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Viagens na Minha Terra (1846)/XLIII

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CAPITULO XLIII.

 
Partida de Santarem. — Pinacotheca. — Impaciencia e saudades. — Sexta-feira. — Martyrio obscuro. — A figura do peccado. — Estamos no valle outra vez. — Evocação de incanto. — A irman Francisca e Fr. Diniz. — A teia de Penelope. — E Joanninha? — Joanninha está no ceo. — A mulher morta a dobar esperando que a interrem. — A esperança, virtude do christianismo. — Uma carta.
 

Estou devéras fatigado de Santarem; vou-me embora.

Despedimo’-nos saudosos d’aquella boa e leal familia que nos hospedára com tanto carinho, com toda a velha cordialidade portugueza; partimos.

Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhan nos olivaes, senti desaffogar-se-me alma d’aquella constricção cansada que se experimenta na longa visita a um museu de antiguidades, a uma galeria de pinturas.

Perdoem-me que não diga ’pinacotheca’: bem sei que é moda, e que a palavra é adoptavel segundo as mais strictas regras de Horacio, pois ’cai da fonte grega’ direitamente e sem mistura: mas soa-me tam mal em portuguez que não posso com ella.

Santarem fatigou-me o espirito, como todas as coisas que fazem pensar muito. Deixo-a porêm com saudade, e não me heide esquecer nunca dos dias que aqui passei.

De quê e como sou eu feito, que não posso estar muito tempo n’um logar, e não posso sahir d’elle sem pena?

Ja me está custando ter deixado Santarem. Porque não haviamos de partir ámanhan, e ter ficado ainda hoje alli?

E hoje que é sexta-feira?... Mau dia para começar viagem!

Sexta-feira! Era o dia aziago do nosso valle, da pobre velha cega que ahi vivia sua triste vida de dores, de remorsos e desconfôrto, esperando porêm em Deus, conformada com seu martyrio: martyrio obscuro, mas tam insanguentado d’aquelle sangue que mana gotta a gotta e dolorosamente do coração rasgado, devorado em silencio pelo abutre invisivel de uma dor que se não revela, que não tem prantos nem ais.

Era na sexta-feira que o terrivel frade, o demonio vivo d’aquella mulher de angústias, lhe apparecia tremendo e espantoso deante de seus olhos cegos, elevado pela imaginação ás proporções descommunaes e gigantescas de um vingador sobrenatural.

Era a figura tangivel, e visivel á vista de sua alma, do enorme peccado que contra ella estava sempre.

Creio que escuso dizer que não tenho eu ésta superstição dos dias aziagos que tinha a desgraçada velha, que a sua Joanninha partilhava. Mas confesso que, recordando as fatalidades d’aquella familia e d’aquelle dia, não gostei de voltar n’elle ao valle de Santarem.

Estavamos porêm no valle; e ja eu via de longe aquellas árvores e aquella janella que tanto me impressionaram, quando éstas reflexões me acudiam ao espirito e m’o contristavam.

Affrouxei insensivelmente o passo, deixei tomar larga dianteira aos meus companheiros de viagem; e quando chegava perto da casa, tinha-os perdido de vista.

Involuntariamente parei defronte da janella; mordia-me um interêsse, uma curiosidade irresistivel... Nem viva alma por aquelles arredores; apeei-me e fui direito para a casa.

Apenas passei as árvores, um spectaculo inesperado, uma evocação como de incanto me veio ferir os olhos.

No mesmo sítio, do mesmo modo, com os mesmos trajos e na mesma attitude em que a descrevi nos primeiros capitulos d’esta historia, estava a nossa velha irman Francisca...

Ella era, e não podia ser outra; sentada na sua antiga cadeira, dobando, como Penelope tecia, a sua interminavel meada. Não havia outra differença agora senão que a dobadoira não parava, e que o fio seguia, seguia, inrollando-se, inrollando-se contínuo e compassado no novêllo; e que os braços da velha lidavam lentamente mas sem cessar no seu movimento de authomato que fazia mal ver.

Defronte d’ella, sentado n’uma pedra, a cabeça baixa, e os olhos fixos n’um grosso livro velho, que sustinha nos joelhos, estava um homem sêcco e magro, descarnado como um esqueleto, livido como um cadaver, immovel como uma estátua. Trajava um non-descriptum negro, que podia ser sotana de clerigo ou tunica de frade, mas descingida, sôlta, e pendente em grossas e largas pregas do extenuado pescosso do homem.

Tambem não podia ser senão Frei Diniz.

Cheguei juncto d’elles; não me sentiu nenhum dos dois; nem me viu elle, o que so via dos dois.

Sem mais reflexão, e continuando alto na serie de pensamentos que me vinha correndo pelo espirito, exclamei:

— 'E Joanninha?'

— 'Joanninha está no ceo': — respondeu sem sobresalto, sem erguer os olhos do seu livro, a sombra do frade — que outra coisa não parecia.

— 'Joanninha, pobre Joanninha! Pois como foi, como acabou a infeliz?'

— 'Joanninha não é infeliz: foi ser anjo na presença de Deus.'

— 'E... e Carlos?' balbuciei eu hesitando, porque temia a susceptibilidade do frade.

— 'Carlos!' respondeu elle erguendo emfim os olhos e cravando-os em mim...

E oh! que nunca vi olhos como aquelles, nem os heide ver!

— 'Carlos!... E quem é que m'o pergunta? quem é que tanto sabe de mim e dos meus?.. Dos meus! Eu não tenho meus: sou so.’

— 'So! Não está aqui, que eu vejo?..'

— 'Ve essa mulher morta que ahi ficou, que a matei eu, e que aqui está á espera que dê a hora de a eu interrar, mais nada. Eu estou so e quero estar so. Morreu tudo. Que mais quer saber?'

— 'Venho de Santarem...'

— 'Santarem tambem morreu; e morreu Portugal. Aqui não, vive senão o meu peccado, que Deus não perdoou ainda, nem espero...'

— 'A nossa religião fez uma virtude da esperança.'

— 'Fez.'

— 'E n'isso se distingue das outras todas.’

— 'Pois ainda ha quem o saiba n'esta terra?’

— 'Ha mais do que não houve nunca — pelo menos ha mais quem o saiba melhor.'

— 'Póde ser: os juizos de Deus são incomprehensiveis.'

— 'E infinita a sua misericordia.'

— 'Mas a sua cholera implacavel, a sua justiça tremenda.'

— 'A misericordia é maior.'

— 'Quem lhe insinou tudo isso?'

— 'O evangelho, o coração, e minha mãe que m'os explicou ambos.’

— 'Sente-se aqui... aopé de mim.'

Sentei-me. O frade pegou-me na mão com as suas ambas, e pôs-me os olhos com uma expressão que nenhuma lingua póde dizer, nem nenhum pincel pintar.

Esteve assim algum tempo, como quem me observava. Vi-lhe apontar claramente uma lagryma, vi-lh’a retroceder, e ficarem-lhe inchutos os olhos. Senti-lhe estrangular um suspiro que lhe vinha á garganta; percebi distinctamente o estremeção que lhe correu o corpo; mas observei que todo se serenou depois.

Disse-me então com voz magoada mas placida e sem aspereza ja nenhuma:

— 'Sabe a historia do valle?'

— 'Sei tudo até á partida de Carlos para Evora.'

— 'Aqui tem a carta que elle escreveu.'

Tirou do breviario um papel dobrado, amarello do tempo, e manchado, bem se via, de muitas lagrymas, algumas recentes ainda.

— 'Leia.'

Li.

Ésta era a carta de Carlos.