Leipsick, não das taes brochurinhas dos boulevards de Paris.

Houve aqui ha annos um profundo e cavo philosopho d’alêm Rheno, que escreveu uma obra sôbre a marcha da civilização, do intellecto — o que diriamos, para nos intenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu elle que ha dois principios no mundo: o espiritualista, que marcha sem attender á parte material e terrena d’esta vida, com os olhos fittos em suas grandes e abstractas theorias, hirto, sêcco, duro, inflexivel, e que póde bem personalizar-se, symbolizar-se pelo famoso mytho do cavalleiro da Mancha, D. Quixote; — o materialista, que, sem fazer caso nem cabedal d’essas theorias, em que não crè, e cujas impossiveis applicações declara todas utopias, póde bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.

Mas, como na historia do malicioso Cervantes, estes dois principios tam avessos, tam desincontrados, andam comtudo junctos sempre; ora um mais atraz, ora outro mais adiante, impecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.

E aqui está o que é possivel ao progresso humano.

E eisaqui a chronica do passado, a historia do presente, o programma do futuro.

Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina elrei Sancho.

Depois hade vir D. Quixote.

O senso commum virá para o millenio: reinado dos filhos de Deus! Está promettido nas divinas promessas... como elrei de Prussia prometteu uma constituição; e não faltou ainda, porque — porque o contracto não tem dia; prometteu mas não disse para quando.

Ora n’esta minha viagem Tejo-a-riba está symbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor intendesse agora. Tomarei cuidado de lh’o lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.

Somos chegados ao triste desimbarcadoiro de Villa-Nova-da-Rainha, que é o mais feio pedaço de terra alluvial em que ainda poisei os meus pés. O sol arde como ainda não ardeu este anno.

Um immenso arraial de caleças, de machinhos, de burros e arrieiros, nos espera n’aquelle descampado africano. É forçoso optar entre os dois martyrios da caleça ou do macho. Do mal o menos... seja este.

E acolá — oh supplício de Tantalo! — vejo duas possantes e nedeas mulas castelhanas jungidas a um vehiculo que, n’estas paragens e ao pé d’aquell’outros, me parece mais esplendido do que um landaw de Hyde-Park, mais elegante que um caleche de Long-champs, mais commodo e elastico do que o mais acrio briska da princeza Hellena. E com tudo — oh magico podêr das situações! — elle não é senão, uma substancial e bem apessoada traquitana de cortinas.

Togados manes dos antigos desimbargadores, venerandas cabelleiras de anneis e castanhola, que direis, ó respeitadas sombras, se d’esse limbo onde estais esperando pela resurreição do Pêgas... e do livro quinto — vêdes este degenerado e espurio successor vosso, em calças largas, frak verde, chapeu branco, gravata de côr, chicotinho de caoutchouc na mão, prompto a cavalgar em mulinha de Palito-Metrico como um garraio estudantinho do segundo anno, e deitando olhos invejosos para esse natural, proprio e adscripticio modo de conducção desimbargatoria? Oh que direis vós! Com que justo desprêzo não olhareis para tanta degradação e derogação!

Eu commungava silenciosamente commigo n’estas graves meditações, e revolvia incertamente no ânimo a ponderosa dúvida: — se o administrar justiça direita aos povos valia a pena de andar um desimbargador a pé!... Luctava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do espirito — quando a Providencia, que nos maiores apertos e tentações nos não abandona nunca, me trouxe a generosa offerta de um amigo e companheiro do vapor, o Sr. L. S.: era sua a invejada carroça, e n’ella me deu logar até á Azambuja.

A virtude é o galardão de si mesma, disse um philosopho antigo; e eu não creio no famoso ditto de Bentham, que sabedoria antiga seja um sophisma. O mais moderno é o mais velho, não ha dúvida; mas o antigo que dura ainda, é porque tem achado na experiencia a confirmação que o moderno não tem. Jeremias Bentham tambem fazia o seu sophisma como qualquer outro.

Vamos percorrendo lentamente aquelle mal-composto marachão que poucos palmos se eleva do nivel baixo e salgadiço do solo: de hynverno não se passará sem perigo; ainda agora se não anda sem incómmodo e receio. Estamos em Villa-Nova e ás portas do nojento caravanseray, unico asylo do viajante n’esta, hoje, a mais frequentada das estradas do reino.

Parece-me estar mais deserto e sujo, mais abandonado e em ruinas este asqueroso logarejo, desde que alli aopé tem a estação dos vapôres, que são a commodidade, a vida, a alma do Ribatéjo. Imagino que uma aldeia de Alarves nas faldas do Atlas deve ser mais limpa e commoda.

Oh! Sancho, Sancho, nem siquer tu reinarás entre nós! Cahiu o carunchoso throno de teu predecessor, antagonista e ás vezes amo; açoitaram-te essas nadegas para desincantar a formosa del Toboso, proclamaram-te depois rei em Barataria, e n’esta tua provincia lusitana nem o paternal govêrno de teu estupido materialismo póde estabelecer-se para commodo e salvação do corpo; ja que a alma... oh! a alma...

Fallemos n’outra coisa.

Fujamos depressa d’este monturo. — É monótona, arida e sem frescura de árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal-medrada, a longos e desiguaes espaços, mostra o seu tronco rachitico e braços contorcidos, ornados de ramusculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo porêm, com raras excepções, é optimo, e a trôco de pouco trabalho e insignificante despeza, daria uma estrada tam boa como as melhores da Europa.

Dizia um secretario d’Estado meu amigo que para se repartir com egualdade o melhoramento das ruas por toda Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os tres mezes. Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as kalendas gregas, eu heide propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada anno, como a desobriga.

Ahi está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visiveis signaes de vida, aceadas e com ar de confôrto as suas casas. É a primeira povoação que dá indicio de estarmos nas ferteis margens do Nilo portuguez.

Corrémos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumulla as tres distinctas funcções, de hotel, de restaurant e de café da terra.

Sancto Deus! que bruxa que está á porta! que antro lá dentro!... Cai-me a penna da mão.