Viagens na Minha Terra (1846)/XLII
CAPITULO XLII.
Não chamem exaggerado ao que vai escripto no fim do último capitulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacêrto nas palavras, porque em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruina n’este estado. Desaffinam-me os nervos, vibram-me n’uma discordancia e dissonancia insupportavel. Queria ver antes estes altares expostos ás chuvas e aos ventos do ceo, — que o sol os queimasse de dia, — que á noite, á luz branca da lua, ou ao tibio reflexo das estrellas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sôbre seus arcos meio-cahidos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descahido de majestade o monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras sôltas, entre as hervas humidas, e levantar o meu pensamento a Deus, o meu coração á glória, á grandeza, o meu espirito ás sublimes aspirações da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham affligir ahi.
Deus, a idea grande do mundo — Deus, a Razão Eterna — Deus, o amor — Deus, a glória — Deus, a fôrça, a poesia e a nobreza d’alma — Deus está nas ruinas escalavradas do Colliseu, como nos zimborios de bronze e marmore de San’Pedro.
Mas aqui!.. nos pardeiros de um convento velho, concertado pelas Obras-públicas para servir de quartel de soldados — aqui não habita espirito nenhum.
Quero-me ir embora d’aqui!
E como? sem ver o tumulo d’elrei Fernando? Não póde ser, é verdade.
Onde está elle?
No côro alto.
Subamos ao côro alto.
Oh! que não sei de
nôjo como o conte!
O bello jasigo do rei formoso e frivolo, tam dado ás delicias do prazer como foi seu pae ás austeridades da justiça, em que estado elle está!
Oh nação de barbaros! Oh malditto povo de iconoclastas que é este!
O tumulo do segundo marido de D. Leonor Telles é um sarcophago de pedra branca, fina e friavel, elegante e simplesmente cortada, com mais sobriedade de ornatos do que tem de ordinario os monumentos do seculo XIV, mas de uma acabada sculptura, casta e continente, como o não foi a vida do rei que ahi incerraram depois de morto.
Percebem-se ainda vestigios das vivas côres em que foram induzidos os relevos da pedra branca: — stylo byzantino de que não sei outro exemplar em Portugal. Este é — ou antes, era — precioso.
Era; porque a brutalidade da soldadesca o deturpou a um ponto incrivel. Imaginou a estupida cubiça d’estes Allanos modernos que devia de estar alli dentro algum grande haver de riquezas incantadas, — talvez cuidaram achar sôbre a caveira do rei a coroa real marchetada de perolas e rubis com que fosse interrado, — talvez pensaram incontrar appertado ainda entre as sêccas phalanges dos dedos myrhados, aquelle globo de oiro macisso que lhes figura o rei d’espadas do sujo baralho de sua tarimba, e que elles teem pela indisputavel e infallivel insignia do supremo imperio; — talvez supposeram que mesmo depois de morto, um rei devia de ser de oiro... Emfim quem sabe o que elles cuidaram e pensaram? O que se sabe, porque se ve, é que quizeram abrir e arrombar o tumulo. Tentaram, primeiro, levantar a campa; não poderam: tam solidamente está soldada a pedra decíma ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece macisso e inconsutil. Mas n’este impenho quebraram e estallaram os lavores finos dos cantos, os caireis delicados das orlas; e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamentos com o sêllo tremendo que so se hade quebrar no dia derradeiro do mundo.
A cubiça estolida dos soldados não se aterrou com a religião do sepulchro, nem lhe causou attrição, ao menos, ésta resistencia quasi sobrenatural das pedras do moimento. Ve-se que trabalhou alli, de alavanca e de ariete, algum possante e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou em vão muito tempo.
Desinganaram-se emfim com a tampa; e resolveram atacar, mais brutalmente mas com mais vantagem, as paredes do sarcophago, que justamente suspeitaram de menos espessos. Assim era; e conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro por onde entra facil um braço todo e póde explorar o interior do tumulo á vontade.
Assim o fiz eu, que metti o meu braço por essa abertura barbara, e achei terra, pó, alguns ossos de vertebras, e duas caveiras, uma de homem, outra de criança.
Não me lembra que haja memoria alguma de infante que ahi fosse sepultado tambem, segundo faziam os antigos muitas vezes que punham os cadaveres das crianças nos jazigos dos paes, dos parentes, até de meros amigos de suas familias.
Tive, confésso, uma especie de prazer maligno em imaginar a estupida compridez de cara com que deviam de ficar os brutaes profanadores, quando achassem no tumulo do rei o que so teem os tumulos — de reis ou de mendigos — ossos, terra, cinza, nada!
Por mim, estive tentado a furtar a caveira d’elrei D. Fernando. Se acreditasse na phrenologia, parece-me que não tinha resistido. Não creio na sciencia, felizmente — n’este caso — para a minha consciencia. Tambem não sei o que faria se a caveira fosse de outro homem. Mas o ’fraco rei’ que fez ’fraca a forte gente’ não são reliquias as suas que se guardem.
Oh! e quem sabe? Ésta profanação, este abandôno, este desacato do tumulo de um rei, alli na sua terra predilecta — D. Fernando era santareno de affeição — não será elle o juizo severo da posteridade, a vindicta pública dos seculos, que tardia mas ultrajante, cai emfim sôbre a memoria reprovada do mau principe, e lhe deshonra as cinzas como ja lhe deshonrára o nome?
Quero acreditar que tal não podia succceder aos tumulos de D. Diniz, de D. Pedro I, dos dois Joannes I e II, de...
Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? que ainda é mais vergonhosa pergunta ésta última.
Em Portugal não ha religião de nenhuma especie. Até a sua falsa sombra, que é a hypocrisia, desappareceu. Ficou o materialismo estupido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cynica no meio das ruinas profanadas de tudo o que elevava o espirito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apezar d’esta paralysia que lhe pasma a vida d’alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação piquena, é impossivel; hade morrer.
Mais dez annos de barões e de regimen da materia, e infallivelmente nos foge d’este corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espirito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está são: os corruptos somos nós os que cuidâmos saber e ignorâmos tudo.
Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não intendemos a poesia do povo; nós, que so comprehendemos o tangivel dos sentidos, nós somos extranhos ás aspirações sublimes do senso-íntimo que despreza as nossas theorias presumpçosas, porque todas veem de uma acanhada anályse que procede curta e mesquinha dos dados materiaes, insignificantes e imperfeitos; — em quanto elle, aquelle senso-íntimo do povo, vem da Razão divina, e procede da synthese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.
E eu que escrevo isto serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanatico, jesuita, hypocrita? Não sou.
Que sou eu então?
Quem não intender o que eu sou, não vale a pena que lh’o diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim d’este capítulo ja tam seccante, e prometto não reflectir nunca mais.
Jesu Christo, que foi o modêlo da paciencia, da tolerancia, o verdadeiro e unico fundador da liberdade e da egualdade entre os homens, Jesu Christo soffreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a elle e á sua missão divina; perdoou ao matador, á adúltera, ao blasphêmo, ao impio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pôde conter, pegou n’um azorrague e zurziu-os sem dor.