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Viagens na Minha Terra (1846)/XLIV

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CAPITULO XLIV.

 
Carta

de Carlos a Joanninha.

Evora-monte...de maio de 1834.

É a ti que escrevo, Joanna, minha irman, minha prima, a ti so.

Com nenhum outro dos meus não posso nem ouso fallar.

Nem eu ja sei quem são os meus: confunde-se, perde-se-me ésta cabeça nos desvarios do coração. Errei com elle, perdeu-me elle... Oh! bem sei que estou perdido.

Perdido para todos, e para ti tambem. Não me digas que não; tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não pódes evitar de o sentir.

Eu estou perdido.

E sem remedio, Joanna, porque a minha natureza é incorrigivel. Tenho energia de mais, tenho podêres de mais no coração. Estes excessos d’elle me mataram... e me matam!

Tu não comprehendes isto, Joanninha, não me intendes decerto; e é difficil.

Es mulher, e as mulheres não intendem os homens. Sempre o entrevi, hoje sei-o perfeitamente. A mulher não póde nem deve comprehender o homem. Triste da que chega a sabê-lo!..

E d’ahi... quando se tem de morrer, antes saber a morte de que se morre, do que expirar na ignorancia do mal que nos matou.

Tu es joven e inexperiente, a tua alma está cheia de illusões doces; vou dissipar-t’as em quanto se não condensam, que te offusquem a razão e te deixem para sempre escrava cega do maior inimigo que temos, o coração.

Quero contar-te a minha historia: verás n’ella o que vale um homem.

Sabe que os não ha melhores que eu; e tam bons, poucos. Olha o que será o resto!

Tu não ignoras ja hoje o porque fugi da casa materna: sabía-a manchada de um grande peccado, e imaginei-a polluida de um enorme crime.

Esse homem que é meu pae, não o podia ver; hoje que sei o que me elle é... Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!

Minha avó, julguei-a cumplice no crime; ella so o era no peccado. Perdoe-lhe Deus; e bem póde e bem deve, ja que a fez tam fraca. Minha pobre mãe succumbiu por sua culpa, por sua irremissivel complacencia...

Deus póde e deve, repitto... mas eu, como lhe heide perdoar eu este rubor que sinto nas faces ao nomear minha mãe?

Tem padecido e soffrido muito... coitada! A sua penitencia é um martyrio, a sua velhice uma longa paixão, e esse homem que a perdeu um verdugo sem piedade. Mas tudo isso é com Deus, não é commigo.

Eu sou filho; minha mãe morreu sem perdoar — não posso perdoar eu.

E quem me hade perdoar a mim? Ninguem, nem quero.

Não serás tu, minha irman; não, que não deves. Porque eu amei-te com um coração que ja não era meu; acceitei o teu amor sem o merecer, sem o podêr possuir, trahi quando te amava, menti quando t’o disse, menti-te a ti, menti-me a mim, e não guardei verdade a ninguem.

Mas espera, ouve; deixa-me ver se posso atar o fio d’esta minha incrivel historia — incrivel para ti, bem simples para quem conheça o coração do homem.

Sahi de Portugal, e posso dizer que não tinha amado ainda. Inclinações de criança, galanteios de sociedade, ligações que nasceram da vaidade, ou que so os sentidos alimentam, não merecem o nome de amor.

Eu não tinha amado.

Ha tres especies de mulheres n’este mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, e a mulher que se ama.

A belleza, o espirito, a graça, os dotes d’alma e do corpo geram a admiração.

Certas fórmas, certo ar voluptuoso criam o desejo.

O que produz o amor não se sabe; é tudo isto ás vezes, é mais do que isto, não é nada d’isto.

Não sei o que é; mas sei que se póde admirar uma mulher sem a desejar, que se póde desejar sem a amar.

O amor não está definido, nem o póde ser nunca. O amor verdadeiro; que as outras coisas não são isso.

Eu vivi poucos mezes em Inglaterra; mas foram os primeiros que posso dizer que vivi. Levou-me o acaso, o destino — a minha estrella, porque eu ainda creio nas estrellas, e em pouco mais d’este mundo creio ja — levou-me ao interior de uma familia elegante, ricca de tudo o que póde dar distincção n’este mundo.

Extranhei aquelles habitos de alta civilização, que me agradavam comtudo; moldei-me facilmente por elles, affiz-me a vejetar docemente na branda atmosphera artificial d’aquella estufa sem perder a minha natureza de planta extrangeira. Agradei: e não o merecia. No fundo d’alma e de character eu não era aquillo por que me tomavam. Menti: o homem não faz outra coisa. Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz, e todavia tenho levado a vida a mentir.

Menti pois, e agradei porque mentia. Sancto Deus! para que sahiria a verdade da tua bôcca, e para que a mandaste ao mundo, Senhor?

Havia tres meninas n’aquella familia. Dizer que eram as tres graças é uma vulgaridade cansada, e tam bannal que não dá idea de coisa alguma. Tres anjos seriam; tres anjos posso dizer com mais propriedade. E quando em nossos longos passeios solitarios, por aquelles campos sempre verdes, por aquellas collinas coroadas de arvoredo, tapessadas de relva macia, os seus vestidos brancos, singelos, simples, trajados sem arte, fluctuavam com a brisa da tarde... e os longos anneis de seus cabellos — os de uma eram loiros, os de outra castanhos, não ha nome para a indefinida côr dos da terceira — quando esses longos anneis descahiam de sua ondada spiral com o orvalho humido do crepusculo — e que a essa luz vaga e mysteriosa eu as contemplava todas tres com adoração e recolhimento devoto d’alma — sinceramente exclamava: ’São tres anjos celestes que é forçoso adorar!..’

E assim é que os adorava os tres anjos, todos tres, e não podia adorar um sem os outros.

Que me queriam ellas, é certo; que insensivelmente se habituaram á minha companhia e ja não podiam viver sem ella... ai! era preciso ser um monstro para o não confessar com lagrymas de gratidão e de remorso.

Os mais difficeis e delicados apices da perfeição de sua tam caprichosa e tam expressiva lingua, as bellezas mais sentidas de seus auctores queridos, o espirito e tom difficil de sua sociedade tam desdenhosa e fastienta, mas tam completa e tam calculada para sublimar a vida e a desmaterializar — isso tudo, e um indefinivel sentimento do gentil, que so com natural tacto se adquire, é verdade, mas que se não alcansa com elle so — isso tudo o apprendi alli das suaves licções que insensivelmente recebia a cada instante.

Se valho alguma coisa, tudo valho por ellas; se tenho merecido alguma consideração no mundo, toda lh’a devo.

Ves que confesso a dívida, verás como a paguei.

O tom perfeito da sociedade ingleza inventou uma palavra que não ha nem póde haver n’outras linguas emquanto a civilização as não aparar. To flirt é um verbo innocente que se conjuga alli entre os dois sexos, e não significa namorar — palavra grossa e absurda que eu detesto — não significa ’fazer a côrte’; é mais do que estar amavel, é menos do que galantear, não obriga a nada, não tem consequencias, começa-se, acaba-se, interrompe-se, addia-se, continúa-se ou descontinúa-se á vontade e sem compromettimento.

Eu flartava, nós flartavamos ellas flartavam...

E não ha mais doce nem mais suave intertenimento d’espirito do que o flartar com uma elegante e graciosa menina ingleza; com duas é prazer angelico, e com tres é divino.

Para quem nasceu n’aquillo, não é perigoso; para mim degenerou, breve, aquella placida sensação em mais profundo sentimento.

Veio a admiração primeiro.

E como as eu admirava todas tres as minhas gentis fascinadoras!

E ellas conheciam-n’o, riam, folgavam e estavam incantadas de me incantar.

Fizeram nascer os desejos!

Julguei-me perdido, e quiz fugir.

Não me deixaram e zombaram de mim, da ardencia do meu sangue hespanhol, da vehemencia das minhas sensações...

Em breve eu amava perdidamente uma d’ellas — queria muito ás outras duas; mas amar, amar devéras, d’alma cuidava eu, de coração ia jurá-lo, era a segunda — Laura, a mais gentil, mais nobre, mais elegante e radiosa figura de mulher que creio que Deus moldasse n’uma hora de verdadeiro amor de artista que se dignou tomar por esse pouco de greda que tinha nas mãos ao formá-la.