Viagens na Minha Terra (1846)/XLVIII

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CAPITULO XLVIII.

 
Carta

de Carlos a Joanninha: continúa.

O que eu senti quando, apezar de tam desfigurados pelos tres-altos de neve que os cubriam, comecei a reconhecer aquelles sitios da vizinhança do parque, e a confrontar as árvores, os pastios, os casaes d’aquelles arredores!

Era outra a expressão de physionomia da paizagem, mas as queridas feições eram as mesmas, e uma a uma lh’as ia estremando.

Emfim o meu stage parou á entrada do parque, e eu tomei apé pela longa avenida. Eram nove horas da manhan, e a manhan brumosa, fria, mas o tempo macio, não estava cru, segundo a expressiva phrase do paiz.

Por entre a nevoa que me incubria a antiga mansão e involvia as árvores circumstantes n’um sudario cinzento e melancholico, fui caminhando, quasi pelo tacto, até meia alameda talvez.

Parei a reflectir na minha posição e no que eu ia ser n’aquella casa que de novo me abria suas portas hospitaleiras, quando, atravez da neblina brancacenta e onde ella era mais rara, descubri um vulto que vinha a mim de entre as árvores do parque.

O vulto era de mulher e parecia uma sombra, uma apparição phantastica em meio d’aquella scena mysteriosa, so, triste.

Na distancia figurava-se-me alto em demazia: Julia não era nem podia ser; Julia a mais diminutiva e delicada de quantas fadas bonitas e graciosas teem trazido varinha de condão. Laura... ai! Laura tam longe estava d’alli... Quem sería pois? So se fosse!.. Quem?

Aquella elegancia, aquelle cabello sôlto e annellado, aquelle ar gentil não podia ser senão d’ella...

D’ella, quem?

Ainda te não fallei, quasi, da última das tres bellas irmans que me incantavam, não t’a descrevi, não t’a nomeei pelo seu nome. Repugnava-me fazê-lo. Mas é preciso: custa-me, não ha remedio.

Era Georgina...

Georgina que tu conheces, Georgina que... era Georgina a que vinha a mim n’aquella — fatal ou feliz? — manhan; Georgina que de todas tres era a que menos me fallava, que eu verdadeiramente menos conhecia.

Este meu coração, á fôrça de ferido e de mal curado que tem sido, pressente e adivinha as mudanças de tempo com uma dor chronica que me dá. Pressenti não sei quê ao ver approximar-se Georgina...

— 'Como foi bom em vir! Estou realmente feliz de o ver. E Julia, a pobre Julia, que alegria que vai ter, hade curá-la de todo.'

— 'Pois quê! Julia está doente?'

— 'Não o sabía!... Ai! não, bem sei que não: ella não lh'o quiz dizer. Julia está doente; mas não é de cuidado. Eu sempre quiz advirti-lo antes que a visse, por isso calculei as horas do coche e vim para aqui esperá-lo.’

Éstas palavras eram simples, não tinham nada que me devesse impressionar extraordinariamente, e todavia eu sentia-me agitado como nunca me sentira. Olhava para Georgina como se a visse a primeira vez, e pasmava de a ver tam bella, tam interessante.

É uma situação d’alma ésta que não sei que a descrevessem ainda poetas nem romancistas: desprezam-n’a talvez, ou não a conhecem. Está recebido que as subitas impressões causadas por um primeiro incôntro sejam as mais interessantes, as mais poeticas.

Eu não nego o effeito theatral d’essas primeiras e repentinas sensações; mas sustento que interessa mais ess’outra inesperada e extranha impressão que nos faz um objecto ja conhecido, que víramos com indifferença atéalli, e que derrepente se nos mostra tam outro do que sempre o tinhamos considerado...

Mas ésta mulher é bella realmente! E eu que nunca o vi! Mas aquelles olhos são divinos! Onde tinha eu os meus atégora? Mas este ar, mas ésta graça onde os tinha ella escondidos? etc. etc.

Vão-se gradualmente, vão-se pouco a pouco descobrindo perfeições, incantos; e o sentimento que resulta é mil vezes mais profundo, mais fundado, sôbretudo, que o das taes primeiras impressões tam cantadas e decantadas.

Que mais te direi depois d’isto? Entrámos em casa, vi Julia, fallámos de Laura muito e muito. Mas eu ja o não fiz com o enthusiasmo, com a admiração exclusiva com que d’antes o fazia...

Julia recobrou, breve, a saude, e com ella o equilibrio do espirito. Renovou-se toda a alegria, todo o incanto das nossas conversações íntimas, dos nossos longos passeios. Laura lembrava com saudade; mas suavizava-se, imbrandecia gradualmente aquella saudade.

Georgina, que atéalli parecia impenhar-se em se deixar eclipsar pela irman, agora, ausente ella, brilhava de toda a sua luz, em graça, em espirito, por um natural singelo e franco, por uma exquisita doçura de maneiras, de voz, de expressão, de tudo.

Julia revia-se n’ella, e eu acabei pela adorar. Vergonha eterna sôbre mim! mas é a verdade: quiz-lhe mais do que a Laura, ou pareceu-me querer-lhe mais... que tanto vale.

Eu sei?.. Não, não lhe queria tanto. Mas amei-a.

Amei, sim, e fui amado!

Tres mezes durou a minha felicidade. É o mais longo periodo de ventura que posso contar na vida. Falsa ventura, mas era.

A imperiosa lei da honra exigiu que nos separassemos, que partisse para os Açores. Fui. Ninguem sacrificou mais, ninguem deu tanto como eu para aquella expedição. A historia fallará de muitos serviços, de muitas dedicações. Quem saberá nunca d’esta?

A historia é uma tola.

Eu não posso abrir um livro de historia que me não ria. Sôbretudo as ponderações e adivinhações dos historiadores acho-as de um comico irresistivel. O que sabem elles das causas, dos motivos, do valor e importancia de quasi todos os factos que recontam?

Ainda não sei como parti, como cheguei, como vivi os primeiros tempos da minha estada n’aquelle escôlho no meio do mar, chamado a ilha Terceira, onde se tinham refugiado as pobres reliquias do partido constitucional.

Habituei-me porfim. A que se não affaz o homem?

Levaram-me uma tarde á grade de um convento de freiras que ahi havia. O meu ar triste, distrahido, indifferente excitou a piedade das boas monjas. Uma d’ellas, joven, ardente, apaixonada, quiz tomar a empresa de me consolar. Não o conseguiu, coitada! O meu coração estava em — — shire em Inglaterra, estava na India, estava no valle de Santarem,

Pelo mundo em pedaços
repartido;

estava em toda a parte, menos alli, que nada d’elle estava nem podia estar.

Era Soledade que se chamava a freirinha, e com o seu nome ficou. Disseram o que quizeram os falladores que nunca faltam, mas mentiram como mentem quasi sempre, inganaram-se como se inganam sempre.

Eu não amei a Soledade.

E comtudo lembro-me d’ella com pena, com sympathia... Se eu sou feito assim, meu Deus, e assim heide morrer!

Viemos para Portugal; e o resto agora da minha historia sabes tu.

Cheguei porfim ao nosso valle, todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te... não, não é verdade assim. Conheci, mal que te vi entre aquellas árvores, á luz das estrellas, conheci que era a ti so que eu tinha amado sempre, que para ti nascêra, que teu so devia ser, se eu ainda tivera coração que te dar, se a minha alma fosse capaz, fosse digna de junctar-se com essa alma d’anjo que em ti habita.

Não é, Joanna; bem o ves, bem o sentes, como eu o sinto e o vejo.

Eu sim tinha nascido para gosar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui creado, estou certo, para a glória tranquilla, para as delicias modestas de um bom pae de familias.

Mas não o quiz a minha estrella. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e perdeu-se: não me recobro mais. A mulher que me amar hade ser infeliz por fôrça, a que me intregar o seu destino, hade vê-lo perdido.

Não quero, não posso, não devo amar a ninguem mais.

A desolação e o oppróbrio entraram no seio da nossa familia. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo quanto quiz, a tudo quanto posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injustiça, porque eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.

Adeus Joanna, adeus prima querida, adeus irman da minha alma! Tu accompanha nossa avó, tu consola esse infeliz que é o auctor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes; e esquece-me.

Eu, que nem morrer ja posso, que vejo terminar desgraçadamente ésta guerra no unico momento em que a podia abençoar, em que ella podia felicitar-me com uma balla que me mandasse aqui bem direita ao coração, eu que farei?

Creio que me vou fazer homem politico, fallar muito na patria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?.. talvez darei porfim em agiota, que é a unica vida de emoções para quem ja não póde ter outras.

Adeus minha Joanna, minha adorada Joanna, pela última vez, adeus!