Viagens na Minha Terra (1846)/XLVII
CAPITULO XLVII.
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
Chegámos ao Inn (estalagem), triste casa solitaria no meio dos campos á borda da estrada. A malla chegava ao mesmo tempo quasi.
Eu dei a mão a Laura para sahir da caleche e entrar no coche; e apenas tivemos tempo para um convulsivo shake-hands e para nos dizer adeus! adeus! com a affectada seccura que exige a lei das conveniencias britannicas.
A malla partiu ao grande trote... E dir-te-hei a verdade ou queres que minta? Não, heide dizer-te a verdade. Pois senti como um alívio desesperado, uma consolação cruel em a ver partir. Senti o que imagino que deve sentir um infêrmo depois da operação dolorosa em que lhe amputaram parte do corpo com que já não podia viver, e que era forçoso perder ou perder a vida.
Tambem deve de ser assim a morte: um descanço apathico e nullo depois de inexplicavel padecer.
Era como morto que eu estava; não soffria pois.
E ja não pensava em ti, ja te não via na minha alma: eu não existia, estava alli.
Voltámos ao parque; apeei silenciosamente as minhas duas gentis companheiras, e eu fui so, apé, com passo firme e resoluto para a minha habitação. Nenhuma d’ellas me procurou retter, nem me disse nada, nem tentou consolar-me. Paraquê?
L. William R. chegava, na manhan seguinte, de uma de suas habituaes excursões a Londres. Veio ver-me assim que chegou, e trazer-me cartas de Portugal que eu esperava ha muito. — Disse-me que partia no outro dia para Swansea, a terra de Galles para onde Laura fôra; e que me incarregava de fazer companhia ás duas filhas que ficavam sos.
A mim!..
Estive tres dias sem as ver: em todos tres não fiz mais do que escrever a Laura.
No quarto dia fui ao parque. Julia deu um grito de alegria quando me viu: raro exemplo de excepção ás formuladas regras que tyrannizam a vida ingleza, que prescrevem até a cara com que se hade morrer, e teem graduado o tom em que se deve exhalar o último suspiro.
Mas a natureza chega a triumphar ás vezes até da propria etiqueta britannica.
Julia cuidava que eu não queria voltar áquella casa, tinha-se resignado a não tornar a ver-me; não pôde reprimir a alegria que lhe causou a minha inexperada apparição.
Passámos todo o dia junctos e sos: quasi todo se nos foi passeando no parque, ou sentados á sombra de seus espessos arvoredos, ou mirando-nos nas crystallinas aguas de uma vasta represa povoada de aves aquaticas e rodeada d’aquelles immensos mantos de velludo verde de que perpetuamente se infeita a terra ingleza e que so desapparecem quando vem o hynverno extender-lhe porcima seus alvos lençoes de neve.
Quiz ver o que eu escrevia á irman; dei-lhe a carta, leu-a, meditou-a, restituiu-m’a sem dizer palavra.
Que horas passámos n’este silencio, n’esta eloquente mudez que não vem senão do muito de mais que a alma sente, do muito de mais que diria se fallasse!
Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado fazendo para mim e que lhe deixára para me intregar. Senti que tinha dentro o que quer que fosse a bolsa, não quiz examinar. Achei, quando voltei a casa, que era o fadado cinto de vidrilhos pretos que eu tanto tinha admirado em certo baile onde foramos junctos, e que Laura não deixára de pôr nunca mais em se vestindo de branco e que fizesse alguma toilette.
Ainda o conservo aquelle cinto precioso, Joanna; ainda a tenho, no meu thesoiro mais guardado, aquella joia, aquella reliquia. E amo-te, e amo-te a ti so como realmente nunca amei nem poderei tornar a amar. Mas aquelle cinto é uma sorte, um talisman, um amuleto em que está o meu destino.
Amei... isto é, amei... pois sim, amei, ja que não ha outra palavra n’estas estupidas linguas que fallam os homens; pois amei outras mulheres, e nos dias de maior enthusiasmo por ellas, não deixei nunca de beijar devotamente aquelle cinto, de o appertar sôbre o meu coração, de me incommendar a elle — como o salteador napolitano se incommenda ao escapulario da madona que traz ao peito, com as mãos insanguentadas de matar, ou carregado do roubo que acaba de fazer.
Ai, Joanna, não te digo eu que estou perdido, sem remedio, e que para mim não ha, não póde haver salvação nunca?
Vivi assim dois mezes. Laura não me escrevia: recebia as minhas cartas e respondia a Julia: por este modo nos correspondiamos. Julia era parte de nós, era uma porção do nosso amor, viviamos n’ella a nossa vida. E ja as confundia ambas por tal modo no meu coração que me surpreendia a não saber a qual queria mais. Julia parecia feliz d’este estado; eu era-o. Insensivelmente me habituei a elle, ja não tinha saudades do passado. E quando se approximou o casamento de Laura, que ella tinha de voltar de Galles, e que eu, fiel ao que promettêra, devia pretextar negócio urgentissimo em Londres que me obrigasse a ausentar-me até á sua partida para a India, eu tive uma pena, uma difficuldade em cumprir o que promettêra que me invergonhava.
Parti porêm; e alli me demorei um mez. Julia escrevia-me todos os dias e eu a ella. Na véspera do dia fatal em que Laura ia ser de outro homem, Julia escreveu-me éstas palavras sos: — 'O nosso romance acabou; começa uma historia séria. Laura manda-lhe o seu último adeus.'
E nunca mais se escreveu nem se pronunciou o nome de Laura entre nós dous.
O galeão que me levava para o Oriente as ruinas de toda a minha esperança ha muito que navegava; entrava outubro e o hynverno inglez com suas mais asperas, e n’este anno tam precoces, severidades. Eu sentia-me morrer de tristeza e de isolamento no meio da populosa e turbulenta Londres, Julia percebeu-o, e mandou-me voltar a — — shire. Voltei.